O "Naufrágio do
galeão grande São João" é o primeiro relato da História
Trágico-Marítima, publicada em 1735, e do desastre ocorrido em 1552.
O relato conhecido como "Naufrágio de Sepúlveda" é o mais
famoso entre todos os relatos de naufrágios.
Contudo, devido à
existência de um manuscrito e de diversas edições, o que conhecemos é resultado
de várias alterações ao longo do tempo (Koiso, K. Limite n.º 12.2, 2018).
ÍNDICE
- Galeão São João
- Obras que abordam o naufrágio do galeão São João até a publicação da coleção História Trágico-Marítima.
- Naufrágio de Sepúlveda: uma sequência da transformação da história no decurso das edições. | Kioko Koiso, 2018
- Verbete da Infopédia: Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Leonor de Sá Sua Mulher.
- Relato coligido por Bernardo Gomes de Brito: Naufrágio do Galeão Grande “São João” na Terra do Natal no Ano de 1552.
- Profecia do Adamastor (em Os Lusíadas, 1572) sobre o episódio trágico de Manuel de Sousa Sepúlveda e da esposa.
- Poema em dezassete cantos do Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Leonor De Sá Sua Mulher (Jerónimo Corte Real, 1594).
- “As sombras da alegoria: trilhos para a exegese do poema de Leonor e Sepúlveda”, Hélio Alves (1999)
- Adaptação de António Sérgio: Naufrágio de Sepúlveda (1552).
- Canção “Manuel de Sousa Sepúlveda”, de Fausto Bordalo Pinheiro.
Galeão São João
Local
de partida:
Cochim.
Data
da partida:
3 de fevereiro de 1552.
Capitão: Manuel de Sousa de
Sepúlveda.
Piloto: André Vaz.
Data
do naufrágio:
24 de junho de 1552 (?).
Local
do naufrágio:
Terra de Natal.
Causas
do naufrágio:
Partida fora da época, mau estado de conservação, sobrecarga, tempestade e má
navegação.
Autor: Anónimo.
Primeira
edição:
Historia da muy notauel perda do galeão
grande Sam João. Em que se comtam os innumeraueis traballhos e grandes
desauenturas que aconteceram ao Capitão Manoel de Sousa de Sepulueda. E o
lamentauel fim que elle e sua molher e filhos e toda a mais gente ouuerão. O
qual se perdeo no anno de M.D. Lij. a vinte e quatro de junho, na terra do
Natal em xxxj. graos.
A edição não declara nem o
nome do impressor nem o lugar e a data de impressão.
Segundo o historiador
inglês Charles Boxer, a data da publicação desta primeira edição teria sido
entre 1555 – ano em que chegou o primeiro relato a Portugal – e 1564 – ano em
que saiu do prelo a segunda edição do relato (BOXER, Charles Ralph. Introduction to
the História Trágico-Marítima, Revista da Faculdade de Letras, n.º 3,
série I, Lisboa, Universidade de Lisboa, 1957. p. 50).
Raffaella D’Intino, por
sua vez, determina que a primeira edição provavelmente saia impressa em 1555 (D’INTINO,
Rafaella. Storia Trágico-Marittima. Turim: Giulio Einaud Editore, 1992,
p. XXV).
Já a historiadora
italiana, Giulia Lanciani, acredita que tenha sido publicada entre 1555 e 1556 (LANCIANI, Giulia.
Sucessos e naufrágios das naus portuguesas. Lisboa: Editorial Caminho,
1997. p. 161. 103).
Um fac-símile da edição
encontra-se na Biblioteca Nacional de Lisboa.
Outras
edições:
1564
– Lisboa, por João da Barreira.
1592
– Lisboa, por Antonio Álvares.
1614
– Évora, por Francisco Simões.
1625
– Lisboa, por Antonio Álvares.
Obras que abordam
o naufrágio do galeão São João até a publicação da coleção História Trágico-Marítima.
1552 |
Naufrágio do galeão
São João |
1555-1564 |
História da muy notável
perda do galeão grande São João (Primeira Edição) |
1564 |
História da muy notável perda do galeão grande São João (Segunda Edição) |
1572 |
Os Lusíadas – Luis de Camões |
1588 |
Historiarum
Indicarum Libri XVI – Giampietro Maffei Elegíada – Luís Pereira Brandão |
1592 |
História da muy notável
perda do galeão grande São João (Terceira Edição) Navfragio e lastimoso svcesso da perdiçam de Manoel de Sousa de Sepulveda, & Dona Lianor de Sá sua molher &
filhos, vindo da India para este Reyno na náo chamada o galião grande
S. Ioão que
se perdeo no cabo de Boa Esperança, na terra do Natal. E a Perigrinação que tiverão
rodeando terras de Cafres, mais de 300 legoas, té sua morte. Composto em verso heróico, & octaua rima por Jeronimo Corte Real – Jerónimo Corte-Real |
1602-06 |
Operare horarum subciscivarum seu Meditationes historicae, ecc. – Filippo
Camerarius de Nuremberg Ethiópia oriental
e vária história de cousas
notáveis do Oriente
– frei João do Santos |
1614 |
História da
muy
notável
perda do galeão grande São
João (Reedição da
Terceira Edição - 1592) Década Sexta da Ásia – Diogo do Couto |
1625 |
História da
muy
notável
perda do galeão grande São
João (Reedição da Terceira Edição –
1592) |
1630? |
Laurel de Apolo, com outra rimas – Lope de Veja |
1633 |
História da
muy
notável
perda do galeão grande São
João (Reedição da Terceira Edição –
1592) |
1636 |
Escarmientos para el cuerdo – Tirso de Molina |
1643? |
Ambitio sive Sosa – N. Avancini S.J. |
1643 |
L’oceano imboschito in cui pati funesto naufraggio Emanuel Sosa Cavalier Portoghese. Storia
descritta dal Dottore Don Giacinto Marmosa da Somera
Accademico Eruditissimo,
Sientifico e Universale |
1667? |
Lusiadis Leoninae, sive De gestis lusitanorum leonino carmine
decantatis libri duodecim
carmem heroicum, ecc. – Ignacio Arcomone |
1674 |
Asia Portuguesa – Manuel de Faria e
Sousa |
1728 |
Volubilis Fortunae cursus ab Emmanuele Sosa Dionis Praeside et Eleonora Ejus Consorte fixux,
et consummatus in cruce,
ecc. – Anonimo jesuíta alemão |
1732 |
Academia universal de varia erudição sagrada, e profana – O. P. Manoel Conciencia |
1735 |
História Trágico-Marítima – Bernardo Gomes de Brito |
Naufrágios
e outros infortúnios na História Trágico-Marítima da carreira da Índia (Séculos
XVI e XVII),
Marcelo Kockel, UNESP - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, 2014
Naufrágio
de Sepúlveda: uma sequência da transformação da história no decurso das
edições. | Kioko Koiso, 2018
Durante a expansão portuguesa nos
séculos dezasseis e dezassete, ocorreram na Carreira da Índia naufrágios,
alguns dos quais originaram relatos redigidos pelas próprias testemunhas ou por
outros indivíduos mais habilitados na redação, posteriormente publicados em
fascículos. Estes, que eram designados por "literatura de cordel",
ganharam grande popularidade, pois, além do carácter simultaneamente aterrador
e aventureiro das suas histórias, as calamidades que descreviam eram parte
integrante da vida do povo português, marítimo por natureza e vocação, tendo
muita gente perdido familiares ou amigos nos oceanos.
Frontispício do relato do naufrágio do galeão grande São João, no tomo I, da História Trágico-Marítima. |
Em 1735 e 1736, o bibliófilo Bernardo Gomes de Brito organizou uma coletânea de doze narrativas de desastres no mar em dois tomos sob o título da História Trágico-Marítima,1 recorrendo aos fascículos anteriormente em circulação e a outras fontes.
O relato do galeão grande São
João foi o primeiro da antologia. Conhecido como "Naufrágio de
Sepúlveda", o infortúnio que aconteceu em 1552 na costa oriental africana,
no atual Port Edward da África do Sul, é o mais famoso de todos os desastres
marítimos, devido à morte impressionante de D. Leonor, esposa do capitão Manuel
de Sousa de Sepúlveda. Enquanto os sobreviventes caminhavam em terra
desconhecida, contando com o socorro dos conterrâneos em Lourenço Marques, o
capitão que perdeu o siso mandou os companheiros entregarem as armas aos
autóctones. Ficando os portugueses desarmados, os indígenas despiram-nos e
roubaram-nos. Segundo a HTM:
E vendo-ſe D. Leonor deſpida, lançouſe logo no chaõ, e cubrioſe toda com os ſeos cabellos, que eraõ muito
compridos, fazendo huma cova na area, onde ſe meteo athè a cintura, ſem mais ſe erguer d’alli (Brito
1735: I, 34).
O episódio tem tocado o coração
dos leitores ao longo dos séculos. Contudo, como referimos noutras ocasiões, a
descrição é divergente no manuscrito anónimo intitulado "Perdimento do
gualeão São João que vinha da Imdia pera Portuguall Manoell de Sousa de
Sepulluada por capitão", reunido no volume II da Miscelânea Histórica e conservado
na Biblioteca da Ajuda (Koiso 2004: I, 155-156; Idem 2009: I, 325-326), pois D.
Leonor faleceu coberta com os seus cabelos, sem cavar uma cova (Mss.: 431v).
Afigura-se-nos que a ação de cavar uma cova foi acrescentada na editio princeps
(cap. xxix), pois junto com outros episódios, não podemos eliminar a hipótese
de o editor da 1.ª edição ter efetuado as intervenções para dramatizar a
história (Koiso 2004: I, 157-158).
Koiso, K. (2018). “Naufrágio de Sepúlveda: uma sequência da
transformação da história no decurso das edições”. Limite: Revista de
Estudios Portugueses y de la Lusofonía, 12(2), 67-94. http://www.revistalimite.es/vol12b.html
Naufrágio e Lastimoso Sucesso da
Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Leonor de Sá Sua Mulher | verbete
da Infopédia
Esta
epopeia trágica retrata a história do naufrágio de Sepúlveda, uma das mais
célebres tragédias marítimas da história lusitana que deu origem a uma rica e
conhecida tradição intertextual e interdiscursiva, desde a segunda metade do
século XVI até à literatura contemporânea, tendo sido cantada por inúmeros
autores da literatura portuguesa e estrangeira.
Publicado
anonimamente em 1555, logo depois desta tragédia marítima ter ocorrido, o
relato do Naufrágio do Sepúlveda depressa se tornou num caso triste e
digno de memória na nossa cultura. A sua ávida leitura pelo povo mais simples,
bem como pelos nobres e letrados, desencadeou edições sucessivas deste folheto
de cordel.
Ainda
antes da obra de Jerónimo Corte Real, dois prestigiados poetas quinhentistas
imortalizaram esta tragédia: Luís de Camões, em 1572, pela boca do terrível
Adamastor (Os Lusíadas, Canto V, est. 46-48); e Luís Pereira Brandão, na
Elegíada (Canto VI), de 1588. A triste fortuna de Sepúlveda ultrapassou
mesmo as fronteiras nacionais, inspirando outros autores, na escrita poética,
ficcional ou dramatúrgica, com destaque para Lope de Veja e Tirso de Molina,
bem como algumas peças de teatro novilatino dos jesuítas de seiscentos.
Os
motivos de Corte Real para a redação desta obra não eram meramente literários,
visto que o autor estava ligado por laços de parentesco às personagens da
tragédia - a sua esposa era prima de D. Leonor de Sá, esposa de Sepúlveda. Num
total de dezassete cantos, escritos em decassílabos brancos, de fundo elegíaco
e mundividência maneirista, esta longa narrativa poética foi considerada pelo
poeta a "mais filha do seu engenho", alcançando uma popularidade
superior à dos seus outros poemas históricos.
Porto Editora – Naufrágio e
Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Leonor de Sá
Sua Mulher na Infopédia [em linha]. Porto:
Porto Editora. [consult. 2022-05-05]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$naufragio-e-lastimoso-sucesso-da-perdicao-de
Naufrágio do Galeão Grande “São João”
na Terra do Natal no Ano de 1552 | Bernardo Gomes de Brito
Partiu
neste galeão Manuel de Sousa, que Deus perdoe, para fazer esta desaventurada
viagem de Cochim, a três de fevereiro do ano de cinquenta e dous. E partiu tão
tarde por ir carregar o Coulão, e lá haver pouca pimenta, onde carregou obra de
quatro mil e quinhentas, e veio a Cochim acabar de carregar a cópia de sete mil
e quinhentas por toda com muito trabalho por causa da guerra que havia no
Malavar. E com esta carga se partiu para o Reino podendo levar doze mil; e
ainda que a nau levasse pouca pimenta, nem por isso deixou de ir muito carregada de outras mercadorias, no que se havia de
ter muito cuidado pelo grande risco que correm as naus muito carregadas.
A treze de Abril veio Manuel de Sousa haver vista da
costa do Cabo em trinta e dous graus, e vieram ter tanto dentro, porque havia
muitos dias que eram partidos da Índia, e tardaram muito em ver o Cabo por
causa das ruins velas que traziam, que foi uma das causas e a principal de seu
perdimento; porque o piloto André Vaz fazia seu caminho para ir à terra do cabo
das Agulhas, e o capitão Manuel de Sousa lhe rogou que quisesse ir ver a terra
mais perto; e o piloto por lhe fazer a vontade, o fez: pela qual razão foram
ver a Terra do Natal, e estando à vista dela, se lhe fez o vento bonança, e foi
correndo a costa até ver o cabo das Agulhas, com prumo na mão, e sondando; e
eram os ventos tais, que se um dia ventava levante, outro se levantava poente.
E sendo já em onze de março eram nordeste, sudoeste, com o cabo de Boa Esperança
vinte e cinco léguas ao mar, ali lhe deu o vento oeste, e oés-noroeste com
muitos fuzis. E sendo perto da noite o capitão chamou o mestre, e o piloto, e
lhes perguntou que deviam fazer com aquele tempo, pois lhe era pela proa, e
todos responderam, que era bom conselho arribar.
As razões que davam para arribar, foram que a nau era
muito grande, e muito comprida, e ia muito carregada de caixaria, e de outras
fazendas, e não traziam já outras velas, senão as que traziam nas vergas, que a
outra esqui pação levou um temporal que lhe deu na Linha, e estas eram rotas,
que se não fiavam nelas; e que se parassem, e o tempo crescesse, e lhe fosse
necessário arribar, lhe poderia o vento levar as outras velas que tinham, que
era prejuízo para sua viagem, e salvação, que não havia na nau outras; e tais
eram aquelas que traziam, que tanto tempo punham em as remendar, como em
navegar. E uma das cousas por que não tinham dobrado o Cabo a este tempo, foi
pelo tempo que gastavam em as amainar para coserem; e portanto o bom conselho
era arribar com os papa-figos grandes ambos baixos, porque dando-lhe somente a
vela de proa, era tão velha, que estava mui certo levar-lha o vento da verga
pelo grande peso da nau, e ambos juntos um ajudaria ao outro. E vindo assim arribando,
que seriam cento e trinta léguas do Cabo, lhe virou o vento ao nordeste, e ao
lés-nordeste tão furioso que os fez outra vez correr ao sul, e ao sudoeste; e
como o mar que vinha feito de poente, e o que o levante fez meteu tanto mar,
que cada balanço que o galeão tomava, parecia que o metia no fundo. E assim
correram três dias, e ao cabo deles lhe tornou o vento a acalmar, e ficou o mar
tão grande, e trabalhou tanto a nau, que perdeu três machos do leme so-os
polegar em que está toda a perdição, ou salvação de uma nau. E isto se não
sabia de ninguém, somente o carpinteiro da nau que foi a ver o leme, e achou
falta dos ferros, e então se veio ao mestre, e lho disse em segredo, que era um
Cristóvão Fernandes da Cunha o Curto. E ele respondeu como bom oficial, e bom homem,
que tal cousa não dissesse ao capitão, nem a outra nenhuma pessoa por não
causar terror, e medo na gente, e assim o fez.
Andando assim neste trabalho, tornou-lhe outra vez a faltar
o vento a lés-sudoeste, e temporal desfeito, e já então parecia que Deus era
servido do fim que ao despois tiveram. E indo com a mesma vela arribando outra
vez, lançando-lhe o leme à banda, não quis a nau dar por ele, e toda se pôs de
ló; o vento que era bravo lhe levou o papa-figo da verga grande. Quando se
viram sem vela, e que não havia outra, acudiram com diligência a tomar a vela de
proa, e se quiseram antes aventurar a ficar de mar em través, que ficarem sem
nenhuma vela. O traquete de proa não era ainda acabado de tomar quando se a nau
atravessou, e em se atravessando lhe deram três mares tão grandes, que dos
balanços que a nau deu lhe arrebentaram os aparelhos e costeiras da banda de
bombordo, que não lhe ficaram mais que as três dianteiras.
E vendo-se com os aparelhos quebrados, e sem nenhuma enxárcia
no mastro daquela banda, lançaram a mão a uns viradores para fazerem uns
brandais. E estando com esta obra na mão andava o mar muito grosso, e lhes
pareceu que por então era obra escusada, e que era melhor conselho cortarem o
mastro pelo muito que a nau trabalhava; o vento e o mar era tamanho que lhe não
consentia fazer obra nenhuma, nem havia homem que se pudesse ter em pé.
Estando com os machados nas mãos começando já a cortar
vem supitamente arrebentar o mastro grande por cima das polés das coroas, como
se o cortaram de um golpe, e pela banda do estibordo o lançou o vento ao mar com
a gávea, e enxárcia, como que fora uma cousa muito leve; e então lhe cortaram
os aparelhos, e enxárcia da outra banda, e todo junto se foi ao mar. E vendo-se
sem mastro, nem verga fizeram no pé do mastro grande que lhe ficou, um mastaréu
de um pedaço de entena bem pregada, e com as melhores arreataduras que puderam:
e nele guarneceram uma verga para a vela da guia, e da outra entena fizeram uma
verga para paga-figo, e com alguns pedaços de velas velhas tornaram a guarnecer
esta verga grande; e outro tanto fizeram para o mastro de proa; e ficou isto
tão remendado e fraco, que bastava qualquer vento para lhos tornar a levar.
E como tiveram tudo guarnecido deram às velas com o vento
su-suéste. E como o leme vinha já com três ferros menos, que eram os
principais, não lhe quis a nau governar, senão com muito trabalho, e já então
as escotas lhe serviam de leme. E indo assim, foi o vento crescendo, e a nau
aguçou de ló, e pôs-se toda à corda, sem querer dar pelo leme, nem escotas. E
desta vez lhe tornou· a levar o vento a vela grande, e a que lhes servia de
guia; e vendo-se outra vez desaparelhados de velas, acudiram à vela da proa, e
então se atravessou a nau, e começou de trabalhar: e por o leme ser podre um
mar que lhe então deu, lho quebrou pelo meio, e levou-lhe logo ametade, e todos
os machos ficaram metidos nas fêmeas. Por onde se deve ter grande recato nos
lemes, e velas das naus, por causa de tantos trabalhos, quantos são os que
nesta carreira se passam.
Quem entender bem o mar, ou todos os que nisto bem cuidarem,
poderão ver qual ficaria Manuel de Sousa com sua mulher, e aquela gente, quando
se visse em uma nau em Cabo de Boa Esperança, sem leme, sem mastro, e sem velas,
nem de que as poder fazer; e já neste tempo trabalhava a nau tanto, e fazia
tanta água, que houveram por melhor remédio para se não irem ao fundo a pique
corta rem o mastro da proa que lhe fazia abrir a nau; e estando para o cortar
lhe deu um mar tão grande que lho quebrou pelos tamboretes, e lho lançou ao mar
sem eles porem mais trabalho que o que tiveram em lhe cortar a enxárcia; e ao
cair do mastro deu um golpe muito grande no gurupés, que lho lançou fora da
carlinga, e lho meteu por dentro da nau quase todo; e ainda foi algum remédio
para lhe ficar alguma árvore; mas como tudo eram prognósticos de maiores
trabalhos, nenhuma diligência por seus pecados lhe aproveitava. Ainda a este
tempo, não tinham vista da terra, depois que arribaram do Cabo, mas seriam dela
quinze até vinte léguas.
Desde que se viram sem mastro, sem leme, e sem velas, ficou-lhe
a nau lançada no bordo da terra: e vendo-se Manuel de Sousa, e oficiais sem
nenhum remédio, determinaram o melhor que puderam de fazer um leme, e de alguma
roupa que traziam de mercadorias, fazerem algum remédio de velas, com que
pudessem vir a Moçambique. E logo com muita diligência repartiram a gente,
parte na obra do leme, e parte em guarnecer alguma árvore, e a outra em fazer
alguma maneira de velas, e nisto gastariam dez dias. E tendo o leme feito,
quando o quiseram meter, lhe ficou estreito e curto, e não lhe serviu; e
todavia deram às velas que tinham, para ver se haveria algum remédio de
salvação, e foram para lançar o leme, e a nau lhe não quis governar de nenhum
modo, porque não tinham a bitola do outro que o mar lhe levara, e já então
tinham vista da terra. E isto era aos oito de junho; e vendo-se tão perto da
costa, e que o mar e o vento os ia levando para a terra, e que não tinham outro
remédio senão ir varar, e por se não irem ao fundo, se encomendaram a Deus, e
já então ia a nau aberta, que por milagre de Deus se sustentava sobre o mar.
Vendo-se
Manuel de Sousa tão perto da terra, e sem nenhum remédio, tomou o parecer de
seus oficiais, e todos disseram, que para remédio de salvarem suas vidas do
mar, era bom conselho deixarem-se ir assim até serem em dez braças, e como
achassem o dito fundo surgissem para lançarem o batel fora para sua
desembarcação; e lançaram logo uma manchua com alguns homens que fossem vigiar
a praia, onde dava melhor jazigo para poderem desembarcar, com acordo, que
tanto que surgissem no batel, e na manchua, depois da gente ser desembarcada,
tirarem o mantimento, e armas que pudessem, que a mais fazenda que do galeão se
podia salvar, era para mais perdição sua, por causa dos cafres que os haviam de
roubar. E sendo assim com este conselho, foram arribando ao som do mar e vento,
alargando de uma banda, e caçando da outra; já o leme não governava com mais de
quinze palmos de água debaixo da coberta. E indo já a nau perto de terra,
lançaram o prumo, e acharam ainda muito fundo, e deixaram-se ir: e dali a um grande
espaço, tornou a manchua à nau, e disse que perto dali havia uma praia onde
poderiam desembarcar, se a pudessem tomar; e que tudo o mais era rocha talhada,
e grande penedia, onde não havia maneira de salvação.
Verdadeiramente
que cuidarem os homens bem nisto, faz grande espanto! Vem com este galeão varar
em terra de cafres, havendo-o por melhor remédio para suas vidas, sendo este
tão perigoso: e por aqui verão para quantos trabalhos estavam guardados Manuel
de Sousa, sua mulher, e filhos. Tendo já recado da manchua, trabalharam por ir
contra aquela parte, onde lhe demorava a praia, até chegarem ao lugar, que a
manchua lhe tinha dito, e já então eram sete braças, onde largaram uma âncora,
e após isso com muita diligência guarneceram aparelhos, com que lançaram fora o
batel.
A
primeira cousa que fizeram, como tiveram batel fora, foi portar outra âncora à
terra, e já o vento era mais bonança, e o galeão estava da terra dois tiros de
besta. E vendo Manuel de Sousa como o galeão se lhe ia ao fundo sem nenhum
remédio, chamou ao mestre, e piloto, e disse-lhes, que a primeira cousa que
fizessem fosse pô-lo em terra com sua mulher e filhos, com vinte homens, que estivessem
em sua guarda, e após isso tirasse as armas, e mantimentos, e pólvora, e alguma
roupa de Cambraia, para ver se havia na terra alguma maneira de resgate de
mantimentos. E isto com fundamento de fazer forte naquele lugar com tranqueiras
de pipas, e fazerem ali algum caravelão da madeira da nau, em que pudessem
mandar recado a Sofala. Mas como já estava de cima, que acabasse este capitão
com sua mulher, e filhos, e toda sua companhia, nenhum remédio se podia cuidar,
a que a fortuna não fosse contrária; que tendo este pensamento de ali se fazer
forte, lhe tornou o vento a ventar com tanto ímpeto, e o mar cresceu tanto, que
deu com o galeão à costa, por onde não puderam fazer nada do que cuidaram. A
este tempo Manuel de Sousa, sua mulher, e filhos, e obra de trinta pessoas em
terra, e toda a mais gente estava no galeão. Dizer o perigo que tiveram na
desembarcação o capitão, e sua mulher com estas trinta pessoas, fora escusado;
mas por contar história verdadeira, e lastimosa, direi, que de três vezes que a
manchua foi à terra se perdeu, donde morreram alguns homens, dos quais, um era
o filho de Bento Rodrigues: e até então o batel não tinha ido à terra, que não
ousavam de o mandar, porque o mar andava mui bravo, e por a manchua ser mais
leve, escapou aquelas duas vezes primeiras.
Vendo o
mestre, e piloto, com a mais gente que ainda estava na nau, que o galeão ia
sobre a amarra da terra, e entenderem que a amarra de mar se lhe cortara,
porque o fundo era sujo, e havia dois dias que estavam surtos, e em amanhecendo
ao terceiro dia, que viram que o galeão ficava só sobre a amarra da terra, e o
vento começava a ventar, disse o piloto à outra gente, a tempo que já a nau tocava:
«Irmãos, antes que a nau abra, e se nos vá ao fundo, quem se quiser embarcar
comigo naquele batel o poderá fazer», e se foi embarcar, e fez embarcar o
mestre, que era homem velho, e a quem falecia já o espírito por sua idade; e
com grande trabalho, por ser o vento forte, se embarcaram no dito batel obra de
quarenta pessoas, e o mar andava tão grosso em terra, que deitou o batel em terra
feito em pedaços na praia. E quis Nosso Senhor, que desta batelada não morreu
ninguém, que foi milagre, por que antes de vir a terra o soçobrou o mar.
O
capitão, que o dia antes se desembarcara, andava na praia esforçando os homens,
e dando a mão aos que podia, os levava ao fogo que tinha feito, porque o frio era
grande. Na nau ficaram ainda o melhor de quinhentas pessoas, a saber: duzentos
portugueses, e os mais escravos; em que entrava Duarte Fernandes contramestre
do galeão, e o guardião; e estando ainda assim a nau, que já dava muitas
pancadas, lhes pareceu bom conselho alargarem a amarra por mão, por que fosse a
nau bem à terra, e não a quiseram cortar por que a ressaca os não tornasse para
o pego; e como a nau se assentou, em pouco espaço se partiu pelo meio, a saber
do mastro avante um pedaço, e outro do mastro à ré, e daí a obra de uma hora
aqueles dous pedaços se fizeram em quatro, e como as aberturas foram
arrombadas, as fazendas, e caixas vieram acima, e a gente que estava na nau, se
lançou sobre a caixaria, e madeira à terra. Morreram em se lançando, mais de
quarenta portugueses, e setenta escravos; a mais gente veio à terra por cima do
mar, e alguma por baixo, como o Nosso Senhor aprouve; e muita dela ferida dos
pregos, e madeira. Dali a quatro horas era o galeão desfeito, sem dele aparecer
pedaço tamanho como uma braça, e tudo o mar deitou em terra, com grande
tempestade.
E a
fazenda que no galeão ia, assim del-rei, como de partes, dizem que valia um
conto de ouro: porque desde que a Índia é descoberta, até então não partiu nau
·de lã tão rica. E por se desfazer a nau em tantas migalhas, não pôde o capitão
Manuel de Sousa fazer a embarcação que tinha determinado, que não ficou batel,
nem cousa sobre que pudesse armar o caravelão, nem de que o fazer, por onde lhe
foi necessário tomar outro conselho.
Vendo o
capitão. e sua companhia, que não tinham remédio de embarcação, com conselho
dos seus oficiais, e dos homens fidalgos, que em sua companhia levava, que era Pantaleão
de Sá, Tristão de Sousa, Amador de Sousa, e Diogo Mendes Dourado de Setúbal.
Assentaram que deviam de estar naquela praia, onde saíram do galeão. alguns
dias, pois ali tinham água, até lhe convalescerem os doentes. Então fizeram
suas tranqueiras de algumas arcas, e pipas, e estiveram ali doze dias, e em
todos eles lhe não veio falar nenhum negro da terra; somente aos três primeiros
apareceram nove cafres em um outeiro, e ali estariam duas horas, sem terem nenhuma
fala connosco; e como espantados se tornaram a ir. E dali a dous dias lhe
pareceu bem mandarem um homem, e um cafre do mesmo galeão, para ver se achavam
alguns negros, que com eles quisessem falar para resgatarem algum mantimento. E
estes andaram lá dous dias sem acharem pessoa viva. senão algumas casas de
palha despovoadas, por onde entenderam. que os negros fugiram com medo, e então
se tornaram ao arraial. e em algumas das casas acharam frechas metidas, que
dizem que é o seu sinal de guerra.
Dali a
três dias, estando naquele lugar, onde escaparam do galeão, lhe apareceram em
um outeiro sete, ou oito cafres com uma vaca presa, e por acenos os fizeram os
cristãos descer abaixo, e o capitão com quatro homens foi falar com eles, e
depois de os ter seguros, lhe disseram os negros por acenos, que queriam ferro.
Então o capitão mandou pôr meia dúzia de pregos, e lhos amostrou, e eles
folgaram de os ver, e se chegaram então mais para os nossos, e começaram a
tratar o preço da vaca, e estando já concertados, apareceram cinco cafres em
outro outeiro, e começaram a bradar por sua língua, que não dessem a vaca a
troco de pregos. Então se foram estes cafres, levando consigo a vaca, sem falar
palavra. E o capitão lhe não quis tomar a vaca, tendo dela mui grande
necessidade para sua mulher, e filhos.
Assim
esteve sempre com muito cuidado, e vigia, levantando-se cada noite três e
quatro vezes a rondar os quartos, o que era grande trabalho para ele; e assim
estiveram doze dias até que a gente lhe convalesceu; no cabo dos quais vendo
que já estavam todos para caminhar, os chamou a conselho, sobre o que deviam
fazer, e antes de praticarem o caso, lhes fez uma fala desta maneira.
Amigos e
senhores; bem vedes o estado a que por nossos pecados somos chegados, e eu
creio verdadeiramente que os meus só bastavam para por eles sermos postos em
tamanhas necessidades, como vedes que temos; mas é Nosso Senhor tão piedoso,
que ainda nos faz tamanha mercê, que nos não fôssemos ao fundo naquela nau,
trazendo tanta quantidade de água debaixo das cobertas; prazerá a ele, que pois
foi servido de nos levar a terra de cristãos, e os que nesta demanda acabaram
com tantos trabalhos, haverá por bem que sejam para salvação de suas almas.
Estes dias, que aqui estivemos, bem vedes, senhores, que foram necessários para
nos convalescerem os doentes que trazíamos; já agora, Nosso Senhor seja
louvado, estão para caminhar; e portanto vos ajuntei aqui para assentarmos que
caminho havemos de tomar para remédio de nossa salvação, que a determinação,
que trazíamos de fazer alguma embarcação, se nos atalhou como vistes, por não podermos
salvar da nau cousa nenhuma, para a podermos fazer. E pois senhores e irmãos,
vos vai a vida, como a mim, não será razão fazer, nem determinar cousa sem
conselho de todos. Uma mercê vos quero pedir, a qual é que me não desampareis,
nem deixeis, dado caso que eu não posso andar tanto, como os que mais andarem,
por causa de minha mulher, e filhos. E assim todos juntos quererá Nosso Senhor
pela sua misericórdia ajudar-nos.
Depois de
feita esta fala, e praticarem todos no caminho que haviam de fazer, visto não
haver outro remédio, assentaram que deviam de caminhar com a melhor ordem que
pudessem ao longo dessas praias caminho do rio, que descobriu Lourenço Marques,
e lhe prometeram de nunca o desamparar: e logo o puseram por obra; ao qual rio
haveria cento e oitenta léguas por costa, mas eles andaram mais de trezentas
pelos muitos rodeios, que fizeram em quererem passar os rios, e brejos, que
achavam no caminho: e despois tornavam ao mar, no que gastaram cinco meses e
meio.
Desta
praia onde se perderam em 31. graus aos sete de julho de cinquenta e dous,
começaram a caminhar com esta ordem, que se segue: a saber Manuel de Sousa com
sua mulher e filhos com oitenta portugueses, e com escravos, e André Vaz o
piloto na sua companhia com uma bandeira com um crucifixo erguido, caminhava na
vanguarda, e D. Leonor sua mulher, levavam-na escravos em um andor. Logo atrás
vinha o mestre do galeão com a gente do mar, e com as escravas. Na retaguarda
caminhava Pantaleão de Sá com o resto dos portugueses, e escravos, que seriam
até duzentas pessoas, e todas juntas seriam quinhentas; das quais eram cento e
oitenta portugueses. Desta maneira caminharam um mês com muitos trabalhos,
fomes, e sedes, porque em todo este tempo não comiam senão o arroz que escapara
do galeão, e algumas frutas do mato, que outros mantimentos da terra não
achavam, nem quem os vendesse; por onde passaram tão grande esterilidade, qual
se não pode crer, nem escrever.
Em todo
este mês poderiam ter caminhado cem léguas: e pelos grandes rodeios, que faziam
no passar dos rios, não teriam andado trinta léguas por costa: e já então
tinham perdidas dez, ou doze pessoas; só um filho bastardo de Manuel de Sousa
de dez ou onze anos, que vindo já muito fraco de fome, ele, e um escravo, que o
trazia às costas, se deixaram ficar atrás. Quando Manuel de Sousa perguntou por
ele, que lhe disseram que ficava atrás obra de meia légua, esteve para perder o
sizo, e por lhe parecer que vinha na traseira com seu tio Pantaleão de Sá, como
algumas vezes acontecia, o perdeu assim; e logo prometeu quinhentos cruzados a
dous homens, .que tornasse em busca dele, mas não houve quem os quisesse aceitar,
por ser já perto da noite, e por causa dos tigres, e leões; porque como ficava
o homem atrás, o comiam; por onde lhe foi forçado não deixar o caminho que
levava, e deixar assim o filho, onde lhe ficaram os olhos. E aqui se poderá ver
quantos trabalhos foram os deste fidalgo antes de sua morte. Era também perdido
António de Sampaio sobrinho de Lopo Vaz de Sampaio, governador que foi da Índia:
e cinco, ou seis homens portugueses, e alguns escravos de pura fome, e trabalho
do caminho.
Neste
tempo tinham já pelejado algumas vezes, mas sempre os cafres levavam a pior, e
em uma briga lhe mataram Diogo Mendes Dourado, que até sua morte tinha pelejado
mui bem como valente cavaleiro. Era tanto o trabalho, assim da vigia, como da
fome, e caminho, que cada dia desfalecia mais a gente, e não havia dia que não ficasse
uma ou duas pessoas por essas praias, e pelos matos, por não poderem caminhar;
e logo eram comidos dos tigres, e serpentes, por haver na terra grande
quantidade. E certo, que ver ficar estes homens, que cada dia lhe ficavam vivos
por esses desertos, era cousa de grande dor e sentimento para uns, e para
outros; porque o que ficava, dizia aos outros que caminhavam de sua companhia,
por ventura a pais, e a irmãos, e amigos, que se fossem muito embora, que os
encomendassem ao Senhor Deus. Fazia isto tamanha mágoa ver ficar o parente, e o
amigo sem lhe poder valer, sabendo que dali a pouco espaço havia de ser comido
de feras alimárias; que pois faz tanta mágoa a quem o ouve, quanta mais fará a
quem o viu e passou.
Com
grandíssima desaventura indo assim prosseguindo, ora se metiam no sertão a
buscar de comer, e a passar rios, e se tornavam ao longo do mar subindo serras
mui altas; ora descendo outras de grandíssimo perigo: e não bastavam ainda
estes trabalhos, senão outros muitos, que os cafres lhe davam. E assim
caminharam obra de dous meses e meio, e tanta era a fome, e a sede que tinham, que
os mais dos dias aconteciam cousas de grande admiração, das quais contarei
algumas mais notáveis.
Aconteceu
muitas vezes entre esta gente vender-se um púcaro de água de um quartilho por
dez cruzados, e em um caldeirão que levava quatro canadas, se fazia cem cruzados;
e porque nisto às vezes havia desordem, o capitão mandava buscar um caldeirão
dela, por não haver outra vasilha maior na companhia, e dava por isso a quem a
ia buscar cem cruzados: e ele por sua mão a repartia, e a que tomava para sua
mulher, e filhos, era a oito e dez cruzados o quartilho; e pela mesma maneira
repartia a outra, de modo que sempre pudesse remediar, que com o dinheiro, que
em dia se fazia naquela água, ao outro houvesse quem a fosse buscar, e se
pusesse a esse risco pelo interesse. E além disto passavam grandes fomes, e
davam muito dinheiro por qualquer peixe que se achava na praia, ou por qualquer
animal do monte.
Vindo
caminhando por suas jornadas, segundo era a terra que achavam, e sempre com os
trabalhos que tenho dito: seriam já passados três meses que caminhavam com determinação
de buscar aquele rio de Lourenço Marques, que é a aguada de Boa Paz. Havia já
muitos dias que se não mantinham senão de frutas, que acaso se achavam, e de
ossos torrados: e aconteceu muitas vezes vender-se no arraial uma pele de uma
cobra por quinze cruzados: e ainda que fosse seca a lançavam na água, e assim a
comiam.
Quando
caminhavam pelas praias, mantinham-se com marisco, ou peixe, que o mar lançava
fora. E no cabo deste tempo vieram ter com um cafre, senhor de duas aldeias,
homem velho, e que lhes pareceu de boa condição, e assim o era pelo agasalho, que
nele acharam, e lhes disse, que não passassem dali, que estivessem em sua
companhia, e que ele os manteria o melhor que pudesse; porque na verdade aquela
terra era falta de mantimentos, não por ela os deixar de dar, senão porque os
cafres são homens que não semeiam senão muito pouco, nem comem senão do gado
bravo que matam.
Assim que
este rei cafre apertou muito com Manuel de Sousa, e sua gente que estivera com
ele, dizendo-lhe que tinha guerra com outro rei, por onde eles haviam de
passar, e queria sua ajuda: e que se passassem avante, que soubessem certo que
haviam de ser roubados deste rei, que era mais poderoso que ele; de maneira que
pelo proveito, e ajuda que esperava desta companhia, e também pela notícia que
já tinha de portugueses por Lourenço Marques, e António Caldeira, que ali
estiveram, trabalhava quanto podia, por que dali não passassem; e estes dous
homens lhe puseram nome Garcia de Sá, por ser velho, e ter muito o parecer com
ele, e ser bom homem, que não há dúvida, senão que em todas as nações há maus,
e bons; e por ser tal fazia agasalhos; e honrava aos portugueses: e trabalhou
quanto pôde que não passassem avante, dizendo-lhe que haviam de ser roubados
daquele rei com que ele tinha guerra. E em se determinar se detiveram ali seis dias.
Mas como parece que estava determinado acabar Manuel de Sousa nesta jornada com
a maior parte de sua companhia, não quiseram seguir o conselho deste reizinho,
que os desenganava.
Vendo o
rei, que todavia o capitão determinava de se partir dali, lhe pediu que antes
que se partisse, o quisesse ajudar com alguns homens de sua companhia contra um
rei, que atrás lhe ficava; e parecendo-lhe a Manuel de Sousa, e aos
portugueses, que se não podiam escusar de fazer o que lhe pedia, assim pelas
boas obras, e agasalho, que dele receberam, como por razão de o não escanda lizar,
que estava em seu poder, e de sua gente; pediu a Pantaleão de Sá seu cunhado,
que quisesse ir com vinte homens portugueses ajudar ao rei seu amigo; foi
Pantaleão de Sá com os vinte homens, e quinhentos cafres, e seus capitães, e
tornaram atrás por onde eles já tinham passado seis léguas, e peleijaram com um
cafre, que andava levantado, e tomaram-lhe todo o gado, que são os seus
despojos, e trouxeram-no ao arraial adonde estava Manuel de Sousa com el-rei, e
nisto gastaram cinco ou seis dias.
Depois
que Pantaleão de Sá veio daquela guerra em que foi ajudar ao reizinho, e a
gente que com ele foi, e descansou do trabalho que lá tiveram; tornou o capitão
a fazer conselho sobre a determinação de sua partida, e foi tão fraco, que
assentaram que deviam de caminhar, e buscar aquele rio de Lourenço Marques, e
não sabiam que estavam nele. E porque este rio é o da água de Boa Paz com três
braços, que todos vêm entrar ao mar em uma foz, e eles estavam no primeiro: E
sem embargo de verem ali uma gota vermelha, que era sinal de virem já ali
portugueses, os cegou a sua fortuna, que não quiseram senão caminhar avante. E
porque haviam de passar o rio, e não podia ser senão em almadias, por ser
grande, quis o capitão ver se podia tomar sete ou oito almadias, que estavam
fechadas com cadeias, para passar nelas o rio, que el-rei não lhes queria dar,
porque toda a maneira buscava para não passarem, pelos desejos que tinha de os
ter consigo. E para isso mandou certos homens a ver se podiam tomar as
almadias; dous dos quais vieram e disseram que lhe era cousa dificultosa para
se poder fazer. E os que se deixaram ficar já com malícia, houveram uma das
almadias à mão, e embarcaram-se nela, e foram-se pelo rio abaixo, e deixaram a
seu capitão. E vendo ele que nenhuma maneira havia de passar o rio, senão por
vontade do rei, lhe pediu o quisesse mandar passar da outra banda nas suas almadias,
e que ele pagaria bem à gente que os levasse; e pelo contentar lhe deu algumas
das suas armas, por que o largasse, e o mandasse passar.
Então o
rei foi em pessoa com ele, e estando os portugueses receosos de alguma traição
ao passar do rio, lhe rogou o capitão Manuel de Sousa, que se tornasse ao lugar
com sua gente, e que o deixasse passar à sua vontade com a sua, e lhe ficassem
somente os negros das almadias. E como no reizinho negro não havia malícia, mas
antes os ajudava no que podia, foi cousa leve de acabar com ele que se tornasse
para o lugar, e logo se foi, e deixou passar à sua vontade. Então mandou Manuel
de Sousa passar trinta homens da outra banda nas almadias, com três
espingardas; e como os trinta homens foram da outra banda, o capitão, sua
mulher e filhos passaram além, e após eles toda a mais gente, e até então nunca
foram roubados, e logo se puseram em ordem de caminhar.
Haveria
cinco dias que caminhavam para o segundo rio, e teriam andado vinte léguas
quando chegaram ao rio do meio, e ali acharam negros, que os encaminharam para
o mar, e isto era já ao sol-posto; e estando à borda do rio, viram duas
almadias grandes, e ali assentaram o arraial em uma areia onde dormiram aquela
noite; e este rio era salgado, e não havia nenhuma água doce ao redor, senão
uma que lhe ficava atrás. E de noite foi a sede tamanha no arraial, que se
houveram de perder; quis Manuel de Sousa mandar buscar alguma água, e não houve
quem quisesse ir menos de cem cruzados cada caldeirão, e os mandou buscar, e em
cada um dia fazia duzentos; e se o não fizera assim, não se pudera valer.
E sendo o
comer tão pouco como atrás digo, a sede era desta maneira; porque queria Nosso
Senhor que a água lhe servisse de mantimentos. Estando naquele arraial ao outro
dia perto da noite, viram chegar as três almadias de negros, que lhe disseram
por uma negra do arraial, que começava já entender alguma cousa, que ali viera
um navio de homens como eles, e que já era ido. Então lhe mandou dizer Manuel
de Sousa se os queriam passar da outra banda: e os negros responderam, que era
já noite (porque cafres nenhuma cousa fazem de noite) que ao outro dia os
passariam se lhe pagasse. Como amanheceu vieram os negros com quatro almadias,
e sobre preço de uns poucos de pregos, começaram a passar a gente, passando primeiro
o capitão alguma gente para guarda do passo, e embarcando-se em uma almadia com
sua mulher e filhos, para da outra banda esperar o resto da sua companhia; e
com ele iam as outras três almadias carregadas de gente.
Também se
diz que o capitão vinha já naquele tempo maltratado do miolo, da muita vigia, e
muito trabalho, que carregou sempre nele, mais que em todos os outros. E por
vir já desta maneira, e cuidar que lhe queriam os negros fazer alguma traição,
lançou mão à espada, e arrancou dela para os negros, que iam remando dizendo: «Perros,
aonde me levais?»
Vendo os
negros a espada nua, saltaram ao mar, e ali esteve em risco de se perder. Então
lhe disse sua mulher, e alguns que com eles iam, que não fizesse mal aos
negros, que se perderiam. Em verdade, quem conhecera a Manuel de Sousa, e
soubera sua discrição, e brandura, e lhe vira fazer isto, bem poderia dizer que
já não ia em seu perfeito juízo; porque era discreto, e bem atentado: e dali
por diante ficou de maneira, que nunca mais governou a sua gente, como até ali
o tinha feito. E chegando da outra banda, se queixou muito da cabeça, e nela
lhe ataram toalhas, e ali se tornaram a ajuntar todos.
Estando
já da outra banda para começar a caminhar, viram um golpe de cafres, e vendo-os
se puseram em som de pelejar, cuidando que vinham para os roubar; e chegando
perto da nossa gente, começaram a ter fala uns com os outros, perguntando os
cafres aos nossos, que gente era, ou que buscava? Responderam-lhe que eram cristãos,
que se perderam em uma nau, e que lhe rogavam
os guiassem para um rio grande que estava mais avante, e que se tinham
mantimentos, que lhos trouxessem, e lhos comprariam. E por uma cafra, que era
de Sofala, lhe disseram os negros, que se queriam mantimentos, que fossem com
eles a um lugar onde estava o seu rei, que lhe faria muito agasalho. A este
tempo seriam ainda cento e vinte pessoas; e já então D. Leonor era uma das que
caminhavam a pé, e sendo uma mulher fidalga, delicada, e moça, vinha por
aqueles ásperos caminhos tão trabalhosos, como qualquer robusto homem do campo,
e muitas vezes consolava as da sua companhia, e ajudava a trazer seus filhos.
Isto foi depois que não houve escravos para o andor em que vinha. Parece
verdadeiramente que a graça de Nosso Senhor supria aqui; porque sem ela não
pudera uma mulher tão fraca, e tão pouco costumada a trabalhos, andar tão
compridos, e ásperos caminhos, e sempre com tantas fomes, e sedes, que já então
passavam de trezentas léguas as que tinham andado, por causa dos grandes
rodeios.
Tornando
à história. Despois que o capitão, e sua companhia tiveram entendido, que o rei
estava perto dali, tomaram os cafres por sua guia; e com muito recato
caminharam com eles para o lugar que lhe diziam, com tanta fome, e sede, quanto
Deus sabe. Dali ao lugar onde estava o rei havia uma légua, e como chegaram,
lhe mandou dizer o cafre, que não entrassem no lugar; porque é coisa que eles
muito escondem, mas que lhe fossem pôr ao pé de umas árvores, que lhe
mostraram, e que ali lhe mandaria dar de comer. Manuel de Sousa o fez assim,
como homem que estava em terra alheia, e que não tinham sabido tanto dos
cafres, como agora sabemos por esta perdição, e pela da nau S. Bento, que cem
homens de espingarda atravessariam toda a Cafraria; porque maior medo tem
delas, que do mesmo demónio.
Despois
de assim estarem agasalhados à sombra das árvores, lhes começou a vir algum
mantimento por seu resgate de pregos. E ali estiveram cinco dias,
parecendo-lhes que poderiam estar até vir navio da Índia, e assim lho diziam os
negros. Então pediu Manuel de Sousa uma casa ao rei cafre para se agasalhar com
sua mulher e filhos. Respondeu-lhe o cafre que lha dariam; mas que a sua gente
não podia estar ali junta, porque se não poderiam manter por haver falta de
mantimentos na terra: que ficasse ele com sua mulher e filhos, com algumas
pessoas quais ele quisesse, e a outra gente se repartisse pelos lugares; e que
ele lhe mandaria dar mantimentos, e casas até vir algum navio. Isto era a
ruindade do rei, segundo parece, pelo que ao despois lhe fez; por onde está
clara a razão que disse, que os cafres têm grande medo de espingardas; porque
não tendo ali os portugueses mais que cinco espingardas, e até cento e vinte
homens se não atreveu o cafre a pelejar com eles; e a fim de os roubar os
apartou uns dos outros para muitas partes, como homens que estavam tão chegados
à morte de fome; e não sabendo quanto melhor fora não se apartarem, se
entregaram à fortuna, e fizeram a vontade àquele rei, que tratava sua perdição,
e nunca quiseram tomar o conselho do reizinho, que lhes falava verdade, e lhes
fez o bem que pôde. E por aqui verão os homens, como nunca hão de dizer, nem
fazer cousa em que cuidem que eles são os que acertam ou podem, senão pôr tudo
nas mãos de Deus Nosso Senhor.
Despois
que o rei cafre teve assentado com Manuel de Sousa, que os portugueses se
dividissem por diversas aldeias, e lugares para se poderem manter, lhe disse
também que ele tinha ali capitães seus, que haviam de levar a sua gente, a
saber, cada um os que lhe entregassem para lhe darem de comer; e isto não podia
ser senão com ele mandar aos portugueses, que deixassem as armas, porque os cafres
haviam medo deles enquanto as viam, e que ele as mandaria meter em uma casa,
para lhas dar tanto que viesse o navio dos portugueses.
Como
Manuel de Sousa já então andava muito doente, e fora de seu perfeito juízo, não
respondeu, como fizera estando em seu entendimento; respondeu, que ele falaria
com os seus. Mas como a hora fosse chegada, em que havia de ser roubado, falou
com eles, e lhes disse: que nem havia de passar dali, de uma ou de outra
maneira havia de buscar remédio de navio, ou outro qualquer que Nosso Senhor
dele ordenasse; porque aquele rio em que estavam era de Lourenço Marques; e o
seu piloto André Vaz assim lho dizia: que quem quisesse passar dali, que o
poderia fazer, se lhe bem parecesse, mas que ele não podia, por amor de sua
mulher e filhos, que vinha já mui debilitada dos grandes trabalhos, que não
podia já andar, nem tinha escravos que o ajudassem. E portanto a sua
determinação era acabar com sua família, quando Deus disso fosse servido; e que
lhe pedia, que os que dali passassem, e fossem ter com alguma embarcação de
portugueses, que lhe trouxessem ou mandassem as novas, e os que ali quisessem
ficar com ele, o poderiam fazer; e por onde ele passasse passariam eles.
E porém
que para os negros se fiarem deles e não cuidarem que eram ladrões, que andavam
a roubar, que era necessário entregarem as armas, para remediar tanta
desaventura como tinham de fome havia tanto tempo. E já então o parecer de
Manuel de Sousa, e dos que com ele consentiram, não eram de pessoas que estavam
em si; porque se bem olharem, enquanto tiveram suas armas consigo, nunca os
negros chegaram a eles. Então mandou o capitão que pusessem as armas, em que
despois de Deus estava sua salvação, e contra a vontade de alguns, e muito mais
contra a de D. Leonor, as entregaram; mas não houve quem o contradissesse senão
ela, ainda que lhe aproveitou pouco. Então disse: «Vós entregais as armas, agora
me dou por perdida com toda esta gente.» Os negros tomaram as armas, e as
levaram a casa do rei cafre.
Tanto que
os cafres viram os portugueses sem armas, como já tinham concertado a traição
os começaram logo a apartar, e roubar, e os levaram por esses matos, cada um
como lhe caía a sorte. E acabado de chegarem aos lugares, os levaram já
despidos, sem lhe deixar sobre si cousa alguma, e com muita pancada os lançavam
fora das aldeias. Nesta companhia não ia Manuel de Sousa, que com sua mulher e
filhos, e com o piloto André Vaz, e obra de vinte pessoas ficavam com o rei,
porque traziam muitas joias, e rica pedraria, e dinheiro; e afirmam que o que
esta companhia trouxe até ali, valia mais de cem mil cruzados. Como Manuel de
Sousa com sua mulher, e com aquelas vinte pessoas foi apartado da gente, foram
logo roubados de tudo o que traziam, somente os não despiu; e o rei lhe disse
que se fosse muito embora em busca de sua companhia, que lhe não queria fazer
mais mal, nem tocar em sua pessoa, nem de sua mulher. Quando Manuel de Sousa
isto viu, bem se lembraria quão grande erro tinha feito em dar as armas, e foi
força de fazer o que lhe mandavam, pois não era mais em sua mão.
Os outros
companheiros, que eram noventa, em que entrava Pantaleão de Sá, e outros três
fidalgos, ainda que todos foram apartados uns dos outros, poucos e poucos, segundo
se acertaram, despois que foram roubados, e despidos pelos cafres a quem foram
entregues por o rei, se tornaram a ajuntar; porque era perto uns dos outros, e juntos
bem maltratados, e bem tristes, faltando-lhe as armas, vestidos, e dinheiro
para resgate de seu mantimento, e sem o seu capitão, começaram de caminhar.
E como já
não levavam figura de homens, nem quem os governasse, iam sem ordem, por
desvairados caminhos: uns por matos, e outros por serras, se acabaram de
espalhar, e já então cada um não curava mais que fazer aquilo em que lhe
parecia que podia salvar a vida, quer entre cafres, quer entre outros mouros,
porque já então não tinha conselho, nem quem os ajuntasse para isso. E como
homens que andavam já de todo perdidos, deixarei agora de falar neles, e
tornarei a Manuel de Sousa, e a desditosa de sua mulher e filhos.
Vendo-se
Manuel de Sousa roubado, e despedido del-rei, que fosse buscar sua companhia, e
que já então não tinha dinheiro, nem armas, nem gente para as tomar: e dado caso
que já havia dias que vinha doente da cabeça, todavia sentiu muito esta
afronta. Pois que se pode cuidar de uma mulher muito delicada, vendo-se em
tantos trabalhos, e com tantas necessidades; e sobre todas, ver seu marido
diante de si tão maltratado, e que não podia já governar, nem olhar por seus
filhos? Mas como mulher de bom juízo, com o parecer desses homens, que ainda
tinha consigo, começaram a caminhar por esses matos, sem nenhum remédio, nem
fundamento, somente o de Deus. A este tempo estava ainda André Vaz o piloto em
sua companhia, e o contramestre, que nunca a deixou, e uma mulher ou duas
portuguesas, e algumas escravas. Indo assim caminhando, lhes pareceu bom
conselho seguir os noventa homens, que avante iam roubados, e havia dous dias,
que caminhavam, seguindo suas pisadas. E D. Leonor ia já tão fraca, tão triste,
e desconsolada, por ver seu marido da maneira que ia, e por se ver apartada da
outra gente, e ter por impossível poder-se ajuntar com eles, que cuidar bem nisto
é cousa para quebrar os corações! Indo assim caminhando, tornaram outra vez os
cafres a dar nele, e em sua mulher, e em esses poucos que iam em sua companhia,
e ali os despiram, sem lhe deixarem sobre si cousa alguma. Vendo-se ambos desta
maneira com duas crianças muito tenras diante de si deram graças a Nosso Senhor.
Aqui
dizem que D. Leonor se não deixava despir, e que às punhadas, e às bofetadas se
defendia, porque era tal, que queria antes que a matassem os cafres, que ver-se
nua diante da gente, e não há dúvida que logo ali acabara sua vida, se não fora
Manuel de Sousa, que lhe rogou se deixasse despir, que lhe lembrava que
nasceram nus, e pois Deus daquilo era servido, que o fosse ela. Um dos grandes
trabalhos que sentia, era verem dous meninos pequenos seus filhos, diante de si
chorando, pedindo de comer, sem lhe poderem valer. E vendo-se D. Leonor
despida, lançou-se logo no chão, e cobriu-se toda com os seus cabelos, que eram
muito compridos, fazendo uma cova na areia, onde se meteu até à cintura, sem
mais se erguer dali. Manuel de Sousa foi então a uma velha sua aia, que lhe
ficara ainda uma mantilha rota, e lha pediu para cobrir D. Leonor, e lha deu;
mas contudo nunca mais se quis erguer daquele lugar, onde se deixou cair,
quando se viu nua.
Em verdade,
que não sei quem por isto passe sem grande lástima, e tristeza. Ver uma mulher
tão nobre, filha, e mulher de fidalgo tão honrado, tão maltratada, e com tão
pouca cortesia! Os homens que estavam ainda em sua companhia, quando viram a
Manuel de Sousa, e sua mulher despidos, afastaram-se deles um pedaço, pela
vergonha, que houveram de ver assim seu capitão, e D. Leonor. Então disse ela a
André Vaz o piloto: «Bem vedes como estamos, e que já não podemos passar daqui,
e que havemos de acabar por nossos pecados: ide-vos muito embora, fazei por vos
salvar, e encomendai-nos a Deus; e se fordes à Índia, e a Portugal em algum
tempo, dizei como nos deixastes a Manuel de Sousa, e a mim com meus filhos.» E
eles vendo que por sua parte não podiam remediar a fadiga de seu capitão, nem a
pobreza, e miséria de sua mulher e filhos, se foram por esses matos, buscando
remédio de vida.
Despois
que André Vaz se apartou de Manuel de Sousa e sua mulher, ficou com ele Duarte
Fernandes contramestre do galeão, e algumas escravas, das quais se salvaram três,
que vieram a Goa, que contaram como viram morrer D. Leonor. E Manuel de Sousa
ainda que estava maltratado do miolo, não lhe esquecia a necessidade que sua
mulher e filhos passavam de comer. E sendo ainda manco de uma ferida que os
cafres lhe deram em uma perna, assim maltratado, se foi ao mato buscar frutas
para lhe dar de comer; quando tornou, achou D. Leonor muito fraca, assim de
fome, como de chorar, que despois que os cafres a despiram, nunca mais dali se
ergueu, nem deixou de chorar; e achou um dos meninos mortos, e por sua mão o
enterrou na areia. Ao outro dia tornou Manuel de Sousa ao mato a buscar alguma
fruta, e quando tornou, achou D. Leonor falecida, e o outro menino, e sobre ela
estavam chorando cinco escravos com grandíssimos gritos.
Dizem que
ele não fez mais, quando a viu falecida, que apartar as escravas dali, e
assentar-se perto dela, com o rosto posto sobre uma mão, por espaço de meia
hora, sem chorar, nem dizer cousa alguma; estando assim com os olhos postos
nela: e no menino fez pouca conta. E acabando este espaço se ergueu, e começou
a fazer uma cova na areia com ajuda das escravas, e sempre sem se falar palavra
a enterrou, e o filho com ela, e acabado isto, tornou a tomar o caminho que
fazia, quando ia a buscar as frutas, sem dizer nada às escravas, e se meteu
pelo mato, e nunca mais o viram. Parece que andando por esses matos, não há
dúvida senão que seria comido de tigres, e leões. Assim acabaram sua vida,
mulher e marido, havendo seis meses, que caminhavam por terras de cafres com tantos
trabalhos.
Os homens
que escaparam de toda esta companhia, assim dos que ficaram com Manuel de Sousa
quando foi roubado, como dos noventa, que iam diante dele caminhando, seriam
até oito portugueses, e catorze escravos, e três escravas das que estavam com
D. Leonor ao tempo que faleceu. Entre os quais foi Pantaleão de Sá. e Tristão
de Sousa, e o piloto André Vaz, e Baltasar de Sequeira, e Manuel de Castro, e
este Álvaro Fernandes. E andando estes já na terra sem esperança de poderem vir
à terra de cristãos; foi ter àquele rio um navio em que ia um parente de Diogo
de Mesquita fazer marfim, onde achando novas que havia portugueses perdidos
pela terra, os mandou buscar, e os resgatou a troco de contas, e cada pessoa
custaria dous vinténs de contas, que entre os negros é cousa que eles mais
estimam; e se neste tempo fora vivo Manuel de Sousa, também fora resgatado. Mas
parece que foi assim melhor para sua alma, pois Nosso Senhor foi servido. E
estes foram ter a Moçambique a vinte e cinco de maio de mil e quinhentos e
cinquenta e três anos.
Pantaleão
de Sá andando vagamundo muito tempo pelas terras dos cafres, chegou ao paço
quase consumido com fome, nudez, e trabalho de tão dilatado caminho, e
chegando-se à porta do paço, pediu aos áulicos lhe alcançassem do rei algum
subsídio; recusaram eles pedir-lhe tal cousa, desculpando-se com uma grande
enfermidade, que o rei havia tempos padecia: e perguntando-lhes o ilustre
português, que enfermidade era, lhe responderam, que uma chaga em uma perna tão
pertinaz, e corrupta, que todos os instantes lhe esperavam a morte; ouviu ele
com atenção, e pediu fizessem sabedor ao rei da sua vinda, afirmando que era
médico, e que poderia talvez restituir-lhe a saúde; entram logo muito alegres,
noticiam-lhe o caso, pede instantemente o rei, que lho levem dentro; e despois
que Pantaleão de Sá viu a chaga lhe disse: «Tenha muita confiança, que
facilmente receberá saúde», e saindo para fora, se pôs a considerar a empresa
em que se tinha metido, donde não poderia escapar com vida, pois não sabia
cousa alguma que pudesse aplicar-lhe; como quem tinha aprendido mais a tirar
vidas, que a curar achaques para as conservar. Nesta consideração, como quem já
não fazia caso da sua, e apetecendo antes morrer uma só vez do que tantas;
ourina na terra, e feito um pouco de lodo, entrou dentro a pôr-lho na quase
incurável chaga. Passou pois aquele dia, e ao seguinte, quando o ilustre Sá
esperava mais a sentença da sua morte, do que remédio algum para a vida tanto
sua como do rei, saem fora os palacianos com notável alvoroço, e querendo-o
levar em braços, lhes perguntou a causa de tão súbita alegria; responderam que
a chaga com o medicamento que se lhe aplicara, gastara todo o podre, e aparecia
só a carne, que era sã, e boa. Entrou dentro o fingido médico, e vendo que era
como eles afirmavam, mandou continuar com o remédio; com o qual em poucos dias
cobrou inteira saúde; o que visto, além de outras honras puseram a Pantaleão de
Sá em um altar, e venerando-o como divindade, lhe pediu el-rei ficasse no seu
paço, oferecendo-lhe ametade do seu Reino; e senão que lhe faria tudo o que
pedisse: recusou Pantaleão de Sá a oferta; afirmando lhe era preciso voltar
para os seus. E mandando o rei trazer uma grande quantia de ouro, e pedraria, o
premiou grandemente, mandando juntamente aos seus o acompanhassem até
Moçambique.
Fonte:
Naufrágio de Sepúlveda: história trágico-marítima, Bernardo Gomes de Brito.
Lisboa, Parque EXPO 98, S. A., julho de 1996. ISBN: 972-6127-37-5
Título
original: Naufrágio do Galeão Grande “São João” na Terra do Natal no Ano de
1552, Bernardo Gomes de Brito (compilação) (1735 e 1736), História Trágico-Marítima (2 Volumes), Lisboa,
Officina da Congregação do Oratório.
Profecia do Adamastor (em Os
Lusíadas, 1572) sobre o episódio trágico de Manuel de Sousa Sepúlveda e
da esposa
O episódio trágico da morte da família Sepúlveda é relatado pelo Adamastor com algum pormenor. O destaque dado a este acontecimento justifica-se por ser uma história trágica de amor, realidade que se aproxima da experiência pessoal do gigante, dado ter vivido, também ele, uma história de amor infeliz. | Letras & Companhia. Português 9.º Ano. Carla Marques e Inês Silva. Edições Asa, 2013.
46
«Outro
também virá, de honrada fama,
Liberal,
cavaleiro, enamorado,
E
consigo trará a fermosa dama
Que
Amor por grão mercê lhe terá dado.
Triste
ventura e negro fado os chama
Neste
terreno meu, que, duro e irado,
Os
deixará dum cru naufrágio vivos,
Pera
verem trabalhos excessivos.
47
«Verão
morrer com fome os filhos caros,
Em
tanto amor gerados e nacidos;
Verão
os Cafres, ásperos e avaros,
Tirar
à linda dama seus vestidos;
Os
cristalinos membros e perclaros
À
calma, ao frio, ao ar, verão despidos,
Depois
de ter pisada, longamente,
Cos
delicados pés a areia ardente.
48
«E
verão mais os olhos que escaparem
De
tanto mal, de tanta desventura,
Os
dous amantes míseros ficarem
Na
férvida, implacábil espessura.
Ali,
despois que as pedras abrandarem
Com
lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados,
as almas soltarão
Da
fermosa e misérrima prisão.»
Linhas de leitura:
- Síntese da história de Manuel de Sousa Sepúlveda e da esposa profetizada pelo gigante nas estâncias 46 a 48:
- Manuel de Sepúlveda e sua família naufragam na região do Cabo (est. 46, vv. 1, 2, 3, 4 e 7).
- Conseguem chegar a terra (est. 46, v. 6).
- Os filhos de Manuel de Sepúlveda morrem (est. 47, v. 1).
- Os nativos roubaram as roupas à mulher de Manuel de Sepúlveda (est. 47, vv. 3 e 4).
- A mulher de Manuel de Sepúlveda sofreu com as condições climatéricas (est. 47, vv. 5 e 6).
- O casal acabou por falecer na floresta (est. 48, vv. 3 e 4).
- Paráfrase:
- Est. 46: Viria outro também bem-afamado, generoso, valente, enamorado, acompanhado da sua amada. Escapariam vivos a um naufrágio naquela costa para sofrerem suplícios extraordinários.
- Est. 47: Veriam morrer os filhos à fome; veriam a dama, depois de longas marchas na areia escaldante, ser despida pelos Cafres cruéis e cobiçosos.
- Est. 48: E os que escapassem deste desastre veriam os dois amantes desaparecerem no areal ardente e hostil. Ali, abraçados, as suas almas se libertariam da prisão do corpo, belo e desgraçado.
(Os Lusíadas. Edição organizada por António José Saraiva. Porto,
Figueirinhas, 1978)
- Recursos
expressivos:
- Sinédoque: «os olhos», est. 48, v. 1 (sinédoque das pessoas que viram esta desgraça).
- Eufemismo: «ficarem», est. 48, v. 3.
- Personificação: «as pedras abrandarem», est. 48, v. 5 – comoverem.
- Metáfora: «as almas soltarão / Da fermosa e misérrima prisão», est. 48, vv. 7-8 – o corpo é associado a uma prisão da alma, pelo que a morte permitirá a libertação da alma.
Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa
Sepúlveda e Dona Leonor De Sá Sua Mulher | Jerónimo Corte Real, 1594
CANTO I
RETRATO
DE D. LEONOR DE SÁ
Criava-se Lianor, crescendo
sempre
Em suma perfeição, suma beleza,
E crescendo só nela as outras
graças
Por grandes fermosuras
repartidas,
Produziam-se dos seus fermosos
olhos
Efeitos mil, e extremos
diferentes,
Que olhando davam vida, e outras
vezes
Olhando cem mil vidas destruíam.
A branca cor do rosto acompanhada
De uma cor natural honesta e
pura,
E a cabeça de crespo ouro
coberta,
Lembrança do mais alto céu
faziam.
Praxíteles nem Fídias não
lavraram
De branquíssimo mármore igual
corpo;
Nem aquele, que Zuxis entre
tantas
Fermosuras deixou por mais
perfeito,
Não se igualava a este, antes
ficava
Abatido, e julgado em pouco
preço;
Que mal pode igualar-se humano
engenho
Co'aquilo, em que Deus tal saber
nos mostra.
Da boca o suave riso alegra os
ares,
Mostrando entre rubis orientais
perlas
E sobre tudo, quanto a natureza
Lhe deu perfeito, a graça se
avantaja.
No peito ebúrneo as pomas, que em
brancura
Levam da neve o justo preço e a
palma,
Apartando-se, deixam de açucena
Alvíssima um florido e fresco
vale.
Quem pode (sem perder-se) louvar
cousa
Onde não chega humano
entendimento?
Oh, fortuna cruel, que fim tão
triste
Guardaste para uma obra tão
perfeita!
CANTO VI
MANUEL DE
SOUSA PARTE DE COCHIM
Com vela inchada vai a nau
cortando
O transparente campo de Neptuno,
Impelida por Zéfiro; atrás deixa
Um rasto de salgada branca
escuma;
Foge-lhe a conhecida terra; fogem
Num momento a grão praia, o
porto, a gente:
Altas frondosas árvores de vista
Se perdem já, e em névoa se
convertem:
A costa já se vê toda confusa,
Mal distintos os montes e agras
serras,
E quanto mais se aparta, tanto em
grossos,
Turvos, densos vulcões, tudo se
muda.
Ao norte deixa já todas as
terras,
Do soberbo Idalcão Rei poderoso,
E deixa Baçaim, cidade insigne,
Soberba em outro tempo, humilde
agora.
Da cidade Taná, pouco distante,
Deixa as grandes ruínas, que do
tempo
(Amigo de mudar estados) foram
Convertidas em vil, triste
dissenho.
Em três mil e trezentas casas,
nela
Telas de ouro e de prata se
teciam,
Com sedas outras mais de várias cores;
Agora já não tem mais que a
memória.
Também deixa Salsete, e o animal
fero,
Feito de pedra, igual a um alto
monte;
E o estranho e admirável edifício
Debaixo de alta rocha fabricado.
Obeliscos gerais da natureza,
Sem artifício humano, aqui se
mostram;
Obra, onde se vê claro o saber
alto
E aquela alta divina
omnipotência.
CANTO VII
A
TEMPESTADE
Cobre-se ó céu de grossas negras
nuvens,
Os ventos mais e mais cada hora
crescem,
Já se escurece o céu, já. com
soberba
Inchadas grossas ondas se levantam.
A nau começa já passar trabalho,
Já começa gemer, e em tal afronta
O apito soa, brada o mestre,
acodem
Com presteza varões no mar
expertos.
Põe-se o fero Vulturno junto ao
cabo,
Levanta lá no céu furiosas ondas;
Austro bramando corre ali com
fúria,
Dando um balanço à nau que quase
a rende,
Vem com grande furor Bóreas
raivoso,
Comete por davante, o passo
impide,
Encontra as grandes velas, e, por
força,
Ao mastro as pega e a nau atrás
empuxa:
Rompe-se por mil partes o céu, e
arde
Em ligeiro, apressado, vivo fogo.
Um rugido espantoso vai correndo
Desde o Antárctico Pólo ao seu
oposto.
Arremessam-se lanças pelos ares
De congelada pedra em água
envolta;
Com espantoso ímpeto, e rasgadas
As densas negras nuvens raios
cospem:
De um golpe as velas vêm todas
abaixo.
CANTO
XVII
MANUEL DE
SOUSA ENTERRA D. LEONOR NA PRAIA
Apartando co'as mãos a branca
areia
Abre nela uma estreita sepultura
Torna-se atrás alçando nos
cansados
Braços aquele corpo lasso e frio.
Ajudam as criadas as funestas
Derradeiras exéquias, com mil
gritos.
Ai duro tempo! (dizem),como
apartas
Para sempre de nós tal fermosura!
Na perpétua morada tenebrosa
A deixam, levantando alto
alarido,
Com salgado licor banhando a
terra,
Aquele último vale. todas dizem.
Não fica só Lianor na causa infausta,
Que de um tenro filhinho se
acompanha,
Que a luz vital gozou, quatro
perfeitos
Anos, ficando o quinto
interrompido.
Ali co'a morta mãe o filho morto
Ambos com morto amor em cerra
jazem,
Ela lhe nega o branco amado
peito,
E ele o doce, materno, amado
gosto.
Ambos na solitária praia ficam,
Junto das grossas ondas
sepultados,
Deixando ao mundo um triste raro
exemplo
De perversa, cruel, ímpia
fortuna.
Naufragio
e lastimoso sucesso da perdiçam de Manoel de Sousa de Sepulveda e Dona Lianor de
Sá sua molher e filhos, vindo da India para este Reyno na nao chamada o galião
grande S. Joâo que se perdeo no cabo de boa Esperança, na terra do
Natal. E a perigrinaçâo que tiverão rodeando terras de Cafres mais de
300 legoas té sua morte. Composto
em verso heroico e octava rima por Jeronimo Corte Real. Na oficina de
Simão Lopez, 1594.
Digitalização
da edição de 1763 da Typografia Rollandiana, disponível em https://openlibrary.org/works/OL12449679W/Naufragio_e_lastimoso_sucesso_da_perdi%C3%A7am_de_Manoel_de_Sousa_de_Sepulueda?edition=naufragioelastim00cortuoft
As
sombras da alegoria: trilhos para a exegese do poema de Leonor e Sepúlveda | Hélio
Alves, 1999
4.4 […] A
viagem de Sepúlveda inicia-se com bom tempo47 À medida que o galeão
desce a costa oriental africana, porém, as condições de navegabilidade vão
mudando, de tal maneira que, três dias adentro do signo do Touro, à vista do
cabo da Boa Esperança, começa a manifestar-se o tempo que levará os protagonistas
ao naufrágio48 Como
avisa Corte-Real num dos poemas anteriores, o Segundo Cerco, deve ter-se
em conta que, em grande parte do Indostão e na África subsaariana, as estações
definem-se, em geral, contrariamente às da Europa:
... quando o Sol deixando Aquario
E outros humedos signos, que costumão
Grandes calmas causar naquellas partes,
Entrasse desde Tauro ao ardente Leo,
Trazendo ali bulcões, negros,
horriveis,
Com aspero sembrante carregados:
Que aquella região toda ameaçam
Com fortes, & medonhas tempestades.
Quando nestes taes signos entra Apollo,
Entam fica da India mais vizinho,
E os seus ardentes rayos com mais força
Grossos vapores tiram para cima:
Os quaes reciprocados ja no meyo
Da região aerea, se convertem
Em ventos, que a mil partes vão
lançando
Mil grossas negras nuvens, & as
desatam
Em humido licór, & agua espessa.49
Corte-Real
obrigava-se a adaptar a climatologia clássica aos espaços não-europeus em que
as ações têm lugar50 O naufrágio de Leonor e Sepúlveda acontece,
portanto, no começo da estação das chuvas, quando a evaporação é mais intensa e
quando o ambiente que circunda as personagens humanas, o marítimo, é o mais
propício a ela. Numa determinada fase do ciclo, os «Vapores» encontram-se na
esfera do ar - na física antiga, superior à da água mas inferior à do fogo,
esta invisível aos homens - e provocam movimentos que, por causa da peculiar
intensidade da exalação nesse período e local, acabam por desencadear vento e
chuva fortes.
Quando
aparece pela primeira vez, Proteu possui a consistência física que as
qualidades do mar permitem.51 Trata-se de
um «marinho foro monstro». Nada aponta para a sua existência
como aparição aérea e, muito menos, subjetiva. Ele emerge das águas e a gente
do galeão «pello ver ao bordo se ajuntava», alvoroçada pelo aspeto da criatura.
A alegorização é recordada:
Leonor
Olha o
peito escamoso, a cor, & o rosto
A
proporção, & o talho
differente
Olha
aquella figura estranha aos homens
Mas
conhecida & usada á natureza.52
Ferido
por amor, Proteu comporta-se corno certas espécies de baleias e golfinhos,
atirando-se «aos tombos» na água. O deus suscita a curiosidade de Leonor
enquanto fenómeno da vida marinha, mas também provoca a frieza dela e até a
repugnância pela monstruosidade que, sendo-lhe estranha e nova, é, nos termos
da alegoria física a explanar pelo fantasma mais tarde, «conhecida e usada à»
Natureza. Sugerido pelo episódio do ardente desejo sexual de Proteu e da
exposição de Angélica para futuro pasto da sua orca gigantesca no Orlando Furioso
(VIII, 51-66 e X, 92ss.), o encontro do deus com Leonor, sendo evidentemente
muito diverso, concretiza a fusão da mitologia com a natureza do animal respetivo.
Em certo nível semântico, Proteu é de facto uma orca, apesar de tudo menos
fantástica do que a de Ariosto, com «duas asas» (isto é, barbatanas)53
«espinhosas e grandes» e uma «disforme cabeça».54
Por
outro lado, o poeta procura tirar o devido partido psicológico-moral do
enfrentamento entre a mulher distante e desdenhosa, e o monstro sumido de desejo.
No regresso ao contacto entre os dois planos da narração, mais adiante no Canto
sexto,55 muitos outros seres marinhos acompanham Proteu para ver o galeão.
No instante em que Leonor e o «Carpátio vate» voltam a encontrar-se, existe já
uma relação psicológica e sentimental entre ambos. A mulher retrai-se «quasi
anojada» em face das cortesias amorosas de Proteu. Como outra Angélica, Leonor
repete o comportamento que havia tido com Sepúlveda, até Cupido lhe ter mudado
a vontade. Mas agora é todo o Mar que Leonor rejeita na figura de Proteu e dos
seus múltiplos acompanhantes. Os corpos possibilitados pela qualidade húmida e
particularmente densa das águas marinhas, os deuses e ninfas que a Natureza
criou, emocionam-se na presença da heroína, sentem paixão frustrada, ressentimento
e inveja. Trata-se duma reação ao que eles entendem ser o desamor dos
portugueses consubstanciado na atitude da protagonista. Esta, entretanto,
privilegia um «amor casto» pelo marido,56 adaptado da castidade
militante de Angélica,57 virtude que pode ter no Naufrágio
uma conotação positiva muito
importante, tão importante que, à semelhança
da sua modelo ariostesca, o único momento em que Leonor sente paixão consuma-se
contra a moral e acaba por inscrevê-la na lista dos castigados.58
O
processo repete-se como signo de intensificação do desejo e
dos extremos de autoaniquilação que o
todo-poderoso amor inculca. Depois de Proteu, é a divindade que preside à
selva, à terra africana, aquela que entra em contacto com Leonor. Agora, antes
mesmo de ser fulminado pelos olhos da amada - Corte-Real não só
amplifica o tópico dos olhos fatais da mulher, da linguagem
do amor cortês, como induz o leitor a fazer a analogia entre os «raios» que
eles emitem e o «raio» com que Amor matou Falcão -, Pã sente a presença do
sentimento amoroso e a «sombra escura» que este lhe traz ao coração.59
No início, o deus não é mais do que uma prosopopeia da terra silvestre
atravessada pelos protagonistas humanos. Reminiscência de écloga, símbolo do
próprio discurso pastoril,60 Pã depressa se torna em mais um fantasma
que persegue, por uma paixão obnubiladora, a amada Leonor. O tópico do castigo
da «mais fera que as raivosas/ ursas» torna-se mais explícito e acorde com o telos
do poema: «tarde te tornarás piadosa, &
a tempo/ que só de
tanto mal te fique a magoa».61
Mas
Pã é também uma alegoria física, o resultado de processos naturais de embate
dos elementos:
As estrellas no mais alto subidas
Do ceo meavão sua grão jornada
Subindo da segunda crusta aos ares
Delgados, &
sotis secos vapores,
Que penetrando a Sphaera Aerea, chegão
Ao fogoso elemento, o qual se esforça
Pera lhe resistir, lançando estrellas
Veloces, contrafeitas, &
fingidas.
Quando Pão que os amados passos segue
Alli chegado, toma (em fogo ardendo)
O sonoroso rustico instrumento...
Pã
forma-se da resposta da esfera do fogo à exalação das águas (a «segunda crusta»).
Como sinédoque alegórica das estrelas contrafeitas e cadentes, ele é, outrossim,
uma «sombra vã» criada por esse mesmo fogo. Esta criação fátua da Natureza identifica-se
então com o sentimento amoroso, de que o «fogo» é metáfora tradicional.
Corte-Real concilia subtilmente os níveis físico e psicológico da alegoria com
a ética da qualidade ilusória de Pã e demais deidades perante os seres humanos,
e ainda com o dogma cristão da falsidade e demonicidade dos deuses pagãos.
Esta
complexa formulação alegórica constrói-se, de novo, através da intimidade
sentimental com as personagens humanas. Com Leonor, a relação evidentemente
volta a falhar: os «suspiros» de Pã estavam longe de ser por ela ouvidos.62
E nisto Corte-Real, mais uma vez, coaduna a tópica do desprezo amoroso com a
alegoria das aparições fantasmáticas:
Levantate senhora apressa o passo
Soccorreme que mouro, vem não tardes,
Por ultimo remedio só te peço
Que me vejas morrer ja que me matas.
Se em quanto vivi sempre te mostraste
A meu tão grave mal cruel, &
esquiva
Agora ja no fim da vida triste
Permite que te veja mais piadosa.
E não cuides meu bem que cousas graves
Peço por galardão, do que me deves,
Não quero de ti mais que hum dizer, vai
te
Alma, que de teu mal fico contente.
A
frase que Pã imagina pronunciada de Leonor implicaria a perceção duma «alma»,
duma entidade formada do ar como espelho dos sentimentos culpados e viciosos da
mente humana. Mas a protagonista
não faz este reconhecimento, ao contrário dos desejos de Pã, porque é vítima
inocente da turbação de Sepúlveda, do Amor e da respetiva viagem desorientada.
Leonor não é suscetível às visões, ao tormento emocional com que a Natureza
solidária acompanha o percurso dos humanos. A heroína sofre as inclemências dos
Elementos, mas não é sensível a desejos e sentimentos negativos, e, portanto,
rejeita, no Mar e na Terra, os fantasmas prenunciadores de morte.
Assim
como Pã se autodesignou com o vocábulo «alma», assim Febo se autointitula
«fantasma».63 Com a aparição deste terceiro e último deus apaixonado,
a relação de Leonor com a Natureza encontra-se no cume da intensidade
dilacerante. Com efeito, o tempo em que Febo declara, extremando a autoflagelação
dos seus pares do mar e da floresta, que
O que te
peço só (& me he
devido
Por justo
galardão de meu tormento)
He, que
quando me vires mais perdido
Mostres,
que disso te[n]s contentamento,64
é
quando Leonor se encontra sentada na areia, no máximo esforço para se proteger
da impiedade que a cerca, procurando, nua, cobrir-se «co dourado cabello».65
Na lógica sintagmática da alegoria, foi-se intensificando a disparidade entre a
Natureza e a casta isenção da protagonista, de tal forma que o pudor conhecido do
relato posteriormente incluído na História Trágico-Marítima torna-se
significante de algo muito maior.66 As palavras de Febo, apesar da
chegada da heroína ao ponto extremo de fragilidade, «do peito castissimo
ficaram/ desprezadas por vãs e sem proveito». Tudo em Leonor resiste às ilusões
que a Natureza reflete e devolve ao atormentado espírito humano.
4.5. Assim
como os vícios se acham sinedoquizados no poder destrutivo do amor que os
deuses fazem reverberar, as virtudes serão modeladas num símbolo capaz de
vencer tais "almas" ou "fantasmas", as «sombras vãs» que acompanham
os viajantes perdidos. É essa qualidade que
torna verdadeiramente heroica a personagem de Pantaleão de Sá, o sobrevivente
da tribulação e a promessa de futura correção ético-política dos portugueses.67
Enxertada no percurso vivencial do casal desafortunado, a viagem alternativa de
Pantaleão sintetiza, qual redução autossemelhante, a viagem principal do
poema. Ao mesmo tempo, porém, ela ilustra um percurso vivencial
oposto, o do homem que abandona a estrada cheia de obnubiladores phantasmata
para libertar o próprio espírito.
Assim,
os «três dias»68 que o herói decide apartar-se dos seus companheiros
para seguir o velho sábio começam pela chegada junto a
hu[m]a cova escura
Que no
fundo do valle entre penedos
E de
frondosas arvores agrestes,
Cubertos de
hum vapor espesso & turvo
Ao pé de
alto rochedo se fazia.
Como
tantas vezes no resto do poema, as formas vaporosas encontram lugar privilegiado
para se acharem à vista, aliadas a «hum rumor, que o cabello ao ceo levanta/ e
hum zombido terribel» que provinham de dentro da caverna. Tal não impede
«àquele ousado peito/ que a natureza fez de medo livre» entrar no lugar que um
letreiro indicava como vedado a «humana pranta». Pantaleão entrava num espaço
conhecido apenas dos deuses alegorizados.
Como
no resto do Naufrágio, as
"almas" fantasmáticas formam-se a partir da perceção supersticiosa
das forças da Natureza. Dentro da cova, o ar é escuro e revolto; as ondas furiosas,
batendo contra rochas, retumbam «aquella voz confusa» por toda a parte; o
vento, ao passar pelas alturas, resulta em «horrendas vozes». Tudo isto na
presença duma «furna» que o herói, sempre em perseguição do velho, pretende
atravessar. Avançando o português, dos mesmos fumos e vapores aparece um
cavaleiro mudo que se apresta a dar-lhe batalha. Obrigado a vencê-lo, Pantaleão
triunfa do cavaleiro que, quando tocado, se faz no fumo do qual tirava a forma.
«Avante passa o Sà nada temendo» até que se vê forçado a escolher entre dois
caminhos, ambos igualmente terríveis na aparência, e cada um com vozes que o
avisam para não seguir o outro. Escolhendo um deles após vacilar um pouco,
aquele em que lhe parecia ouvir o choque de armas, o herói, «quasi chegado ao
meyo da caverna», acha as «duas vizões» mencionadas em Parte anterior deste
estudo,69 que se vão retirando à medida que o português avança.
Finalmente, atingidas pela sua espada, também estas se dissolvem e desaparecem.
Pantaleão de Sá fica então mentalmente preparado para ouvir o velho explicar a
genealogia histórica e panegírica de Portugal sem a interferência de vaporosas
ilusões.
No
desafio que este membro da comitiva de Sepúlveda faz às aparições e misteriosos
ruídos que a Natureza, por um lado, e a sua humana falibilidade, por outro, lhe
representam, estabelece-se a diferença crucial entre a viagem especial de
Pantaleão e a viagem principal de Sepúlveda. Aquele vence os seus fantasmas,
este sucumbe a eles. O herói verdadeiro triunfa sobre as sombras alegóricas, o
falso deixa-se enredar por elas. As criações da Natureza são prenúncio
de morte apenas para quem, como Sepúlveda, as imagina desse modo.70 Por
isso, o marido infausto acaba por morrer perdido no arvoredo, carregando um
filho moribundo nos braços e envolvendo-se no ar húmido com que a Natureza lhe
trouxe as visões e as sonoridades que o derrotaram:
Cobriose o
espesso bosque de cerrada
Sombra,
fusca nuve, & no circuito
Que
occupava o vapor turvo, se ouvirão
De Tygres, &
Leões bramidos altos.71
Leonor
permanece, entretanto, uma heroína ambígua. Ela efetivamente morre, castigada
por se ter dado clandestinamente a um homem, por este ser moralmente vicioso -
porque autor dum homicídio72
- e por ser altiva, desdenhosa, fria e áspera contra o Falcão
e os deuses amadores. Como para Angélica, o casamento com Sepúlveda é já uma
forma de punição que tem na morte, afinal, apenas o seu corolário mais radical.73
Ao mesmo tempo, todavia, ela personifica um outro amor,
classificado pelo narrador de «casto», que a honra sob uma perspetiva diversa.
Leonor não deteriora o seu amor ao casar com Sepúlveda. E a prova está na ação
subsequente: ela resiste, de facto, aos assédios da Natureza e às fraquezas da
mente, ambos, no fundo, aspetos diferentes do mesmo obstáculo. Assim, Leonor é
arrastada para a morte, não porque as sombras da alegoria lhe tiraram a clareza
de juízo, mas precisamente porque procurou conciliar a resistência que lhes
obrou, com o amor que a pôs ao lado de Sepúlveda. No dilaceramento entre a
resistência à Natureza, a um tempo amorosa e destruidora, e a fidelidade ao
amor de Sepúlveda, afinal espelho humano da tirania escravizante do amor
natural, reside a qualidade profundamente trágica da perdição e morte de
Leonor.
4.6. O
poema caracteriza-se pelas margens indistintas do seu universo alegórico, como
se, nas palavras de Corte-Real, um «bulcão turvo» presidisse a toda a ação. A
exceção, ainda assim parcial, é a das bodas - e festas a
elas associadas - nos Cantos quarto e quinto.74 De resto, mesmo uma
complexa alegoria como a da viagem do Amor - transformação semântica do estado
de espírito de Sepúlveda - faz-se com realidades desfeitas, desorientação
mental e «vapor turvo».75 É por causa desta base de sustentação
incorpórea que o Naufrágio e Perdição de Sepúlveda e Leonor não possui
os contornos nítidos, nem a perfeição volumétrica duma epopeia como a de
Camões, regulada verticalmente pelas esferas ptolomaicas e horizontalmente pela
linha contínua da História. Maravilhoso e relato histórico, não obstante a
demarcação dos respetivos espaços sémicos, interagem, afetam-se reciprocamente
ao nível dos sentidos e dos sentimentos das personagens, no poema de
Corte-Real. Os seres humanos e os deuses que perseguem Leonor mergulham
em plena irrealidade criada pela paixão, pela culpa, pelo desvairamento, num
mundo em que tudo é vanidade ou «leve vento». A resistência a esse mundo é
configurada nas pessoas de Leonor e Pantaleão, mas enquanto o segundo, vencendo
figuradamente as ilusões, evita a «perdição» apenas ao separar-se do seu capitão,76
a heroína leva a imunidade perante os assaltos da Natureza até à morte, por uma
eticamente ambígua fidelidade amorosa e matrimonial a Sepúlveda.
Deus
tem presença marcada neste universo, não obstante o predomínio extensivo da
Natureza e dos estados emocionais das personagens. Como é de regra na poesia
épica portuguesa do século XVI, também aqui Ele não é representado. Tal não
significa, porém, que não se reconheça a existência da Providência divina e da
sua superioridade última sobre toda a representação. Os protagonistas
cristãos oram a Deus e à Virgem.77
A beleza de Leonor é atribuída ao poder criativo do Supremo
- sujeita que é à retórica do amor cortês – como perfeição superior às
capacidades da Natureza. Os próprios deuses mitológicos, enquanto
alegorias da Natureza e reflexos dos sentimentos negativos das personagens,
invocam o nome de Deus e d'Ele dependem em último grau.78 E finalmente,
a dialética do crime e da vingança, enquanto argumento hierarquicamente
superior à concatenação alegórica dos phantasmata, acha-se ao nível dos
secretos desígnios da Providência, sempre justos por definição dogmática, por
mais contraditórios que pareçam à restrita perspetiva humana.79
Apesar
dessa presença, todavia, o que predomina no Naufrágio é o silêncio de
Deus. Excetuando a alma de Luís Falcão, bradando pela vingança a que tem
direito segundo o «Tribunal» celeste, as preces dos viventes, algumas delas
mesmo comoventes pelo fervor, perdem-se nos ares e têm como resposta apenas o
vazio.80 Nenhuma divindade vem salvar os heróis, nenhuma outra procura
destruí-los. São os mesmos heróis que, Pantaleão de Sá excetuado, se deixam
autodestruir. Os deuses são afinal os
reflexos dos vícios da mente dos culpados, dos vitia animi que Lucrécio
e S.to Agostinho haviam procurado eliminar. Apenas às almas (as
verdadeiras) se abre o caminho da salvação através do arrependimento, como se
vê da aparição da Paciência, guiando Sepúlveda até à morte. Somente no Além
futuro - de que o poema não trata senão na figura auspiciosa, mas bem terrena,
de Pantaleão -, existe a possibilidade de corrigir e transformar o caminho
perdido na vida sublunar.
Em
vez do poder de Deus, sente-se no Naufrágio ostensivamente,
por sobre homens e deidades, o poder do Amor. Não o amor universal e
benevolente do cristianismo, mas o amor negativo, cruel e aniquilador da
linguagem do desejo sexualizado. Daí que os Cantos II e III
venham a constituir o fulcro do poema, como já pensava
Ferdinand Denis.81 Vénus, ao aceitar os desígnios do seu filho
mitológico - por sua vez, figura para as intenções cegas de Sepúlveda - e ao
ensinar-lhe o caminho para o crime, inverte o sentido da estrutura tripartida
que Lucrécio havia situado debaixo da jurisdição da deusa. Com efeito, se no De
Rerum Natura a influência benéfica de Vénus presidia
indiretamente ao mundo natural lucreciano, dividido nas suas três partes constituintes,
Mar, Terra e Céu (mare, terra, caelum) que
também dominam a Eneida "odisseica",82
na epopeia de Corte-Real a deusa do amor rege também à distância, mas em
sentido oposto, as alegorias respetivas de Proteu (mar), Pã (terra) e Febo
(sol-céu), a tríade de deuses que persegue Leonor e que acaba por lhe escrever
o epitáfio.83 O poeta de Évora faz a reconversão semântica do modelo
estrutural-discursivo lucreciano, tornando o nível dos deuses, como já se viu,
numa conjura não premeditada das três partes do mundo contra os heróis.
Vénus
paira, com Eros, por sobre toda a estrutura, simultaneamente poética e cosmológica,
sujeitando homens e deuses à sua destrutiva tirania. O amor dissolve o universo
em «sombra escura», a sombra que perfaz a diáfana alegoria do poema.
O Sistema da Poesia Épica
Quinhentista - Camões, Corte-Real e os Contemporâneos, Hélio Alves,
Universidade de Évora, 1999, pp. 798-811
NOTAS:
47 Com vento «galerno e favorável», mas traiçoeiro (Obras de Jerónimo Corte-Real, a/ c M. Lopes de Almeida, col. "Tesouros da Literatura e da História", ed. Lello & Irmão, Porto, 1979, p. 591). Segundo o relato em prosa, a partida aconteceu a 3 de fevereiro de 1552; segundo o Naufrágio, quando o Sol «ja tinha corrido doze dias da casa onzena» (ibidem).
48 Canto VII; 1979: 627 («Tres dias avia
ja que o grão Philesio» etc.).
49 Segundo Cerco de Diu, Canto
II; 1979: 38-39.
50 Outro caso é o da Descrição
de Malaca, possivelmente de António de Abreu:
«Aqui, o Capro signo he temperado/ e o Leo, contra a antiga geografia,/ de
boninas matiza o verde prado/ e a ribeira faz sempre sombria» (estrofe 18;
Costa 1956a: 120).
51 Vide Canto
VI; Corte-Real 1979: 599-601.
52 Canto VI; 1979: 600.
53 No comentário de FS ao Proteu d' Os
Lusíadas, também se chamam "asas" aos órgãos natatórios das
baleias.
54 Cf. Orlando Furioso, X, 101:
3-6.
55 Corte-Real 1979: 606-13.
56 Conotado positivamente pelo menos nos
Cantos I, II, VIII e IX (Corte-Real 1979: 504, 524-7, 642 e 681); e
negativamente pelos discursos dos deuses (Proteu, Pã e Febo, desde o Canto VI),
numa espécie de eco dos desejos frustrados de Sepúlveda antes da morte de Luís
Falcão (Canto I).
57 Vide Ariosto, Orlando
Furioso, VIII, 41ss.
58 Vide Canto
I, a propósito do casamento clandestino de Leonor com Sepúlveda (1979: 509ss).
59 Canto IX; Corte-Real 1979: 664.
60 Sobre o influxo da literatura pastoril
no Naufrágio, vide Parte
II, 6.5 e 6.8.
61 Canto IX; Corte-Real 1979: 671-2. A comparação
da amada com uma fera pertence à tradição lírica renascentista; a comparação
com tigres e ursas constitui uma amplificatio deste
tópico muito comum no poema de Corte-Real.
62 Canto X; Corte-Real 1979: 693.
63 Canto XVI; Corte-Real 1979: 857.
64 Ibidem.
65 Canto XVI; 1979: 850.
66 «E vendo-se D. Leonor despida,
lançou-se logo no chão, e cobriu-se toda com
os seus cabelos, que eram muito compridos, fazendo uma cova na areia, onde se
meteu até a cintura, sem mais se erguer dali» (Relação s.d:41).
67 Vide passagem do Canto XIV
citada na Parte II, 6.4.
68 Canto XII; Corte-Real 1979: 739. A
repetida referência ao número 3 e a tripartição estrutural de muitos elementos
do Naufrágio permitem
pensar num nível alegórico aritmosófico (repare-se também, por contraste, nos
«quatro dias» que Proteu demora a chegar à corte de Neptuno no Canto VI; 1979:
601). A origem intertextual aparente das tríades deste universo épico será sugerida
em 4.6.
69 Parte II, 6.6.
70 Santo Agostinho de Hipona, uma das
fontes prováveis desta conceção (vide 4.2),
tal como o fantasma de Corte-Real, considera os phantasmata como figmenta
(«falso» e «fingido» adquirem assim um novo significado no Naufrágio,
não reduzido apenas a uma resposta à Inquisição)
fáceis de trazer à mente e à memória, mas difíceis de discernir da verdade (De
vera religione, X, 18; apud Petrarca 1992: 315
n142).
71 Canto XVII; Corte-Real 1979: 872.
72 Ao contrário do que insinuou Camilo
Castelo Branco (1880: 211 e 218), Corte-Real expõe claramente o facto de
Sepúlveda ter sido o assassino de Luís Falcão, o noivo de Leonor. E não é necessário
ir até ao Canto XV, para o perceber; o
Canto II é suficientemente claro (1979: 528).
73 Entre os imitadores de
Ariosto, a morte, quando acontecia, recaía geralmente sobre a metade masculina
do casal. Tanto Dolce quanto Brusantini representam a morte de Medoro. O
castigo de Angélica toma outras formas, incluindo a possibilidade, às vezes, de
regeneração moral. Corte-Real, vinculado à realidade histórica, aproveita a
morte de Leonor para intensificar e tornar mais sofisticada a quaestio da
personagem.
74 De facto, mesmo as bodas que pretendem
fazer-se depois de dissipados os «turvos Orizontes» (Canto IV;
1979: 566) refletem os maus augúrios do
tálamo (IV) e as sombrias cores do Inferno nas festas malabares (V).
75 A geografia é percorrida por Amor
porque «tão colérico vai, que perde o tino/ do caminho que leva», tal como o
pensamento de Sepúlveda de quem ele é aqui uma metáfora alongada (Canto II;
1979: 532; cf. resumo da narração na Parte II). Depois,
Amor passa pelo velho Tempo descrito como obnubilador de «famosos e altos
feitos» e vê a casa de Némesis coberta de «vapor turvo» (ibidem;
1979: 543-4).
76 Canto XVI; Corte-Real 1979: 848.
77 Sem preocupações de exaustão:
Sepúlveda a Deus no Canto VIII (1979. 644-5); Leonor à Virgem no Canto IX
(1979: 660); aqueles que se despedem do galeão à partida de Cochim no Canto
VI (1979: 594) e o coletivo dos sobreviventes no Canto XIV (1979: 822-3).
78 Amor/ Ânteros aguardam
a confirmação da «sentença» de morte ao Falcão pelo «Céu» (Canto III; 1979:
561); Proteu elogia Leonor como obra de Deus (Canto VI; 1979: 610) e invoca-Lhe
o nome (ibidem; 1979: 612);
Anfitrite (VII; 1979: 625) e Pã (IX; 1979: 675) fazem o mesmo.
79 Basta pensar que o Deus que castiga
Sepúlveda pela morte de Falcão foi o que confirmou a sentença de morte ao mesmo
Falcão. De facto, Ânteros «aguarda o termo em que a sentença/ Ia confirmada la
no ceo seria» (III; 1979: 561). Ao contrário de Camões, Corte-Real não abre a possibilidade
duma divindade intermédia (Júpiter) entre os deuses e Deus (há uma única referência
a Júpiter, no Canto II a propósito da origem de Némesis; 1979: 530).
80
No Canto VI, «a Deos pedem que os leve a salvamento,/ e ao desejado Reino em
paz os guie://mas não subirão tanto os pios rogos/ (Por causa de hir com culpas
carregados)/ que chegassem ao ceo mostrando claro/ das divinas orelhas ser
indignos:/ ficarão abatidos, & nos ares,/ espalhados &
soltos sem proveito.» (1979: 594). Corte-Real, acrescentando
o elemento teológico, amplifica moralmente o que se encontra já em Virgílio (Eneida,
IX: 312-13) e fora fisicamente já
explicado por Lucrécio (De Rerum Natura, IV:
568-9). A propósito de outra das preces do Naufrágio, escreveu-se
já que «rien n'est plus touchant que la prière de ce père malheureux, qui, les
yeux baignés de larmes, essaie d'apaiser le courroux céleste» (Denis 1826: 266-7).
Uma parte do movere assim conseguido reside precisamente, a meu ver, no
silêncio que tem como resposta.
81 Denis 1839: 105 e ss.
82 No poema de Lucrécio, «after hominum
divumque voluptas in the first line (...) the three divisions of sky, sea,
and earth are concisely introduced in lines 2-3, and then used recurrently to
structure the description of the effects of Venus» (Hardie 1986: 170). Mais
específica e exatamente, Lucrécio abre o De Rerum Natura com esta
tripartição na ordem e termos que Corte-Real irá personificar e narrativizar:
mar, terra e sol-céu (1: 2-9; tb.,
p. ex., IV: 723, já citado supra). No início da aula de Anquises
referem-se as ditas três partes, céu, terra e mar («Principio caelum ac terras
camposque liquentis»; VI: 724) como tríade ordenadora da própria metade
primeira do poema (cf. Hardie 1986: 323).
83 Fá-lo literalmente com três epitáfios,
um para cada deus ou parte do universo, no impressivo episódio final (Corte-Real
1979: 872-877) que F. Denis descreveu assim: «dans ce dernier hommage rendu au
malheur, il y a quelque chose de noble et de touchant; d'ailleurs la poésie de
Corte Real prend alors un tel caractere de grandeur qu'elle ne peut nous
laisser insensibles. On l'éprouve au fond de l'âme: il
y a là une dernière émotion que le poéte n'a pu complétement
retracer, et qu'il laisse sentir au lecteur» (Denis 1839: 127-8).
Naufrágio de Sepúlveda (1552) | adaptado
por António Sérgio (1934)
Vou contar-vos
a história dos que embarcaram no Galeão1 Grande «São João» quando
saiu da Índia em princípios de fevereiro de 1552.
Nos
portos de Coulão e de Cochim2 recebeu o navio a pimenta com que
devia de regressar a Portugal. Não se pode dizer que fosse muita: não passava,
com efeito, de uma dúzia de milhares de quintais3; mas a carga ficou
ainda demasiada, pelas outras mercadorias que se embarcaram. Foi este excesso
nos carregamentos uma das grandes causas de tantos naufrágios. Junte-se o
descuido na construção das naus, e, no caso do «São João», o péssimo estado em
que se achavam as velas.
Manuel de
Sousa Sepúlveda capitaneava a nau, e trazia a bordo sua mulher e três
filhinhos. Embarcou também Pantaleão de Sá, cunhado de Manuel de Sousa.
Partiram
pois a 3 de fevereiro e atravessaram o oceano Índico a leste da ilha de
Madagáscar, que se chamava então de S. Lourenço. A cinco semanas da partida — a
11 de março — encontravam-se a vinte e cinco léguas, mais ou menos, do famoso
Cabo da Boa Esperança. Saltou-lhes o vento na direção da proa, muitíssimo rijo,
acompanhado de numerosos fuzis4. Ao cair da noite, o capitão chamou
o mestre5 e o piloto, e perguntou-lhes que decisão tomar. Meterem de
capa6 com os papafigos7 (responderam eles) e aguardarem
tempo menos ruim.
Assim se
fez. E, vindo arribando desta forma, já a uma centena de léguas do Cabo
virou-se-lhes o vento para leste-nordeste, mais forte ainda, obrigando-os a
correr outra vez para Sudoeste. O mar, feito do Poente até então, era batido
agora do Levante: e tornou-se tão grosso e desencontrado que, a cada balanço
que o galeão tomava parecia que as vagas o meteriam no fundo. Desta maneira se
passaram três dias. Ao cabo deles, o vento acalmou; o mar porém ficou tão
revolto, e tanto e tanto trabalhou a nau, que três machos do leme8
se perderam então. O carpinteiro, quando deu pela perda, comunicou o facto em
segredo ao mestre. Este, com bom oficial e bom homem que era, recomendou que
não o dissesse ao capitão da nau nem a nenhuma das pessoas que vinham a bordo,
para evitar o alvoroço e o terror.
Saltou ao
lés-sudoeste outra vez o vento, e cresceu com ele o temporal. Deixou o navio de
obedecer ao leme, e pôs-se de ló9; nisto, viram rasgar-se toda a
vela grande, e voar pelos ares. Acudiu a gente a tomar o traquete10;
não estava ainda tomada a vela quando se atravessou a nau aos vagalhões
enormes, e recebeu a fúria de três mares grossíssimos, que arrebentaram as
enxárcias11 de bombordo. Lançou-se mão de viradores12,
para com eles se fazerem uns brandais13; vendo, porém, que era
impossível, decidiram cortar o mastro grande. Já estavam os homens de machado
em punho quando, com a força do vento, estoirou o mastro. Tudo saltou por
estibordo: mastro, gávea, aparelho, enxárcia. Cortaram esta e o aparelho, e
tudo de cambulhada se foi para o mar.
Sobre o
pé do mastro que lhes ficara, armaram mastaréu com um pedaço de antena, e do
outro pedaço fizeram verga que guarneceram com tiras de velas velhas. Pouco
depois, levou-lhes a ventania essa mesma vela, e em breve o galeão se atravessou
outra vez. Nesta situação se encontravam eles quando se lhes quebrou o leme
pelo meio. Já a água do mar invadira tudo. O mastro do traquete com os grandes
balanços de um bordo a outro, punha a nau em risco de se lhe abrir o casco, e
pareceu-lhes que o melhor era cortá-lo. A isso se dispunham, quando deu nele um
tão grande mar que o quebrou logo pelos tamboretes14 e o lançou
também para o meio das ondas, com o único trabalho de lhe cortarem a enxárcia.
Sem
mastros e sem leme, iam impelidos na direção da terra, de que estariam
distantes umas quinze léguas. Lançaram-se, então, a construir um leme de
fortuna, e de alguma roupa fizeram velas com que se dirigissem a Moçambique.
Nesses cuidados se gastaram dez dias. Acabado o leme, quiseram metê-lo; não
serviu, porém, porque não tinha as dimensões que lhe cumpriam. Manuel de Sousa,
como já se achassem bem perto da terra, tomou o parecer dos oficiais. Aconselharam estes que se deixassem ir, até se
encontrarem com dez braças de fundo; que
com esse fundo ancorasse a nau, para lançarem o batel e desembarcarem.
Entretanto arriaram uma manchua15 com alguns homens para irem
explorar ao longo da costa e escolher o sítio para o desembarque. Já perto de
terra, lançaram o prumo; acharam aí ainda muito fundo, e deixaram-se ir.
Regressaram finalmente os da manchua, informando haver perto uma boa praia;
tudo o mais era rocha a pique onde se não via modo de salvação.
Trataram,
pois, de fazer navegar o galeão para o sítio indicado pelos da manchua, com os
remedos de velas que haviam feito. Quando chegaram, lançaram prumo, e viram que
tinham fundo de sete braças16. Largaram uma âncora nesse fundo e
guarneceram os aparelhos para arriarem o batel, com o qual portaram, na direção
da costa, uma segunda âncora.
Já a
manchua conduzira para a praia Manuel de Sousa, sua mulher e filhos e uma
trintena de pessoas mais (não sem se virar e se afogarem algumas), quando o
vento e o mar cresceram tanto que impeliram o galeão para cima da terra. A
tempo em que já esta estava próxima, embarcaram no batel o piloto, o mestre e
cerca de quarenta dos passageiros. Tão grossas rolavam então as ondas, todavia,
que despedaçaram o batel de encontro à praia, sem no entanto morrer alguém.
Ficaram a
bordo umas quinhentas pessoas, das quais duzentos portugueses e trezentos
escravos. Trataram estes de largar a amarra para se irem assim aproximando da
terra. A quilha17 assentou; pouco depois, porém, com a força do mar,
partiu-se em dois o galeão. Passada uma hora, esses dois troços fizeram-se em
quatro. Arrombadas as cobertas, as fazendas e as caixas vieram acima, e todos
os passageiros que se achavam a bordo se lançaram aos cepos18 e à
caixaria, para flutuarem agarrados neles. Quarenta portugueses e uns setenta escravos
morreram afogados neste lance; os demais conseguiram chegar a terra, alguns com
ferimentos de gravidade. Quatro horas depois, todo o galeão desaparecera
desfeito. Na praia acumulavam-se os seus destroços, arremessados pela fúria dos
vagalhões.
Determinaram
os náufragos manter-se ali, entrincheirados, até que convalescessem os mais
doentes. Tinham dado com água naquele lugar. Passados dez dias, avistaram num
outeiro uns sete cafres, que traziam consigo uma vaca presa. Por acenos,
convenceram-nos a descerem até à praia, e foi o capitão falar com eles,
acompanhado por quatro dos portugueses.
Significaram por sinais que queriam ferro. Manuel de Sousa, percebendo-os,
mandou que trouxessem meia dúzia de pregos, e lhos mostrou. Os cafres
chegaram-se mais aos nossos, e discutiram o preço da sua vaca. Nisto,
apareceram cinco negros em outro outeiro, e começaram a bradar aos sete
primeiros que não dessem a vaca a troco de pregos. Foram-se então, levando a
vaca, e sem dizerem palavra mais.
Uns dias
ainda se mantiveram ali, com muito cuidado e vigilância, levantando-se o
capitão para rondar os quartos três e quatro vezes durante a noite, o que era
para ele trabalho grande. Convalesceram por fim os doentes e feridos; e, vendo
todos já aptos a caminhar, chamou-os a conselho sobre o que deviam fazer.
Como não
ficara do galeão com que pudessem construir uma jangada, decidiram caminhar ao
longo das praias até ao rio de Lourenço Marques. Estaria este, ao que lhes
parecia, a umas cento e oitenta léguas daquele local (31o de
latitude sul), seguindo sempre a linha da costa; os que lá chegaram, porém,
andaram mais que trezentas léguas, pelos muitos rodeios que foram fazendo para
passar os brejos19 e cursos de água com que iam topando pelo
caminho; depois tornavam à orla do mar; e nisto gastaram cinco meses e meio.
Partiram
pois a 7 de julho (1552). Ia na vanguarda Manuel de Sousa com oitenta homens
portugueses e escravos, com André Vaz, o piloto, que levava uma bandeira com um
crucifixo erguido, e Dona Leonor em cima de um estrado, que era carregado por
alguns escravos; ao centro, o mestre do galeão com a gente do mar e as
escravas; na retaguarda, Pantaleão de Sá com o resto dos portugueses e dos
escravos, que seriam cerca de duzentas pessoas. Orçava por quinhentas ao total.
Caminharam
assim durante um mês, com muitos trabalhos, com fomes, com sedes horríveis,
porque não tiveram de comer por todo este tempo senão aquele arroz que do
galeão escapara e umas poucas frutas que no mato acharam. Haveriam andado uma
centena de léguas (que fariam umas trinta, não mais, ao longo da costa), e
tinham já perdido umas dez pessoas, que se deitaram no chão por não poderem
mais. Um filho bastardo de Manuel de Sousa, de dez ou doze anos, vinha muito
fraco por causa da fome; um escravo o trazia com muito custo, e ambos se deixaram atrasar. Manuel de Sousa não deu por isso, por supor que
vinha na retaguarda com seu tio Pantaleão de Sá. Perguntando por ele, e não o
encontrando, ficou como louco. Prometeu que daria quinhentos cruzados a quem
voltasse atrás em busca do filho: não
houve porém quem lhos aceitasse, por se acharem já à boquinha da noite, em que
os que se deixavam atrasar os devoravam os tigres e os leões.
Por
vezes, tinham tido que lutar com bandos de cafres. Diogo Dourado, que sempre
pelejara como bom cavaleiro, veio a falecer numa dessas brigas. Uma, duas, três
pessoas, ficavam por dia naquelas praias, ou então metidas por meio dos matos,
por já não poderem caminhar avante. Sabiam que os tigres ou as serpentes as
haviam de devorar de aí a pouco, pois os havia ali em grande número; apesar
disso, deixavam-se cair, porque já não podiam andar mais, e rogavam aos outros
que os encomendassem a Deus.
Cerca de
três meses, já agora, haviam decorrido nessa caminhada em busca do rio de
Lourenço Marques, ou seja da Aguada da Boa Paz. Alimentavam-se de frutos, se
acaso os achavam, e de ossos torrados. Quem topava coisa que se pudesse comer e
que lhe fosse possível dispensar, vendia-a por preços exageradíssimos: um
quartinho de água por dez cruzados, e por quinze cruzados, uma pele de cobra. Comiam
mariscos quando passavam nas praias, ou peixe morto que o mar lançava.
Ao cabo
deste tempo encontraram um cafre, velho senhor de duas aldeias, que os recebeu
com alegria e muito bem. Pediu-lhes o reizete20 que não passassem
dali. Deixassem estar na companhia dele (dizia) que trataria de os manter o
melhor que pudesse.
Estava o
velho em guerra com um rei vizinho, pelo qual passariam os Portugueses se
continuassem o caminho na direção do norte: e desejava por isso o auxílio dos
nossos. Afirmava-lhes que se insistissem em prosseguir seriam roubados por esse
rei; de maneira que, em virtude da ajuda que esperava obter e também do
conhecimento que dos Portugueses já tinha (por Lourenço Marques e António
Caldeira, que ali haviam estado de uma outra vez) trabalhava o cafre quanto
podia por que se demorassem os náufragos junto
dele.
Em se
determinar se detiveram seis dias. E, vendo o cafre que Manuel de Sousa
continuava no desejo de seguir avante, pediu-lhe que o ajudasse, antes disso,
com alguns homens da companhia, contra certo inimigo que lhes atrás ficara.
Pediu o capitão a Pantaleão de Sá que quisesse ir ajudar o rei amigo com uns
vinte portugueses da companhia. Foi ele, com efeito, com os vinte dos nossos e
quinhentos cafres. Retrocederam umas seis léguas, tomaram ao inimigo todo o
gado, e trouxeram-no ao arraial onde estava o rei, com Manuel de Sousa e os
companheiros. Gastaram nisto meia dúzia de dias.
Tornou
Manuel de Sousa a reunir conselho. Ficou decidido retomarem a marcha até àquele
rio de Lourenço Marques, que havia três meses andavam buscando. Ora, a verdade
é que já lá se achavam, sem o saberem. Com efeito, o rio que buscavam tem três
braços, e Manuel de Sousa e seus companheiros encontravam-se na margem do
primeiro. Cegou-os, porém, sua má fortuna, e não quiseram senão prosseguir.
Pensou por isso o capitão em tomar sete ou oito almadias21 que ali
viram fechadas com cadeias. O rei cafre, todavia, não lhas queria dar, pelo
muito desejo de os ter consigo. Mas Manuel de Sousa tanto instou que o bom do rei, afinal, os deixou servirem-se
das almadias e transporem-se nelas à outra margem, onde se ordenaram para
caminhar. Passados sobre isto uns cinco dias, chegaram à beira do rio do meio, onde sofreram sede por ser
salgado. Desejou o capitão mandar buscar água; ninguém o quis, todavia, fazer,
a menos de cem cruzados o caldeirão.
Ao outro
dia, perto da noite, apareceram uns negros em três almadias. Por uma negra do
arraial, que começava a entender o falar dos Cafres, fizeram saber aos
Portugueses que viera ali gente parecida com eles, tripulantes de um navio que
partira já. Perguntou-lhes o capitão: quereriam passá-los para a outra banda?
Os negros disseram que no dia seguinte, se lhes pagassem bem.
Ao
amanhecer, com efeito, vieram os Cafres com quatro almadias, e começaram o
trabalho combinado, pelo preço de alguns pregos.
No meio
do rio, de repente, Manuel de Sousa arrancou na espada, e bradou para os
negros:
— Perros,
onde me levais?
Os Cafres
saltaram à água; e os nossos, abandonados, estiveram em risco de se afundar.
Dona
Leonor e os que iam com ela pediram-lhe que não fizesse mal aos homens, que com
tal se poderiam perder. Manuel de Sousa, até ali, fora pessoa conhecida e
admirada por sua brandura e discrição; quem viu aquilo, por isso mesmo,
facilmente concluiu que perdera o tino,
pelas muitas vigílias e cuidados que naquela jornada padecera. O certo é que
dali em diante nunca mais ele pôde governar a gente como até ali havia feito.
Chegado à outra banda do rio, queixou-se muito da cabeça. Ataram-lha com toalhas,
e ali se tornaram a juntar todos. Decidiam-se a caminhar, quando se aproximou
um grupo de Cafres. Prepararam-se os nossos para a defesa, cuidando que viriam
para os assaltar. Perguntados quem eram e que buscavam, os Portugueses
responderam que cristãos e náufragos, e rogaram-lhes que os guiassem para um
rio grande que sabiam situado mais além; se tinham mantimentos, lhos
trouxessem, pois estavam decididos a comprá-los. Por uma cafra que de Sofala
viera lhes disseram os negros que os acompanhassem, pois seriam agasalhados
pelo seu rei. Deixaram-se pois conduzir por eles, até o local que lhes haviam
dito. Uma vez chegados, mandou-lhes comunicar o rei dos Cafres que não entrassem naquele lugar e que se fossem postar
ao pé de umas árvores, onde lhes enviaria de
comer.
E, com
efeito, receberam mantimentos a troco de uns pregos.
Assim se
detiveram uns cinco dias, parecendo-lhes que poderiam ficar ali até à chegada
de uma nau da Índia, segundo o que os negros lhes haviam contado.
O rei,
porém, disse-lhes que não poderiam continuar juntos, por falta de mantimentos
naquela terra. Ficasse o capitão com a mulher e os filhos e alguns dos
companheiros que preferisse; e os outros se repartissem por aqueles lugares.
Isto dizia com ruim tenção; não se atrevia, porém, a pelejar com os nossos,
pelo medo que tinha das espingardas, de que havia cinco no arraial. Os
Portugueses entregaram-se à sua fortuna e aceitaram a ideia do insidioso cafre,
esquecidos do conselho daquele rei amigo que tinham anteriormente conhecido.
O negro,
assente que os nossos se repartissem, acrescentou que tinha ali capitães seus,
cada um dos quais se encarregaria de um grupo determinado de Portugueses, a fim
de os alojar e sustentar; propunha, porém, que estes abandonassem as suas
armas, porque os Cafres, com medo delas, os não tomariam enquanto as tivessem;
e que ele as mandaria meter numa choça, para lhas restituir quando chegasse a navio.
Caíra o
capitão, como já sabemos, gravemente enfermo, e não respondeu como o teria
feito se se achasse na inteireza do seu juízo. Prometeu por então que falaria
com os seus. Reuniu-os, pois, e disse-lhes que o rio de Lourenço Marques era
aquele mesmo em que agora se viam, segundo André Vaz, o piloto, lhe havia
afirmado; que quem quisesse poderia seguir; ele, porém, o não podia fazer, por
amor de seus filhos e de sua mulher, que vinha debilitadíssima dos grandes
trabalhos, e já sem escravas que lhe assistissem. Sua determinação, portanto,
era acabar com sua família, quando disso fosse Deus servido. Pedia aos que seguissem
seu caminho, e que achassem embarcação de Portugueses, que lhe trouxessem ou
mandassem novas. Os outros ficassem, e, por onde ele passasse, passariam eles.
Para sossegar os negros, todavia, e para não cuidarem que eram ladrões, seria
necessário entregarem as armas. Era o que lhes cumpria agora fazer. Mandou
portanto que as depusessem. Assim fizeram, contra vontade de alguns deles e
muito mais de D. Leonor. Porém, ninguém
o contradisse senão esta, ainda que de nada lhe aproveitou. Exclamou ela então:
—
Entregais as armas? Pois agora me dou eu por perdida, com toda a gente que aqui
está!
Tomaram-nas
os negros imediatamente, e logo as levaram para casa do rei.
Mal viram
os Portugueses desarmados, caíram os Cafres sobre os desgraçados,
apartaram-nos, bateram-lhes, roubaram-nos, arrastaram-nos por esses matos, cada
um deles como lhe cabia em sorte. Chegados às aldeias, já os levavam
completamente despidos; e com muitas pancadas os lançavam fora.
A Manuel
de Sousa, sua mulher e seus filhos, ao piloto e a umas vinte pessoas, deixaram-
nos ficar na companhia do rei, porque traziam joias, pedrarias, dinheiro.
Assaltaram-nos, e de tudo os roubaram. Depois, disse o rei a Manuel de Sousa
que se fosse em busca dos demais companheiros, que se não arriscavam a nenhum
outro mal.
Os dos
outros grupos se foram juntando. Seriam ao todo umas noventa pessoas. Muito
maltratados, despojados de tudo, recomeçaram dessa forma o seu fadário. Cada
um, não havendo já quem os comandasse, tomou o caminho que lhe apeteceu. E
muitos dos desgraçados se perderam assim.
Manuel de
Sousa, com sua mulher, os meninos, o piloto, o contramestre, e alguns
companheiros que com eles ficaram, seguiram aquele grupo dos noventa náufragos.
Ao fim de
dois dias, porém, tomaram os Cafres, deram neles, e despiram-nos completamente.
Dona
Leonor não se deixou despir, defendendo-se às punhadas e às bofetadas; e então
decerto acabaria a vida se não fossem os rogos de Manuel de Sousa, que lhe
dizia que todos nascemos nus e que mostrasse resignação à vontade de Deus.
Choravam entretanto os dois meninos, pedindo comer: e nada havia que lhes
pudessem dar…
Vendo-se
nua, lançou-se na areia, cobrindo-se toda com os seus cabelos. Fez uma cova e
meteu-se nela. Ainda lhe deram uma mantilha rota; porém, nunca mais Dona Leonor se ergueu dali.
Os companheiros,
quando a viram assim e ao seu bom capitão, por piedade e vergonha se afastaram
um pouco. E disse ela ao piloto, com voz fraquíssima:
— Bem
vedes como estamos, André Vaz. Percebeis que não podemos passar daqui; aqui acabaremos
os nossos pecados. Ide vós embora. Fazei por vos salvar, e encomendai-vos a
Deus. Se puderdes ainda chegar à Índia, — e a Portugal, em algum tempo, —
contai como foi que aqui ficámos.
Eles,
vendo que não lhes podiam dar socorro, lá se foram errando por esses matos, em
busca de remédio para as suas vidas.
Ficaram
com Manuel de Sousa e com sua mulher o contramestre do galeão e algumas
escravas que os acompanhavam. Destas últimas se salvaram três, que conseguiram
chegar a Goa. Por elas se soube, mais tarde, como morreu D. Leonor.
Manuel de
Sousa, ainda que maltratado do entendimento, não esquecia a necessidade de
comer de sua mulher e de seus filhos; e, estando ainda manco de uma ferida que
os Cafres lhe fizeram numa perna, entrou pelo mato a buscar frutas. No
regresso, achou Dona Leonor muito enfraquecida, assim de fome como de chorar.
Um dos meninos morrera já, e por suas mãos o enterrou na areia. No dia seguinte
tornou ao mato, em busca de fruta. Quando voltou, Dona Leonor e o menino
estavam mortos. Em redor, choravam e gritavam umas cinco escravas. Apartando as
escravas, foi sentar-se o marido junto dela, com o rosto apoiado numa mão.
Esteve assim a olhá-la, por meia hora, sem chorar nem dizer palavra. Por fim
ergueu-se, escavou a areia com a ajuda das servas, e enterrou-a a ela e ao seu
filhinho. Todo esse tempo se conservara mudo.
Depois de
enterrada Dona Leonor, e sempre calado, embrenhou-se no mato e desapareceu.
Os que de
toda a companhia conseguiram salvar-se seriam uns oito Portugueses, catorze
escravos e três das escravas que acompanhavam a dama no momento da sua morte.
E, andando por ali sem nenhuma esperança de chegarem a terra de gente cristã,
sucedeu que um navio, em que ia um
parente de Diogo de Mesquita, foi ter àquele rio para comprar marfim. Tendo
notícia de Portugueses perdidos, mandou procurá-los, resgatando-os pelo preço
de algumas contas, que seria de dois vinténs por cada um. Embarcaram, pois, e
chegaram a Moçambique a 25 de maio de 1553.
História
trágico-marítima. Narrativas de naufrágios da época das conquistas, adaptação de António Sérgio. Lisboa:
Livraria Sá da Costa Editora, 1934
____________________
NOTAS:
1 galeão: antiga
embarcação de carga que portava maior tonelagem.
2 Coulão e Cochim: cidades
no Sul da Índia (em Kerala), na qual os Portugueses estabeleceram feitorias.
Cochim foi a capital da Índia Portuguesa até 1530.
3 quintais: unidade
de medida, cerca de cem quilogramas.
4 fuzis: relâmpagos.
5 mestre: responsável
pela navegação de uma embarcação; era, habitualmente, alguém que dominava muito
bem a sua atividade profissional.
6 meter
de capa: imobilizar a embarcação através do desfraldar das velas.
7 papafigos: velas
redondas mais baixas, isto é, a vela grande e o traquete.
8 machos do leme: peças de
ferro, pregadas no bordo vertical interior do leme, e que giram dentro de
fêmeas pregadas na roda da popa.
9 ló: o
bordo do navio onde vão as velas amuradas, e, portanto, o que recebe o vento (o
lado do barlavento).
10 traquete: a mais
baixa e maior vela redonda do mastro da proa. É um dos papafigos.
11 enxárcias: o
conjunto dos cabos fixos que, para um e outro bordo, aguentam os mastros reais,
descendo até às mesas.
12 viradores: cabos
grossos, em geral destinados a gornir ao cabrestante para esforços grandes.
13 brandais: cabo que
desce do calcês de um mastaréu até à mesa da enxárcia. Serve para segurar o
mastaréu para os lados do navio.
14 tamboretes: pranchões
com que se fortificam as aberturas que no convés e nas cobertas dão passagem
aos mastros.
15 manchua: navio de
carga à vela e remos, com um único mastro e vela redonda, muito usado na costa
do Malabar.
16 braça:
medida de oito palmos. A linha com que se sonda é dividida em braças
17 quilha: a peça do
fundo do navio.
18 cepos: pedaços de madeira.
19 brejos:
lugar frio e húmido; pantanal; matagal.
20 reizete:
rei de um pequeno estado; régulo.
21 almadia: embarcação
africana, esguia e comprida, feita de troncos de árvore
Manuel de Sousa Sepúlveda | por Fausto Bordalo Pinheiro, 1994
Que
Deus te perdoe Sepúlveda
O
que foste fazer
Sepúlveda
Abandonaste
o teu filho bastardo no mato
O
mais fraco da fome a morrer
Que
Deus te perdoe
Deixou-se
ficar tão pequeno
Sem
um consolo, um afeto
Tão
pequeno e sozinho
Muito
quieto
Ajoelha-te
ao menos Sepúlveda
Perdeste
o entendimento
Sepúlveda
Aquele
pranto é o teu filho entre os fenos
Comido
pelas feras
Gemendo,
gemendo
Ajoelha-te
ao menos
Ficou
para trás tão cansado
Soluçando
por ti tão baixinho
Tão
cansado a tremer de medo
O
teu menino
Nas
serranias
Nos
lamaçais
Nas
penedias
Nos
matagais
Nos
matagais
E
a tua gente de costas viradas
Viradas
as costas de pura vergonha
Vergonha
pura pela tua nudez
Nudez
pela tua miséria e peçonha
Peçonha
e miséria de gente espancada
Espancada
esta gente despida e calada
Não
vendo em ti salvação os incréus
Entram
pelos matos, buscam os céus
Vão
indiferentes meio aluados
Mais
indigentes, transfigurados
Encomendam-se
aos santos
Lavados
em prantos
Louvados
Sejam
louvados
Louvados
Levanta-te
agora Sepúlveda
Quem
olha por Leonor
Sepúlveda
Foi
a tua mulher pelos negros despida
Pela
força rasgada pela dor
Levanta-te
agora
E
diante dela tão magoados
Choram
os teus dois filhos mais tenros
Tão
magoados
E
acabrunhados dos assombramentos
O
que foste pedir Sepúlveda
Leonor
quer antes morrer
Sepúlveda
Rogaste
que se deixasse despir
E
despida ela ao menos pudesse viver
O
que foste pedir
Se
de vergonha ao ver-se tão desnuda
Se
cobriu toda numa cova na areia
Tão
desnuda que não mais se ergueu da terra já derradeira
Nas
serranias
Nos
lamaçais
Nas
penedias
Nos
matagais
Nos
matagais
E
a tua gente de costas viradas
Viradas
as costas de pura vergonha
Vergonha
pura pela tua nudez
Nudez
pela tua miséria e peçonha
Peçonha
e miséria de gente espancada
Espancada
esta gente despida e calada
Não
vendo em ti salvação os incréus
Entram
pelos matos, buscam os céus
Vão
indiferentes meio aluados
Mais
indigentes, transfigurados
Encomendam-se
aos santos
Lavados
em prantos
Louvados
Sejam
louvados
Louvados
Reza
a tua oração Sepúlveda
Por
Leonor e por Deus
Sepúlveda
Se
nenhum caso fizeste dos teus filhos deixados
Agarrados
à mãe que morreu
Reza
a tua oração
Por
aqueles matos tão adentro
Sem
chorar nem dizer coisa alguma
Tão
adentro
Partiste
p’ra sempre sozinho
Sepúlveda
Sepúlveda
Que
Deus te perdoe
Canção:
"Manuel de Sousa Sepúlveda"
Autor:
Fausto
Álbum: Crónicas
da Terra Ardente
Data: 1994
Crónicas
da Terra Ardente
é o segundo álbum da trilogia Lusitana Diáspora, que inclui ainda os
álbuns Por este rio acima (1982) e Em Busca das Montanhas Azuis
(2011).
O
primeiro álbum da trilogia, Por Este Rio Acima, baseia-se nas viagens de
Fernão Mendes Pinto, relatadas no seu livro Peregrinação (1614) enquanto que Crónicas
da Terra Ardente foi inspirado pela História Trágico-Marítima (1735)
reunida por Bernardo Gomes de Brito.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cr%C3%B3nicas_da_Terra_Ardente
CARREIRO, José. “O naufrágio
de Sepúlveda (1552)”. Portugal, Folha de Poesia, 08-05-2022. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/05/o-naufragio-de-sepulveda-1552.html