HUMILHAÇÕES
De todo o coração - a
Silva Pinto1
I
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Esta aborrece
quem é pobre. Eu, quase Job2,
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.
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II
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5
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Lá cansa-me o
ranger da seda, a orquestra, o gás3;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos4,
E enquanto vão passando as cortesãs5 e os brilhos,
Eu analiso as peças no cartaz.
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III
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10
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Na
representação dum drama de Feuillet6,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé7.
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IV
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15
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Como ela
marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
Fiquei batendo os dentes de
terror.
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V
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20
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Sim! Porque
não podia abandoná-la em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a ideia
De vê-la aproximar, sentado na plateia,
De tê-la num binóculo mordaz!
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VI
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Eu ocultava o
fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
- Quem compra algum bilhete ou vende
alguma senha?
E ouviam-se cá fora as ovações.
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VII
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25
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Que
desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espetáculos do Som.
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VIII
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30
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Ao mesmo
tempo, eu não deixava de a abranger;
Via-a subir direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para me
abater.
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IX
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35
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Saí; mas ao
sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o
militar.
|
X
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40
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De súbito, fanhosa,
infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
- Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...
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O Livro de Cesário Verde, Lisboa, 1887
Edição utilizada: Obra
completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por
Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983
______________
Notas:
1 Silva Pinto - Crítico literário, ensaísta,
dramaturgo e romancista português, da segunda metade do século XIX, nascido a
14 de abril de 1848, em Lisboa, e falecido a 4 de novembro de 1911, na mesma
cidade. Foi um dos principais doutrinadores do Realismo-Naturalismo, privilegiando
a estética de Balzac, de cuja obra foi tradutor e grande admirador, e a crítica
de Gustavo Planche. Depois de uma passagem pelo colégio de jesuítas de
Campolide, começa a trabalhar como ajudante de despachante de alfândega. A
partir de 1872, dedica-se ao jornalismo, estreando-se como colaborador no
jornal O Trabalho e fundando, juntamente com Magalhães Lima, Gomes Leal,
Guilherme de Azevedo e Luciano Cordeiro, a revista literária O Espetro de
Juvenal. Ao longo da sua vida, deixará uma imensa colaboração dispersa por
periódicos como O Ocidente, Jornal da Tarde, A Atualidade, A Voz do Povo,
Revista do Norte e Revista Literária, parte da qual foi posteriormente
recolhida nos três volumes dos Combates e Críticas. Em Espanha, combate
ao lado dos republicanos contra os carlistas. Depois de uma estada de dois anos
no Brasil, regressa a Portugal. Em 1887, recolhe os poemas de Cesário Verde,
organizando a edição do seu livro póstumo, que prefaciou e anotou. A partir de
1889, dedica cada vez mais a sua atenção à obra de Camilo, publicando a
correspondência mantida com o escritor. (Porto Editora – Silva Pinto na Infopédia [em linha].
Porto: Porto Editora. [consult. 2022-11-12]. Disponível em
https://www.infopedia.pt/$silva-pinto)
2 Job - Figura bíblica que encarna o homem justo
atingido pela infelicidade extrema; (fig.) homem dotado de grande paciência e
resignação, muito pobre.
3 Em 1848, tinham aparecido os primeiros candeeiros
a gás a iluminar as ruas de Lisboa.
4 Espartilho - espécie de cinta que vai das ancas
até abaixo dos seios, com ilhós por onde passam fios de seda longos que são
puxados de forma a apertar ao máximo a cintura da mulher.
5 Cortesã - amante de soberano; prostituta com clientela de estrato
social elevado. Na poesia baudelairiana, as cortesãs e prostitutas têm lugar de
destaque. Inclusivamente, Baudelaire chega a comparar o escritor a uma cortesã
que deve agradar ao público para vender a sua mercadoria, que nada mais é que
seu próprio corpo: “Se de um lado a atriz se aproxima da cortesã, por outro
assemelha-se ao poeta” (in O pintor da vida moderna). "As
cortesãs não eram bem recebidas na sociedade respeitável parisiense no século
XIX. Mas, havia apenas um século, estas mulheres eram aceites aos mais altos
níveis – e a mais famosa foi Jeanne-Antoinette Poisson, que, durante perto de
20 anos, foi a amante oficial do rei Luís XV de França." Educada na arte e literatura, casou aos 19 anos,
mas em 1745 conheceu Luís XV e tornou-se amante dele. Como consequência,
terminou o casamento, mudou-se para o Palácio de Versailles e passou a
influenciar a moda e a política. (cf. Os grandes mistérios do passado, Lisboa: Seleções do Reader’s
Digest, p. 308).
6 Feuillet - novelista e dramaturgo preferido da
alta sociedade da época. De acordo com Hélder Macedo, a informação do poeta
sobre o drama do escritor francês Octave Feuillet (1821-1890), que era encenado
naquela noite, representa também uma crítica ao autor de peças. A peça Roman
d’un jeune homme pauvre, de Feuillet, tem como temática um relacionamento
impossível entre um jovem de classe social baixa apaixonado por uma mulher de
classe elevada, tal qual ocorre no poema de Cesário Verde: «(...) Feuillet era
o manipulador de personagens-tipo que, no dizer ferino de Flaubert, devia o seu
sucesso a duas razões: a primeira, as classes baixas acreditarem que as classes
altas eram como ele as representava; e, a segunda, as classes altas verem-se
representadas como gostariam de ser.» (Cesário Verde, o romântico e o feroz.
Lisboa: Engrenagem, 1988. Apud: Entre
Paris e Lisboa: a modernidade de Cesário Verde, Luciana Nascimento.
Campinas-SP, UNICAMP, 2003).
7 Coupé - carruagem fechada de tração animal, com
dois lugares no interior e um no exterior para o cocheiro.
Análise
de texto
O poema o poema “Humilhações”, de Cesário Verde,
pode ser dividido em duas partes. A
primeira compreende as oito primeiras estrofes e a segunda parte é constituída
pelas duas últimas estrofes.
Esquematicamente, o poema
pode visualizar-se do seguinte modo:
CABRAL, A. S. [1997] Cesário
Verde – Propostas de Análise, Edições Sebenta – Português
No início do poema, logo na primeira
estrofe, o poeta faz uma comparação ao personagem bíblico Job, homem de
caráter e de uma ética inquestionável. Na narrativa da vida de Job o mesmo é
marcado pelas humilhações, sofrimentos, perdas, abandonos, injustiças, dores e
desprezos que o mesmo sofre na vida, uma vez que este é fiel e temente a Deus e
que aceita todas as desgraças por idolatração ao seu Deus, seu Salvador. A
comparação feita pelo poeta com a história de Job se dá pelo facto de o eu
lírico também ser humilhado e desprezado pela sua amada que se encontra em uma
condição de vida melhor do que a dele, mas que, mesmo assim, diante de todas as
humilhações ele a idolatra. A segunda estrofe é marcada pelo incómodo do
ranger da seda, ou seja, o eu lírico se incomoda pelo facto de não fazer parte daquele
mundo, mundo artificial, desumano que advém da civilização urbana, uma das
fortes características do poeta em estudo, para ele a vida na cidade é marcada
pela artificialidade e pela desumanidade, uma vez que, é nesse espaço que as
desigualdades sociais são encontradas de forma gritante.
Na terceira estrofe, o poeta
descreve a presença do eu lírico aguardando junto à porta do teatro para ver a
sua amada, mulher inatingível, inalcançável, por pertencer a outra realidade
social bem diferente da sua, como revela o verso
“Eu aguardava, junto à porta, na penumbra”.
O eu lírico relata a humilhação que
sofre por desejar aquela mulher que lhe humilha e se desfaz dele. Ainda nessa
estrofe percebemos a figura feminina definida pela mulher burguesa, rica e que
mostra uma distância enorme entre ela e o eu lírico, pelo facto, de o mesmo não
estar na mesma classe social que ela, motivo que a leva a desprezá-lo e
torná-lo cada vez mais distante de sua amada: “E
entrar no camarote. Antes estimaria / Que o chão se abrisse para me abater.”
Nas demais estrofes da
primeira parte do poema, o poeta descreve a diferença social que há
entre o eu lírico e a sua amada ao descrever suas vestimentas, o local onde o
mesmo se encontra, no caso do lado de fora do teatro, onde a amada assiste ao
espetáculo sentada no camarote e ele assiste apenas o percurso que a mesma faz
para entrar no teatro, falta-lhe dinheiro, vestimentas adequadas em comparação
aos que ali estão presentes. O eu-lírico é pobre, porém com certo grau de
conhecimento elevado, facto observado quando ele diz que espera a chegada de
sua amada e que até ela chegar fica a analisar as peças no cartaz.
Mais uma vez é lançada uma crítica a
sociedade desigual, injusta que não está nem um pouco interessada ao que
acontece ao seu redor, que os menos favorecidos são tratados de forma
humilhante, indiferente, desprezível, pontos que marcam a obra de Cesário Verde
por ele ser um poeta que se incomoda com as diferenças de classes sociais.
Cesário é tido como o poeta do quotidiano, de uma linguagem clara, sem muitos rodeios para expressar o que
deseja e o que quer passar para o leitor, isso fica claro e evidente na segunda
parte do poema, quando o mesmo denuncia a guarda municipal espancando o
povo, o mesmo confessa se revoltar contra os militares diante de tais atitudes.
“Saí; mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
----- Cresci com raiva contra o militar.”
Nesta estrofe, o autor faz uma crítica
social, na qual mostra com clareza a opressão do povo comum diante dos
poderosos, das autoridades, como também a indignação com relação ao tratamento
do povo humilde. E na última estrofe, com sua linguagem clara e objetiva, Cesário
Verde nos apresenta mais uma crítica no que se refere à sociedade, desta vez
ele mostra-nos uma verdadeira imagem do contexto social como responsável por um
dos maiores conflitos do sujeito – a
convivência dentro da perspetiva de desigualdade social.
“De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
----- - Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...”
É nessas duas últimas estrofes,
ou seja, na segunda parte do poema que Cesário Verde mostra a identificação do
eu lírico com a sua realidade social, ou seja, no poema é mostrado duas
realidades: na primeira, o eu lírico contempla a amada, mulher burguesa que
o despreza por estar inserida numa condição social diferente da dele; nesse caso,
podemos afirmar que, nessa realidade representada no poema, o sujeito lírico encontra-se fora da sua realidade social; já na segunda parte, ao encontrar-se com
a velhinha, o eu lírico encontra-se de facto com a sua realidade social, a de um
povo oprimido, injustiçado e desprezado pelo sistema, carente e, acima de tudo, humilhado pelos poderosos.
É na figura dessa velhinha que o autor
deixa claro a representação, na sua obra, da imagem dos conflitos sociais. Em
suma, o poema Humilhações,
desde o seu título, mostra-nos o que de facto o autor pretende nos passar, ou
seja, a humilhação na qual o povo oprimido se encontra, seja no que se refere à
vida social, seja na vida particular do indivíduo.
Maria Verônica de Oliveira,
Entre
“humilhações” e “contrariedades”: representações de conflitos sociais na poesia
de Cesário Verde.
Campina Grande, UEPB, 2016
Síntese do poema
"A dialética
semântica Opressão / Humilhação exclui qualquer veleidade aproximativa e, por conseguinte,
qualquer possibilidade de consecução em termos de relação homem/mulher. Só a revolta
do poeta permitirá introduzir um terceiro termo superador da antítese Senhor/Escravo:
a Vingança". (...) Este paradigma temático ocorre em
"Humilhações", onde a vingança é conseguida através do reverso da
mulher atriz na velhinha "suja", "fanhosa, infecta, rota,
má", que o poeta antepõe como sucedâneo irreversível da mulher altiva e
opressora".
José Bernardes, "A
Mulher na Poesia de Cesário Verde" in Cadernos de Literatura, n.º
24, outubro de 1986)
Modernidade do poema Humilhações, de Cesário Verde
O poema
“Humilhações”, publicado postumamente em 1887, em O Livro de Cesário Verde,
tem vários pontos de contato com o restante da obra de Cesário Verde, no que
ela tem de característico e inovador no quadro da poesia portuguesa da segunda
metade do século XIX.
Por isso cabe uma análise detida, a começar pela forma,
desse poema que não é dos mais conhecidos e apreciados do autor, mas que já
contém muito de seu estilo.
A começar pelo metro, nele há uma alternância entre
decassílabos (último verso de cada quarteto) e alexandrinos (três primeiros
versos), sendo esse último verso, como observa David Mourão[2], pouco comum na poesia
portuguesa até a época de Cesário, quando passa a ser utilizado mais largamente
por autores como Guerra Junqueiro, Guilherme de Azevedo e Gomes Leal, e ausente
da produção inicial de Cesário, que o empregará, no entanto, com frequência na
sua produção madura, e até o utilizará como metonímia para sua poesia, em
“Contrariedades”:
“E apuro-me em lançar originais e exatos, /Os meus alexandrinos”.
A originalidade dos alexandrinos pode se referir
tanto a infrequência do verso na poesia portuguesa quanto ao uso específico que
dele faz autor. Sendo o verso clássico da poesia francesa, seu uso assinala
também a influência dessa poesia e da cultura francesa em geral nos autores do
século XIX, igualmente visível no uso de palavras francesas, “Feuillet” e
“coupé” (que inclusive rimam entre si).
As expressões francesas e uma estrutura
métrica muito similar (um decassílabo seguido de três alexandrinos) também
estão presentes em Sentimento de um Ocidental”, outro retrato, mais extenso, da
paisagem urbana lisboeta, parecendo a inversão da posição dos alexandrinos e do
decassílabo assinalar a expansão de uma impressão inicial do eu-lírico
“flaneur”, enquanto em “Humilhações” o que há é uma “contração” em função dos
diversos anticlimax que marcam o poema (o verso final menos extenso – nesse
caso um hexassílabo – com essa função de anticlimax também é usado em
Contrariedades). Nos dois poemas o verso longo de doze sílabas adequa-se ao
caráter narrativo-descritivo dos poemas, próximos da prosa, o que indicam
também os enjambements (“[…]Eu, quase Job, /Aceito seus desdéns[…]”, “[…]A
guarda/ Espanca o povo[…]”, em Humilhações, “Que as sombras, o bulício, o Tejo,
a maresia/Despertam-me um desejo absurdo de sofrer”, em Sentimento de um
Ocidental).
Outros procedimentos formais comuns ao restante da
produção de Cesário é a sequência de adjetivos ou substantivos (em geral três
ou quatro), unidos assindeticamente, muitas vezes de sentido similar e
complementar, que captam, num ritmo veloz, como um “instantâneo”, um ambientes,
sensações/estados de espírito e indivíduos[3].
Essas expressões sucintas e incisivas também
iniciam os poemas, como indicações de cena ou sínteses do enredo: “Esta
aborrece quem é pobre. […]”(“Humilhações”) “Dez horas da manhã;[…]” (“Num
Bairro Moderno”), “Faz frio.[…]”(Cristalizações”, “No campo;[…]” (“De Verão”)
“Ei-la, como vai bela![…]” (“Esplêndida”), “Eu hoje estou cruel, frenético,
exigente;[…]”(“Contrariedades”).
Esse processo se estende até o uso dos adjetivos, que em
geral não é mais, como no romantismo, retórico ou ornamental, mas expressivo e
essencial à construção do verso, o que vincula Cesário à vanguarda de seu tempo
e às mudanças de sensibilidade operadas pelo realismo, porque, segundo Saraiva,
ele “introduziu no verso o processo queiroziano de suprir pelo adjectivo ou
pelo advérbio uma relação lógica extensa, de imediatizar, pela surpresa de uma
relação verbal, uma sugestão que morreria se fraseologicamente se desdobrasse”[4].
Em “Humilhações” há, além da hipálage característica de Eça, “binóculo mordaz”,
em que a característica do usuário é transferida ao objeto, um uso quase
adverbial do adjetivo em “Saltou soberba o estribo do coupé” – “saltou soberbamente”
-, para o qual contribui a ambiguidade semântica do adjetivo, que pode
significar tanto “magnífica” quando “arrogante”(nesse segundo caso, o sentido
seria “saltou de forma arrogante”), o que sintetiza as características de certo
modo opostas, em termos de avaliação (magnifica como exaltação e arrogante,
como censura), mas indissociáveis, da mulher observada.
Outros poemas exemplificam esse uso sugestivo do
adjetivo: em “Disseminadas, gritam as peixeiras” (“Cristalizações”) e
“longínqua flauta”(“O Sentimento de um Ocidental”), os adjetivos dão
coordenadas espaciais, confundindo ação e estado (seria possível dizer “as
peixeiras se espalham e gritam”, “a flauta soa ao longe”), o que contribui para
o efeito de “instantâneo fotográfico”, que procura fixar um movimento. Em “E
muito descansado, atira um cobre lívido, oxidado” e “gritou-me prazenteira”
(“Num Bairro Moderno”), o sentido é claramente adverbial, mas os outros
adjetivos que descrevem a vendedora já oscilam entre características
circunstanciais e permanentes, em “E rota, pequenina, azafamada”, a
característica constitutiva “pequenina” se mistura a “rota”, já mais extrínseca
mas ainda relacionada à condição social da personagem, e “azafamada”,
inteiramente circunstancial (ou seja, adverbial), enquanto em “Se ela se curva,
esguedelhada, feia” é um adjetivo que descreve uma característica constitutiva,
“feia”, que ganha uma nuance adverbial, porque ligada a um verbo, como se o
olhar do poeta, apreendendo-as simultaneamente, igualasse as características
permanentes e as circunstanciais. O uso do adjetivo também é extremamente
intencional em “E gritos de socorro ouvir estrangulados”, em que a metáfora
“estrangulado” para “abafado”, “baixo ou indistinto” (nesse caso, por causa da
distância) volta a ser viva por se tratar de uma cena suposta de violência.
Esses recursos estão bem ajustados ao conteúdo do poema
que, sob a aparência do lugar-comum da frustração amorosa, tratam de uma nova
experiência urbana. A situação descrita é de um eu-lírico pobre que diariamente
vai observar sua amada (embora os sentimentos causados por ela no eu-lírico
nunca sejam descritos pela expressão “amor” ou similares, mas sempre por
expressões que acentuam a diferença hierárquica, “seus desdéns, adoro-os”, “me
deslumbra”, “desvanecimentos”, “fiquei batendo os dentes de terror”), que é
rica – aborrece quem é pobre, vai aos principais teatros, ocupa camarotes,
sobressai entre as outras mulheres, entre as quais há “cortesãs”.
O eu-lírico não parece ter nenhuma pretensão
de entrar em contato com ela – não tem nem mesmo coragem de passar do saguão do
teatro – e a “relação” se resume à observação – observação aguda do eu-lírico,
que chega a “analisar” as peças em cartaz, sendo o seu grande temor uma
inversão de papéis, em que a mulher o observasse com o “binóculo mordaz”, o que
nos faz pensar se a visão do eu-lírico, apesar do aparente “deslumbramento”,
também não seria mordaz, já que ele analisa, a “abrange”, constata que ela é
“nervosa e vã” e que as outras mulheres, sob a bela aparência dos espartilhos,
gemem, um traço bastante realista da descrição. O cenário ganha mais vulto que
a mulher em si, e sua única característica pessoal é a arrogância, “aborrece
quem é pobre”, “seus desdéns, seus ódios”, “saltou soberba”, “via-a subir,
direita”, sendo mais abundante a descrição do ambiente deslumbrante que a
cerca: “cortesãs”, “brilhos”, “guarnições das sedas” roçando no “veludo” , “o
ranger das sedas, a orquestra, o gás”, as “largas escadarias”, o “coupé”. O
trecho mais elogioso é vago: ela é a pérola do “Tom” (algo relativo e ligado à
moda), e a metáfora para descrever seu encanto, “melodia”, é extraída do
próprio ambiente em que ela está (a ópera é um “grande espetáculo do Som”).
Além disso, como observa Mario Higa[5], “harpa e rabeca” é uma
combinação insólita de instrumentos, que sugere ironia. Em “Esplêndida” há a
mesma ênfase no luxo material de que a mulher se reveste e em que sua
personalidade parece se diluir: “sedas multicolores”, “azul celeste do seu
landau forrado de cetim”, “negros corcéis que a espuma veste”, “peles de
tigre”, “clara como os pós a marechala”, “ducalmente esplêndida” (as
comparações, aqui, como no caso de “espetáculo do Som”, são metonímicas: a
mulher provavelmente usa algum tipo de maquiagem e é fidalga), “peles de
tigre”, etc. A comparação insólita e jocosa com os “magníficos almoços do Mata”,
no verso final desse poema, já sugere a equivalência entre os esplendores da
amada e os outros atrativos oferecidos pela vida urbana.
Nos dois poemas, portanto, a mulher altiva e
indiferente, uma constante nos poemas de Cesário dedicados a mulheres
(“Deslumbramentos”, “Frígida”, “Esplêndida”, “Arrojos”, “A Forca”), é uma
metáfora para o fascínio exercido pelo luxo da metrópole sobre o eu-lírico
flaneur, cuja contrapartida, no entanto, é a opressão que, para se manter, ele
exerce sobre as classes inferiores, com as quais o eu-lírico se identifica – em
“Humilhações” muito mais explicitamente do que em “Esplêndida”, já pelo título
– o que converte o elogio em crítica. Dessa perspectiva o surgimento intempestivo
da guarda municipal, instrumento de repressão das classes inferiores, na
segunda parte do poema, é indissociável da parte inicial, e essa associação é
reforçada na quinta estrofe pela escolha dos termos associados à esfera
militar: “marcha”, para indicar o andar da mulher, e “guarnições” (das sedas),
significando “adornos” mas também remetendo a “conjuntos de tropas
estabelecidos em determinado local”, sendo o “terror” incompreensível para o
burguês não apenas aquele causado pela mulher soberba na sensibilidade do
poeta, mas pelos militares nos pobres.
Do ponto de vista literário, a posição de
observador, o registro de fragmentos do quotidiano urbano, a sensorialidade e a
sinestesia (“ranger das sedas, a orquestra, o gás”, em que se misturam
impressões sonoras e olfativas, com sugestão tátil no “ranger das sedas”), o
prosaísmo, o cinismo e o masoquismo vinculam-se à poesia de Baudelaire. Do
ponto de vista sociológico, os temas de “Humilhações” vinculam-se à experiência
urbana, decorrente da industrialização, que está na raiz da poesia
baudelairiana e que se introduzia, ainda que muito mais lentamente do que em
Paris e com uma feição própria, em Lisboa.
Joel Serrão, ao descrever essa experiência,
tratando da representação do campo e da cidade na poesia de Cesário, refere-se
ao crescimento demográfico – em 1890 apenas Lisboa e o Porto “evidenciam certas
características das cidades europeias contemporâneas”, possuindo,
respectivamente, 391.206 e 167.955 habitantes, em oposição aos apenas 23.000
habitantes da terceira cidade mais populosa, Braga, sendo que entre 1878 e 1890
a população lisboeta mais que duplica[6]– a modernização arquitetónica –
“Lisboa estende-se e moderniza-se, a construção de imóveis se torna visível”[7][…].
– do calçamento – “A larga rua macadamizada, diz o poeta. Rua nova, europeia.
Por ela, e pelas restantes, circulavam os carros particulares e de aluguer
tirados a cavalos, eis referências frequentes na poesia de Cesário.[8])”
– e da iluminação – […] Só em 1848 se acendem os primeiros 26 candeeiros a gás.
Mas em 1871 já havia no concelho de Lisboa 3080 candeeiros a gás. […] A
insistência com que Cesário se refere à luz a ao cheiro do gás, que por vezes o
perturba (“ o gás extravasado enjoa-nos, perturba”), além de outros possíveis
significados, mostra como esse sinal de civilização entrara na vida corrente,
se tornara numa presença quotidiana.”[9]Essas duas últimas modificações se
fazem patentes no poema.
A referência à guarda municipal reprimindo os
contratadores de senhas às portas dos teatros também parece ser uma imagem
frequente na representação do ambiente urbano na literatura parisiense da
época, como nos indicam um conto de Paul de Kock sobre esse tema, “Les
marchands de contremarques[10]”, e a referência a essa
atividade no verbete “L’armee”, de Les français peints par eux-mêmes :
encyclopédie morale du dix-neuvième siècle, e no Physiologie
du Flaneur.
Outro traço
“moderno” do poema é o uso de um termo do vocabulário médico da época, “magnetizador”.
No século XIX houve um renovado interesse pelo chamado “magnetismo animal”,
termo cunhado pelo médico alemão Franz Anton Mersmer para designar uma força
invisível emanada dos seres animados e capaz de influenciar seres humanos e que
ele cria explicar os fenômenos hipnóticos utilizadas no tratamento de seus
pacientes (Charcot, médico com quem um amigo de Cesário, Bettencourt Rodrigues,
estudou em Paris[11],
também utilizou a hipnose para fins terapêuticos).
Esse interesse reflete-se na obra de um autor
realista como Guy de Maupassant, que tem um conto intitulado “Magnetismo”. Essa
expressão aparece em outras poesias de Cesário associado a mulher fatais, “Que
grande cobra, a lúbrica pessoas/ Que espartilhada escolhe uns xales com
debuxo!/ Sua excelência atrai, magnética, entre luxo[…]” (“O Sentimento de um
ocidental”), “Tem a altivez magnética e o bom tom/Das cortes
depravadas”(“Esplêndida”). Outros termos do vocabulário médico utilizado são
“aneurisma”, “histerismo”(“Sentimento de um Ocidental”), “apoplexia” (“Num
Bairro Moderno”) “nevrose” (“Nevroses” era o título inicial de
“Contrariedades”), todos referentes à vida nas cidades, que no poema “Nós” o
autor associa à debilitação física, em contraposição à “riqueza química do
sangue” dos campesinos, ou, em “Num Bairro Moderno”, a “As forças, a alegria, a
plenitude/ Que brotam dum excesso de virtude/Ou de uma digestão desconhecida”.
Vê-se assim que “Humilhações”, por inserir
elementos concretos e prosaicos em uma poesia de temática amorosa, pela imagem,
em parte metafórica, da mulher indiferente e altiva, pela visão negativa
implícita da experiência na cidade, mas com o uso de recursos formais ligados
às novas possibilidades de sensibilidade emergidas dessa experiência, contém
elementos característicos da técnica e da mundividência de Cesário Verde.
Publicado por
aqualtunegramatica em https://gramaticaexercicios.wordpress.com/2019/01/24/modernidade-do-poema-humilhacoes-de-cesario-verde/
____________
[1] VERDE, Cesário. Poemas
reunidos. Introdução e notas de Mario Higa. Cotia (SP): Ateliê
Editorial, 2010, p.112.
[2] MOURÃO-FERREIRA,
David. Sobre o decassílabo e o alexandrino na poesia de Cesário Verde In:
Colóquio Letras, N. 93, Set.1986. p.74
[3] “o
ranger da seda, a orquestra, o gás” , “fanhosa, infecta, rota, má”
(“Humilhações”), “Com choques rijos, ásperos, cantantes”, “E os rapagões,
morosos, duros, baços”, “E tangem-me, excitados, sacudidos, o tato, a vista, o
ouvido, o gosto, o olfato!”, “Possantes, grossas, temperadas d’aço”, “Com ela
sofres, bebes, agonizas”, “eles, bovinos, másculos, ossudos”, “Mastros,
exárcias, vergas!”, “Madeiras, águas, multidões, telhados”, “Cheira-me a fogo,
sílex, a ferragem”, “Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura”
(“Cristalizações”), “cruel, frenético, exigente” , “amo insensatamente os
ácidos, os gumes, e os ângulos agudos” (“Contrariedades”), “eu que sou feio,
sólido, leal”, “tu que és bela, frágil, assustada”, “uma turba ruidosa, negra,
espessa”, “que me tornas prestante, bom, saudável”, “A ti, que és ténue, dócil,
recolhida”, “Eu, que sou hábil, prático, viril” (“A Débil”), “E rota,
pequenina, azafamada” (“Num Bairro Moderno”), “De uma ovelhinha branca,
ingénua, delicada”(“Merina”), “Respiro indústria, paz, salubridade” (“De
Verão”), “E evoco, então, as crónicas navais: Mouros, baixéis, heróis, tudo
ressuscitado!”, “E nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso”, “Muram-me as
construções retas, iguais, crescidas;” “Com santos fiéis, andores, ramos,
velas” (“Sentimento de um Ocidental”), “Várzeas, povoações, pegos, silêncios
vastos”, “Vícios, sezões, epidemias, furtos” (“Em Petiz”).
[4] SARAIVA,
António José & LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. Rio de
Janeiro: Cia. Brasileira de Publicações, 1969, p.986.
[5] VERDE,
Cesário. Poemas reunidos. Introdução e notas de Mario Higa. Cotia (SP): Ateliê
Editorial, 2010. p.111
[6] SERRÃO,
Joel. Cesário
Verde: Interpretação, poesias dispersas e cartas. 2a edição. Lisboa:
Delfos, 1961,p.34
[7] Ibidem,
p.40.
[8] Ibidem, p.41.
[9] Ibidem,
p.42.
[10] Compra
e venda de senhas “Les marchands de contremarques”. In: CASTILHO, José Roberto
Fernandes. A Grande Cidade: Um
retrato de Paris no começo do século XIX – Contos e Crônicas de Paul de Kock.
Organização, notas, e revisão de tradução de J.A Xavier de Magalhães. São
Paulo: Editora Pilares, 2015
[11] FIGUEIREDO,
João Pinto. A Vida
de Cesário Verde. 2a edição.
Lisboa: Editorial Presença, 1986.p.30
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“Humilhações, Cesário Verde”, José
Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-28. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/humilhacoes-cesario-verde.html