Levad', amigo, que dormides as manhanas frias
tôdalas aves do mundo d'amor dizia[m]:
leda m'and'eu.
Levad', amigo que dormide'las frias manhanas
tôdalas aves do mundo d'amor cantavam:
leda m'and'eu.
Tôdalas aves do mundo d'amor diziam,
do meu amor e do voss[o] em ment'haviam:
leda m'and'eu.
Tôdalas aves do mundo d'amor cantavam,
do meu amor e do voss[o] i enmentavam:
leda m'and'eu.
Do meu amor e do voss[o] em ment'haviam
vós lhi tolhestes os ramos em que siíam:
leda m'and'eu.
Do meu amor e do voss[o] i enmentavam
vós lhi tolhestes os ramos em que pousavam:
leda m'and'eu.
Vós lhi tolhestes os ramos em que siíam
e lhis secastes as fontes em que beviam;
leda m'and'eu.
Vós lhi tolhestes os ramos em que pousavam
e lhis secastes as fontes u se banhavam;
leda m'and'eu.
Nuno Fernandes Torneol
NOTAS:
Levad’ (verso 1) –
levantai-vos.
manhanas (verso
1) – manhãs.
tôdalas (verso 2) –
todas as.
leda (verso 3) –
alegre.
em ment’haviam (verso
8) – tinham no pensamento.
i enmentavam (verso
11) – nele (no canto), falavam do meu amor e do vosso.
tolhestes (verso
14) – tirastes.
siíam (verso 14) –
estavam pousadas.
u (verso 23) – onde.
Autor: Nuno Fernandes Torneol -trovador
do século XIII. Pensa-se que tenha estado vinculado às cortes de Fernando III e
Afonso X, pois numa cantiga de escárnio é referido que era um cavaleiro ao
serviço de um rico-homem de Castela. São conhecidos vinte e dois poemas da sua
autoria: treze cantigas de amor, oito cantigas de amigo e uma de escárnio e de
maldizer.
Presença da cantiga nos cancioneiros: CV 242, CBN 641
Descrição:
Género: Cantiga de Amigo
Subgénero:
Alba
Refrão e Paralelística
Cobras
alternadas
Nota geral:
Esta magnífica
alba de Nuno Fernandes Torneol é certamente uma das mais conhecidas e
antologiadas cantigas de amigo de toda a lírica galego-portuguesa, e com
inteira justiça. Como acontece com todas as cantigas que jogam com a dimensão
simbólica, nomeadamente dos elementos naturais a que fazem apelo (no caso,
aves, ramos, fontes), esta é uma composição de sentido aberto, suscetível de
diversas interpretações (que não deixaram de ser feitas, ao longo da sua
história crítica).
Em sentido
estrito, o seu resumo não é difícil: a moça acorda de manhã o seu amigo, que
dorme ainda (pede-lhe para se levantar), enquanto recorda como todas as aves do
mundo cantavam de amor, sentindo-se ela imensamente alegre. Era o amor entre os
dois o que as aves comentavam no seu canto. Mas o amigo cortou os ramos em que
elas pousavam e secou as fontes onde bebiam.
Se a cantiga
nada mais nos diz, duas linhas de leitura parecem, desde logo, evidentes: a
primeira, a identificação que se pode estabelecer entre as aves que cantam e a
moça (que canta), e que é potenciada pela ambiguidade do sujeito do refrão (as
aves cantavam a alegria da moça, ou a alegria da moça é um eco do canto de amor
das aves); a segunda linha de leitura também parece evidente: em algum momento
o amigo perturbou o curso natural do amor, ou seja, a moça alude, nas quatro
estrofes finais (como quatro são as estrofes iniciais), a uma rutura amorosa.
Um primeiro
elemento menos evidente é o facto de o refrão,
cujo tempo é o presente do indicativo, se manter (como lhe compete) inalterado
ao longo de toda a cantiga. Esta reafirmação de uma alegria presente, mesmo nas
estrofes finais, disfóricas, da cantiga, tem sido interpretada duas formas
distintas:
1)
o presente da moça é o de um alegre despertar, depois de uma noite de amor que
se sucedeu a uma rutura, já ultrapassada (recordando esse tempo melancólico, a
moça volta agora a estar alegre);
2)
o presente da moça é o tempo da rutura definitiva, após uma noite que apenas a
confirmou - neste caso, o presente do refrão nas estrofes finais da cantiga
sublinharia, dramaticamente, um tempo feliz recordado na primeira parte e que
não voltará mais (como alguém que insensatamente quer continuar a acreditar
naquilo que sente terminado).
De resto, e
sem com isto tomarmos partido por qualquer uma das duas interpretações (tarefa
que deixamos ao leitor), dois aspetos, de certa forma, complementares, merecem
ainda ser sublinhados. Um deles é a referência às "manhãs frias" (o presente
explícito da moça e do amigo), referência pouco habitual neste tipo de cantigas
de amigo, onde o cenário é geralmente mais idílico e primaveril. De resto,
estas "manhãs frias", juntamente com o fim do canto das aves, as
árvores despidas de ramos e as fontes secas, desenham-nos um cenário de final
do verão ou de inícios de outono, simbolicamente muito paralelo ao tempo
melancólico de uma rutura (passada ou presente).
Seja qual for,
enfim, a interpretação que dermos à cantiga, a arte de Nuno Fernandes Torneol é
plenamente confirmada por esta notável capacidade de aliar o mais elementar ao
mais complexo, ou de condensar, através das formas mais simples e tradicionais,
níveis sucessivos de leitura.
Versões musicais (seguir as hiperligações abaixo)
Originais
Desconhecidas
Contrafactum
Levad'
, amigo, que durmides as manhanas frías
Versão de Paulina Ceremużyńska
Composição/Recriação moderna
Leda
m’and’eu (versão para canto e piano)
Versões de Frederico de Freitas
Versão de Pedro Barroso
Versão de Fontes Rocha, Natália Correia
Versão de Tomás Borba
Versão de José Mário Branco
Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et
al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA.
[Consulta em 2022-06-16] Disponível em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=662&pv=sim>.
Questionário
sobre a leitura da cantiga trovadoresca galego-portuguesa “Levad’, amigo, que
dormides as manhanas frias”.
1. Interprete o
apelo feito pela donzela ao «amigo», nas duas primeiras estrofes.
2. Identifique
duas partes distintas na estrutura temática do poema, justificando a sua
resposta.
3. Analise o
valor simbólico de dois dos elementos da natureza evocados pela donzela.
4. Explicite dois
aspetos que ilustrem a estrutura paralelística presente nesta cantiga.
CENÁRIO DE RESPOSTAS:
1.
Nas duas primeiras estrofes, com o seu apelo, a donzela:
- expressa a vontade de acordar o «amigo»;
- identifica o interlocutor (através da apóstrofe), evidenciando a relação amorosa entre ambos;
- interpela o «amigo», avisando-o da aproximação do dia (na tradição da alba).
2. Na estrutura temática do poema,
podem identificar-se duas partes distintas:
- nas primeiras quatro estrofes, é sobretudo evocada a felicidade associada ao sentimento amoroso recíproco;
- nas quatro últimas estrofes, predomina a expressão do sofrimento da donzela pelo fim do idílio.
3. Aos elementos da natureza
evocados pela donzela pode ser atribuído o seguinte valor simbólico:
- as aves refletem o sentimento do sujeito lírico, fazendo eco da sua alegria;
- os ramos quebrados pelo amigo sugerem a alteração do estado de tranquilidade e de felicidade amorosa;
- as fontes, após terem secado, simbolizam o termo de um ciclo de renovação natural (associado à tristeza e ao desconsolo).
4. Os aspetos que ilustram a
estrutura paralelística presente na cantiga são os seguintes:
- o paralelismo formal, seguindo um esquema fixo (leixa-pren) de retoma de versos anteriores em início de estrofe (por exemplo, a repetição do segundo verso do primeiro dístico no primeiro verso do terceiro dístico);
- o paralelismo semântico, verificável na repetição da mesma ideia, de um dístico para outro, com variações lexicais que assentam frequentemente numa relação de sinonímia («dizia[m]» / «cantavam»; «siían» / «pousavam»).
Fonte: Exame
Final Nacional de Literatura Portuguesa | Prova 734 | 2.ª Fase | Ensino Secundário | 2022
|11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei
n.º 27-B/2022, de 23 de março)
Prova: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/07/EX-LitP734-F2-2022_net.pdf
Critérios de
correção: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/07/EX-LitP734-F2-2022-CC-VT_net.pdf
Antonio García Patiño, Cantigas de Amigo, XIV – Levad’, amigo, que dormides
as manhanas frias, 1999.
© Moleiro.com
Lê agora a versão de Natália Correia desta cantiga de amigo da autoria de Nuno Fernandes Torneol, enquanto ouves a sua gravação áudio.
Ergue-te, amigo que dormes nas
manhãs frias!
Todas as aves do mundo, de amor, diziam:
alegre eu
ando.
Ergue-te, amigo que dormes nas
manhãs claras!
Todas as aves do mundo, de amor, cantavam:
alegre eu
ando.
Todas as aves do mundo, de amor,
diziam;
do meu amor e do teu se lembrariam:
alegre eu
ando.
Todas as aves do mundo, de amor,
cantavam;
do meu amor e do teu se recordavam:
alegre eu
ando.
Do meu amor e do teu se
lembrariam;
tu lhes tolheste os ramos em que eu as via:
alegre eu
ando.
Do meu amor e do teu se
recordavam;
tu lhes tolheste os ramos em que pousavam:
alegre eu
ando.
Tu lhes tolheste os ramos em que
eu as via;
e lhes secaste as fontes em que bebiam:
alegre eu
ando.
Tu lhes tolheste os ramos em que
pousavam;
e lhes secaste as fontes que as refrescavam:
alegre eu
ando
Nuno Fernandes Torneol, Cantares dos trovadores galego-portugueses,
seleção, introdução, notas e adaptação de Natália Correia, Lisboa, Editorial Estampa,
1978, pp. 219-221
Questionário:
1. Indica a quem se dirige o sujeito poético nas
primeiras quatro estrofes, bem como as razões por que o faz.
2. Identifica os recursos expressivos comuns aos versos 7 e 10: «Todas as aves do mundo, de amor, diziam», «Todas as aves do mundo, de amor, cantavam».
3. Caracteriza psicologicamente o sujeito poético, nas primeiras
quatro estrofes, e relaciona o seu estado de espírito com os elementos da
natureza.
4. Interpreta as metáforas dos versos 19 e 20 («Tu lhes
tolheste os ramos em que eu as via; / e lhes secaste as fontes em que bebiam»),
justificando que tipo de situação amorosa é sugerida pelas ações do amigo.
5. Tem em atenção o refrão «alegre eu ando»,
especialmente a sua presença nas últimas quatro estrofes.
5.1 Escolhe a opção correta. Sendo a relação entre os
amantes agora de natureza diferente da inicial, estas palavras da amiga
apresentam um sentido
a. hiperbólico. b. metafórico. c. irónico. d. eufemístico.
5.2 Justifica.
6. Associa cada tempo verbal a uma estação do ano:
a) pretérito
imperfeito: «as aves […] cantavam»;
b) pretérito perfeito:
«Tu lhes tolheste os ramos […] e lhes secaste as fontes»;
c) presente do
indicativo: «Ergue-te, amigo que dormes nas manhãs frias!».
7. Refere o tema do poema.
8. Identifica as afirmações verdadeiras (V) e as falsas (F). Corrige as falsas.
a)
Neste poema, o poeta dirige-se ao amigo.
b) «Manhãs frias» é o
elemento negativo no cenário que funciona como presságio, pois conota um amor
infeliz.
c)
Este poema estrutura-se em duas partes, porque aborda
primeiro o fim do amor e depois a alegria desse amor.
d)
As aves eram cúmplices e inconfidentes daquele
amor.
e)
Eram as aves que faziam ecoar o amor entre a menina e
o seu amigo.
f)
Os
sons nasais transmitem um tom pesaroso.
g) O
sujeito poético desculpabiliza o amigo.
h)
A cantiga está construída com base em estruturas
repetitivas, versos, palavras, refrão.
i)
Os versos apresentam-se em estruturas paralelas, como,
por exemplo os vv. 1 e 4 ou vv. 17 e 22.
j)
Na poesia lírica em geral as repetições não são uma técnica
muito frequente.
k)
Esta cantiga apresenta exemplos de versos cujo sentido
é idêntico a outros anteriores, como sucede, por exemplo, com os vv. 11
(semelhante ao 8.º) e 5 (semelhante ao 2.º).
l)
Há uma variação mínima entre as várias estrofes devido
ao paralelismo e ao refrão sempre presente.
Correção:
1. O sujeito poético, uma rapariga, dirige-se a um «tu»,
o seu amigo, num primeiro momento para lhe pedir que acorde e se levante.
2. Personificação, hipérbole...
3. O sujeito poético vive momentos de felicidade, como o refrão
comprova.
Existe uma identificação entre o sujeito poético e a
natureza: à sua alegria corresponde a alegria do cantar das «aves»; ele projeta
o seu estado de alma na natureza circundante.
4. A donzela diz que ele destruiu aquilo que no cenário
contribuía para a amenidade do encontro. A fuga das aves, o corte dos ramos e a
secagem das fontes simbolizam o fim do amor. Tudo se modifica pela ausência do
amigo e o espaço fica vazio sem a presença das aves tal como o espaço do seu
coração está vazio sem a presença do amor.
5.1. c. irónico.
5.2. Trata-se de uma afirmação irónica, pois o enunciador afirma
uma coisa, mas tem outra em mente. Assim, até ao meio da cantiga o refrão seria cantado e tocado
euforicamente, a partir daí sê-lo-ia ironicamente, já que a alegria da donzela
não existia.
Podemos afirmar que o verso do refrão indica que o sujeito poético não consegue aceitar o fim do seu amor, porque mesmo quando as aves já não podem cantar o amor, a rapariga continua a afirmar a sua felicidade. A ênfase posta na alegria por parte da donzela poderá sugerir que esta ainda não perdeu totalmente a esperança de reverter a situação e de regressar à alegria e felicidade experimentadas no passado.
O refrão poderia ter uma outra interpretação, sugerindo o alívio da donzela por ter mandado embora o amigo, uma vez que este a desiludiu.
6. a) Primavera; b) outono;
c) inverno.
7. O tema do poema é o fim do amor.
8. a) F (Neste poema, o sujeito poético, uma menina,
dirige-se ao amigo).
b) V.
c) F (Este poema estrutura-se em duas partes, porque aborda
primeiro a alegria do amor e depois o fim desse amor).
d) F (As aves eram cúmplices e confidentes daquele amor).
e) V.
f) V.
g) F (O sujeito poético culpabiliza o amigo / a rapariga
acusa o amigo de ter destruído o amor, pois este impediu que as aves
continuassem a cantá-lo).
h) V.
i) V.
j) F (Em poesia lírica as técnicas repetitivas são
fundamentais).
k) V.
l) V.
Bibliografia consultada:
Entre Palavras 8, António Vilas-Boas e Manuel
Vieira. Lisboa, Sebenta, 2014 (2.ª ed.).
P8, Lisboa, Ana Santiago e Sofia
Paixão. Lisboa, Texto Editores, 2014 (2.ª ed.).
Ser em português 10 – Português A, coord.
Artur Veríssimo. Porto, Areal Editores, 2003 (2.ª ed.).
"Girl with pigeons", Morris Hirshfield (1872-1946) |
Ligações externas | Poderá também gostar de:
Edição crítica da cantiga medieval «Levad’, amigo, que
dormides as manhanas frias», disponível em https://www.universocantigas.gal/cantigas/levad-amigo-que-dormides-as-manhanas-frias?cambiarIdioma=es&verso=13,
Coruña, Facultade de Filoloxía, © 2022
Análise da cantiga de amigo «Levad',
amigo que dormides as manhanas frias», disponível em https://portugues-fcr.blogspot.com/2018/10/levad-amigo-que-dormides-as-manhanas.html, 2018-10-16
«Levad’,
amigo, que dormides as manhanas frias: Una lectura de la Cantiga de Torneol», Toribio
Fuente Cornejo. In: Archivum n.º 44-45, https://reunido.uniovi.es/index.php/RFF/article/view/479
Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 44 de Português - 7.º e
8.º anos, sobre a cantiga de amigo «Ergue-te, amigo que dormes as manhãs
frias!», disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e539127/portugues-7-e-8-anos,
2021-04-23
“Poesia
trovadoresca galego-portuguesa”, José Carreiro. In: Folha de Poesia,
2018-05-18. Síntese didática disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/poesia-trovadoresca-galego-portuguesa.html
Sedução e drama nos cantares de amigo.
CARREIRO, José. “Levad', amigo, que dormides as manhanas frias (Ergue-te, amigo que dormes nas manhãs frias!)”. Portugal, Folha de Poesia, 16-06-2022 (última atualização: 2022-07-26). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/06/levad-amigo-que-dormides-as-manhanas.html