Arte
poética
Vai, poema, procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob tanta literatura.
Se a escutares, porém, tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então, se puderes, pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.
Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
e teu canto, insensato, será feito
só de melancolia e de despeito.
E de discórdia. E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?
Manuel António Pina, Os livros, 2003
(Todas as Palavras ‒ poesia
reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, p.
309)
Leitura orientada da
“Arte Poética”
A escolha
do título "Arte Poética" sinaliza o tema central do poema: uma
reflexão sobre a própria poesia e o seu propósito. Desde o início, somos
confrontados com a instrução dada ao poema de procurar a "voz
literal" que se oculta sob a literatura.
“A
demanda é por aquilo que o poema não tem: procure algo, uma voz literal, uma
origem. Mas isso está além do alcance tanto do texto, quanto do humano. Como
vimos, o literal está associado a um sentido de fim, o fim “das interpretações
e sentidos”. Por isso, o poema, como Orfeu, precisa regressar desse “mundo dos
mortos”. Não para trazer consigo a voz literal, mas novamente a literatura. O
que o poema procura está nele mesmo, na linguagem e não fora dela. Não é à toa
o diálogo com a tradição órfica. Tradição essa que tematiza a perda/ ausência
da amada (de um ser) pela presença da poesia. Orfeu é a encarnação do canto
pela materialização da música enquanto sujeito que toca a lira e objeto desse
mesmo instrumento, ou seja, ele é um tipo de prosopopeia.” (Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de
Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. São Paulo, USP,
2021)
Os versos “Se a escutares,
porém, tapa os ouvidos, / porque pela primeira vez estás sozinho” sugerem que,
ao encontrar a “voz literal” mencionada anteriormente no poema, o sujeito deve
tapar os ouvidos. Isso pode ser interpretado como uma rejeição da verdade
absoluta que essa voz pode representar. O sujeito está sozinho pela primeira
vez, o que pode ser angustiante. A verdade absoluta pode ser assustadora e
solitária, e é preferível a liberdade do “caminho das interpretações e dos
sentidos”. Esses versos sugerem que a busca pela verdade pode levar a um lugar
solitário e angustiante, e é melhor evitar ouvir a “voz literal”.
A
advertência de não olhar para trás, que Orfeu não respeitou, ressalta a
dificuldade de se manter autêntico diante das influências do passado e das
convenções literárias.
Mas não olhes para trás, não
olhes para trás,
ou jamais te perderás;
e teu canto, insensato, será feito
só de melancolia e de despeito.
E de discórdia.
A ideia
expressa pelo sujeito poético é a de que a "perdição" e a
"insensatez" são necessárias para alcançar uma expressão poética mais
autêntica e original.
Enquanto
Orfeu não podia olhar para trás para não perder a sua amada Eurídice, no
contexto da "Arte Poética", o desejo é justamente perder-se para
encontrar a verdadeira voz poética.
A
"perdição" aqui pode ser vista como um estado de desorientação, em
que o poema se distancia de fórmulas conhecidas e se lança num percurso de
autodescoberta e experimentação. Ao perder-se, o poema pode descobrir novas
formas de expressão, que talvez não sejam previsíveis ou racionais, mas que são
genuínas e únicas.
Da mesma
forma, a "insensatez" sugere que o poema deve permitir-se ser
irracional ou até mesmo "louco" na sua abordagem criativa. Isso
significa que o poema não precisa se ater apenas à lógica e à razão, mas pode
abraçar o caos, a emoção e o inesperado como fontes de inspiração.
Mas a
verdade é que o passado literário não está "sepultado" nem estão
superados os elementos inerentes à experiência humana e à própria criação
artística, tais como o tumulto, o ressentimento e a ironia.
O sujeito
poético, ao encorajar o poema a não olhar para trás e a enfrentar o passado
insepulto, está a incentivar a que o poema busque a sua própria voz e
originalidade na criação artística.
Numa
entrevista ao jornal Público de 07-06-2011, que reproduzimos a seguir, Manuel
António Pina explica o motivo pelo qual a "Arte Poética" parece
abordar a impossibilidade de remontar à fonte, ao afirmar: «É que mesmo que ele
[o poema] encontre a Palavra, tem de regressar, como lá digo, "pelo
caminho das interpretações e dos sentidos". E não pode olhar para trás,
porque senão jamais se perderá. Orfeu não podia olhar para trás para não se
perder, mas aqui o desejo é perder-se. E quando lá chega, encontra o que
deixou. Estou agora a notar que isto é um bocado eliotiano. Nos "Quatro
Quartetos", o T. S. Eliot escreve: "Para chegares aonde estás, para
saíres de onde não estás, deves seguir por um caminho onde não há êxtase".
Acho até que cito isto em "Aquele que Quer Morrer".»
É
interessante ver como o poeta explora a ideia da impossibilidade de remontar à
fonte original, procurando uma voz literal que desocultamente fala, mas
encontrando tumulto e ressentimento sob o passado insepulto da literatura.
Entrevista a Manuel António Pina (17-06-2011)
A auto-ironia é afastar-me de mim, deixar-me desamparado
"A
porta está fechada na palavra porta/para sempre". Sugerindo que estamos
nas palavras como num quarto fechado e sem chave, este verso, que Manuel António
Pina escreveu em plena entrevista, dá-nos, ironicamente, a chave para a sua
poesia. O mais recente Prémio Camões é uma ilha cercada de vozes por todos os
lados, sobretudo o de dentro. "Aceitei todas as influências". Nesta
conversa, há momentos em que responde mesmo às perguntas. Não são
necessariamente os mais interessantes.
Passavam
alguns minutos da uma hora da manhã, quando abri a porta a Manuel António Pina.
Por volta das cinco, quando o mais recente galardoado com o Prémio Camões
regressou a casa, não posso dizer que me sentisse inteiramente seguro de que o
que tinha no gravador fosse uma entrevista. Confiava que seria, ao menos (ou ao
mais), algo parecido com isso, da mesma substância.
O que se
passou nessas quatro horas, descreve-o o ensaísta Osvaldo Silvestre, por
antecipação, num artigo que assina no último número da revista "Ler":
"A retórica da conversação procede em Pina por circunlóquio e anexação: de
um tópico inicial e supostamente central o conversador passa a outro e outro e
ainda outro, deixando o ouvinte na dúvida sobre se alguma vez o tópico inicial
será retomado (por vezes sim, mas nem sempre)". Mas, note-se, Silvestre
começa por esclarecer que "é um privilégio ouvir Manuel António Pina
discorrer, ao seu modo, sobre um assunto".
Nesta conversa,
Manuel António Pina fala da sua relação com a modernidade, e com Pessoa em
particular, confessa ter-se alvoroçado quando lhe sugeriram que era
pós-moderno, admite que se resignou à Literatura e explica que muitos dos seus
livros de poemas nasceram da leitura de ensaios. Isto para dar só um apanhado
breve. Também revela, por exemplo, os primeiros versos que escreveu, confessa
ter despachado, com grande lucro, as obras completas de Eça de Queirós,
transforma um soneto de Antero num filme erótico e aperfeiçoa, em plena
entrevista, um poema que anda a escrever.
Quanto ao
prémio Camões, tem apenas um desejo, e é o inverso do que Paulo Futre
ambicionava para o jogador que pretendia impingir ao Sporting: "Só espero
que não "vá vir" charters para me ver jogar". Não sei se o
leitor vai ler uma entrevista, mas espera-se que fique com uma ideia bastante
aproximada do que é o privilégio de passar uma noite à conversa com Manuel
António Pina.
Publicaste
"O País das Pessoas de Pernas para o Ar" no final de 1973. Logo a
seguir ao 25 de Abril de 1974, saiu o teu primeiro livro de poemas, "Ainda
não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde".
Seguiram-se "Gigões e Anantes" (1974), "O Têpluquê" (1976)
e mais um livro de poemas, "Aquele que Quer Morrer" (1978). Hoje
parece óbvio que, desde o início, optaste por navegar em dois rios paralelos, a
poesia e a literatura dita infantil. Foi uma coisa programada?
Não tinha
muita consciência disso. A literatura infantil era uma coisa que eu fazia com,
digamos assim, honestidade, mas que encarava com menos seriedade do que a
poesia. Os quatro contos de "O País das Pessoas de Pernas para o Ar"
foram escritos em Novembro de 1973 e o livro saiu em Dezembro. Mas o primeiro
livro de poemas já estava a ser escrito em 1965. Até há lá um poema que se
chama "4 de Julho de 1965" e que é uma colagem de decassílabos
perfeitos que encontrei nos jornais desse dia. Ainda tenho em casa o original,
com os recortes colados. Acho que o nascimento da minha filha Sara, em 1970 - a
Ana só nasceu em 1974 -, terá tido alguma importância para eu começar a
escrever literatura infantil. Mas a poesia vinha muito de trás. Desde os seis
ou sete anos que escrevia poemas, que depois a minha mãe guardava. As mães são
seres admiráveis. Ainda me lembro do início do primeiro que fiz, que era sobre
o milagre das rosas: "Nasceu um dia em lua-de-mel uma princesa chamada
Isabel.// Casou depois porque quis/ com um príncipe chamado Dinis."
A
infância...
Deixa-me
contar-te uma coisa engraçada. A minha mãe fazia versos para eu ler às visitas
que lá iam lá lanchar nos dias em que o meu pai, que era secretário de
Finanças, jantava com o tesoureiro da Fazenda Pública, o sr. Marnoto. Eu lia os
poemas atrás da porta, porque tinha vergonha. Quando o meu avô morreu, a minha
mãe insistiu comigo para eu fazer um poema à morte dele. "Não faço nada,
não faço nada", e não fiz. Um dia a minha mãe disse-me: "Sabes uma
coisa tão bonita que eu encontrei na tua mesinha de cabeceira? Aquele poema que
fizeste à morte do avô". Tinha sido ela a escrevê-lo, mas queria
convencer-me de que tinha sido eu. Já eu era adulto, e ainda continuava a
insistir naquilo.
A
infância é um tópico central na tua poesia...
Acho que
é na de toda a gente. Borges diz que o amor e a morte são os grandes temas. Eu
acrescentaria o tempo. Georges Bataille, num livro chamado "Madame
Edwarda", observa que uma grande parte do humor é sobre o sexo e sobre a
morte, e diz: "Ris-te porque tens medo". Medo do sexo, que está
ligado à origem do ser, e medo da morte, que é o seu desaparecimento. É o medo
do antes e do depois, os dois grandes abismos. A arte é provavelmente uma forma
de lidar com o medo.
Num poema
teu...
Ted
Hughes [poeta e escritor de livros infantis britânico, 1930-1998] diz que à
terceira estrofe a morte já se tornou numa questão de estilo. Os meus pais não
me deixavam ter a luz acesa à noite, e eu descobri um truque para não ter medo.
Escrevia num papel os pesadelos que tinha. A primeira vez, devo tê-lo feito
para contar o sonho à minha mãe, no dia seguinte. Depois descobri que, ao
escrever, começava a ter necessidade de encontrar palavras. E a morte, o medo,
tornava-se uma questão de estilo. A linguagem afastava-me do medo. Ao escrever,
tudo se transforma em literatura.
Num poema
teu, a infância é um estranho a bater à porta. E quando lhe perguntas
"quem é?", responde: "- É a mãe morta - São coisas passadas/ -
Não é ninguém". Sabes (sabes no que escreves) que não é verdadeiramente
possível lembrar a criança que foste, e que até este "foste" é uma
concessão gramatical. Escreveres para crianças é também um modo de tentares
recuperar ao menos a ilusão dessa irrecuperável "(...) infância/ inicial
não embaciada/ de nenhuma palavra/ e nenhuma lembrança"?
A
infância é algo que só se tem quando se perde, porque as crianças estão perto
de mais da infância para se aperceberem dela. Como em outras poesias, na minha
a infância -a palavra "infância" e a ideia de infância mais do que a
concreta memória de uma infância - é, julgo eu, a melancolia da
"primeiridão", de um tempo mítico em que olhámos o mundo e a nós
próprios pela primeira vez, com olhos inocentes de palavras e de memória, isto
é, "não embaciados de nenhuma palavra/ e nenhuma lembrança". Não é a
inocência da criança, que é uma inocência inocente, mas uma nietzschiana
"segunda e mais perigosa inocência", uma inocência que se sabe
inocente, ou então apenas uma espécie de vontade de inocência. Neste último
sentido, talvez haja na minha literatura para crianças - nunca pensei muito
nisso - algo como uma tentativa não de recuperação, mas de vivência segunda, ou
tosco sucedâneo, dessa inocência, e muito em particular da inocência
linguística, que é a que mais me interessa.
Essa
impossibilidade de aceder à infância cruza-se com um tema recorrente na tua
poesia que é a ideia de que a origem nos está vedada. A antologia pessoal que
acabaste de publicar na Assírio & Alvim, "Poesia, Saudade da
Prosa", abre com uma "Arte Poética" que, justamente, parece
abordar essa impossibilidade de remontar à fonte. Começas por exortar o poema a
que procure "a voz literal que desocultamente fala/sob tanta
literatura" e, no final, perguntas. "E todavia/ sob tanto passado
insepulto/ o que encontraste senão tumulto,/ senão de novo ressentimento e
ironia?".
É que
mesmo que ele encontre a Palavra, tem de regressar, como lá digo, "pelo
caminho das interpretações e dos sentidos". E não pode olhar para trás,
porque senão jamais se perderá. Orfeu não podia olhar para trás para não se
perder, mas aqui o desejo é perder-se. E quando lá chega, encontra o que
deixou. Estou agora a notar que isto é um bocado eliotiano. Nos "Quatro
Quartetos", o T. S. Eliot escreve: "Para chegares aonde estás, para
saíres de onde não estás, deves seguir por um caminho onde não há êxtase".
Acho até que cito isto em "Aquele que Quer Morrer".
Em 1974,
quando publicaste o teu primeiro livro de poemas, Gastão Cruz reunia a sua obra
poética em "Os Nomes", Joaquim Manuel Magalhães publicava
"Consequência do Lugar" e António Franco Alexandre dava-nos a ler
"Sem Palavras Nem Coisas". Se reparares, são todos títulos altamente
programáticos. Como é que te situavas, então, nas encruzilhadas da poesia da
época, se é que a questão se te punha?
A questão
não se me punha.
Não lias
outros poetas?
Nessa
altura, as minhas leituras de poesia portuguesa contemporânea eram
fundamentalmente o O"Neill e o Ruy Belo.
Mas esse
teu livro de estreia já tem referências expressas ao Cesariny.
Tens
razão. Comprei a "Poesia", uma recolha de vários livros dele.
Interessavam-me os surrealistas. O Alexandre O"Neill, lia-o desde os 13 ou
14 anos. Havia aquelas bibliotecas da Gulbenkian, e eu ia lá requisitar os
livros. Lembro-me de ter levado para casa um do O"Neill e outro do Tomaz
Kim porque estava convencido de que eram poetas ingleses. Ao mesmo tempo, lia o
Augusto Gil. Era uma misturada. E recordo-me agora que também já tinha lido o
João Cabral de Melo Neto. E o Jorge de Sena.
Seria
estranho que não tivesses lido bastante, porque, desde o início, a tua poesia
está cheia de citações.
Lia muita
coisa, mas ao acaso. No 6º ano, no liceu de Aveiro, ganhei um prémio literário
e recebi 500 escudos. Comprei tudo o que havia do Pessoa na Ática, e as obras
completas do Eça de Queirós, da Lello, que depois vendi por dez contos numa
altura em que precisava de dinheiro.
Esse meu
primeiro livro tem uma nota, no fim, assinalando diversa colaboração citada e
não citada. Até refiro os Beatles, embora não haja nada dos Beatles em poema
nenhum. E também não há nada de outros autores que cito, como o Giambattista
Vico.
E talvez
deixes alguns por citar. Há um poema que termina com o verso "Conto estas
aventuras extraordinárias". Ocorreu-me que pudesses ter sacado a expressão
de um livro do Poe, que se chama, na edição portuguesa, "As Aventuras
Extraordinárias de Gordon Pym".
Não me
lembro, mas, inconscientemente, é capaz de vir daí. Também lá aparece uma
referência ao "Palácio da Ventura" do Antero. Tenho, aliás, uma
teoria sobre esse soneto. É dado como sendo poesia filosófica, mas acho que é
erótica. Ora repara: "Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por
desertos, por sóis, por noite escura, [com as mãos vai apontando no seu próprio
corpo as partes da anatomia feminina a que Antero se estaria metaforicamente a
referir]/Paladino do amor busco anelante [interrompe para emitir sons
arquejantes]/ O palácio encantado da Ventura." E vê como continua:
"Quebrada a espada já, rota a armadura...". E a seguir :
"Abri-vos portas d"ouro antes meus ais!". E vê como acaba:
"Abrem-se as portas d"ouro, com fragor.../ Mas dentro encontro só,
cheio de dor,/ Silêncio e escuridão - e nada mais!". Está-se mesmo a ver
que é uma queca que acabou mal.
Ainda a
propósito das tuas leituras. Um aspecto que sempre me intrigou na designação
daquilo a que os espanhóis chamam poesia da experiência, é a aparente pouca
conta em que é tida, nessa "experiência" do poeta, a percentagem dela
que é dedicada à leitura. Dado que os poetas tendem a ser grandes leitores,
parece ser de presumir que boa parte do seu "real" se componha de
livros alheios. Dir-se-ia que a tua poesia é particularmente irrigada por essa
parte do teu real que é a leitura. Estás de acordo?
Inteiramente
de acordo. E digo-o em resultado daquilo a que posso chamar a minha própria
"experiência", ou, talvez mais rigorosamente, a sua memória, já que
se escreve - falo naturalmente de mim - não propriamente com a experiência, mas
com a memória dela. Mais sobressalto menos sobressalto, sempre tive uma vida
burguesmente pacata; algumas lágrimas, alguns remorsos, alguns sonhos, solidão
q. b., medo q.b.. As emoções mais fortes e mais complexas que experimentei
foram colhidas em livros e em filmes, ou ouvindo música, e a sua memória é, em
mim, permanentemente atravessada pela memória de outros livros e outros filmes,
ao mesmo tempo que se confunde com a memória da minha existência por assim
dizer "real". Mas mesmo esta última é, tenho consciência disso,
frequentemente contaminada por memórias literárias: cada uma a seu modo, todas
as despedidas são Heitor despedindo-se da mulher e do filho, todos os regressos
o de Ulisses. Talvez até, quem sabe?, todas as obras literárias
fundamentalmente sejam, como pretende Raymond Queneau, ou uma
"Ilíada" ou uma "Odisseia".
É mais a
leitura de poetas, ou os ensaios também te servem de gatilho?
Servem
muito. O livro que gerou "Os Livros" foi uma colectânea de
conferências de Borges sobre literatura inglesa. O "Farewell Happy
Fields" foi escrito enquanto ia lendo "A Angústia da Influência"
de Bloom. "Aquele que Quer Morrer" resultou da influência de dois livros:
a "Gaia Ciência", de Nietzsche, e o "Tao Te Ching", de Lao
Tsé. Também me inspiro na Bíblia, no budismo, no xintoísmo, em livros de
ciência. Vou apontando coisas nuns caderninhos. Tenho aqui um [saca do bolso um
pequeno caderno de capa "bordeaux", da Moleskine], mas este ainda vai
no princípio. [Folheia as páginas e vai citando:] "Derrida: não há
começos"; "Só as certezas envelhecem"; "A retirada da
palavra como a deserção de deus da criação"; "estante da Ana: 90 cm
de largura". Estás a ver? Tenho aqui tudo... E isto aqui [mostra uma
página] é um poema começado, que resultou de uma leitura do Hofmannsthal.
Tinha
piada pô-lo na entrevista.
Eu leio:
"Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras, nas suas caves, nos seus
infindáveis corredores;/ pudesse ele, o corpo, o que quer que o corpo seja,/ na
ausência das palavras calar-se./ Não, com palavra nenhuma [faz aqui uma pausa e
acrescenta: tinha mudado isto, mas é capaz de ser melhor voltar a pôr "com
nenhuma palavra"] abrirá a porta,/ nem com o silêncio, nem com nenhuma
chave". E ainda tenho aqui uma coisa que não sei se hei-de aproveitar:
"A porta está fechada na palavra porta".
Acho que
deves aproveitar.
[Fica um
ou dois minutos calado, sem ouvir.] "A porta está fechada na palavra porta
para sempre". Tem bom ritmo. Fica assim. Espera aí, desculpa lá, deixa-me
só tomar nota disto.
Na
homenagem que te prestaram na Guarda, Eduardo Lourenço fez uma intervenção de
improviso...
Ele ter
dito aquilo tudo espontaneamente, sem estar a ler, foi incrível.
Segundo Lourenço,
levaste ainda mais longe do que Pessoa a morte do "Eu",
transformando-o numa espécie de buraco negro que nenhuma ilusão, nem a ilusão
do poder reparador da palavra poética, pode aspirar a suturar. E Osvaldo
Silvestre, num depoimento prestado após teres recebido o Prémio Camões, diz que
a tua poesia seria impensável sem o precedente da metafísica pessoana. Pessoa é
um ponto de partida essencial?
Há uns
anos participei, no Salão do Livro de Paris, num debate inquietantemente
intitulado "Faut-il oublier Pessoa?". Como se fosse possível
esquecer. Pessoa ou o que quer que seja ... Pessoa é algo de irremediável. Pode
fazer-se de conta que o arquipélago pessoano nunca existiu, mas o seu vulto
está necessariamente presente, até na denegação dele, em toda a poesia
portuguesa posterior. Se não como ponto de partida ou de chegada, ao menos como
ponto de passagem. Mesmo um poeta que, por mera e surpreendente hipótese, nunca
tivesse lido Pessoa, teria decerto lido outros que o leram. No caso da minha
poesia, até onde posso sabê-lo de forma consciente, diria que a sua relação com
a modernidade passa, não em exclusividade mas em boa parte, pelo Pessoa
ortónimo (que li intensamente na juventude) e, talvez de forma menos evidente,
também por Caeiro.
A
instabilidade do "Eu" na tua poesia, muitas vezes sublinhada por via
sintáctica - "a minha vida é uma multidão onde, não sei quem, em vão
procuro/ o meu rosto" - é, como dizes, uma herança da modernidade.
Rimbaud, também ele forçando a gramática, escreveu "Je est un autre".
Pergunto-me como seria este verso traduzido em "pinês". Talvez
"Eu (quem?) é um outro (qual?)"?
Ou
talvez: "Eu (o quê?) é um outro (quem?, qual?)". Ou ainda: "Eu
(isto é, palavras falando) é um outro (palavras escutando)". Ou: "Eu
(isto) é um outro (algo, outra coisa)". Talvez prefira a versão do meio.
Devo no entanto observar, em defesa da honra do "Eu" na minha poesia,
que ele, o "Eu", tem andado um pouco mais estável nos últimos livros.
Provavelmente, mas que sei eu?, por cansaço.
Isso
leva-me a outra pergunta. A auto-ironia, a sabotagem da eloquência, são marcas
que atravessam toda a tua poesia. Ainda assim, não te parece que os teus
últimos livros têm uma intensidade declarativa que pareces ter evitado nas
obras iniciais? Penso no poema "It"s All Right, Ma...", de
Cuidados Intensivos (1994), que acaba com uns versos nos quais a ironia não
apenas não atenua, mas acentua a pungência: "Que não se perturbe nem
intimide/ o teu coração,/ estou só a morrer em vão." Ou no final do poema
"Extrema-Unção", que fecha o livro seguinte: "Tínhamos levado as
crianças de casa,/ feito os telefonemas, escolhido os dizeres./ O quarto fora
arrumado, a cama mudada/ com roupa lavada. Só faltava morreres." Não te
parece que, nos teus primeiros livros, dificilmente correrias tão sérios riscos
de comover o leitor?
Estou a
ir-me abaixo, é da idade. Tens razão, houve uma altura em que me resignei à
literatura. Confesso tudo. Dando como testemunha abonatória das boas intenções
poéticas desses meus últimos livros, no que toca a comover, o velho Rodolfo
Agrícola, para quem a literatura serve "ut doceat, ut moveat, ut
delectet", que é como quem diz: "para ensinar, para comover, para
deleitar".
[02h55. A
mulher de Pina, Fátima, telefona-lhe, a pedir-lhe que confirme, antes de se
deitar, se algum dos gatinhos não terá ficado preso numa gaveta de um móvel
recém-adquirido na Ikea. "Está descansada que eu vou ver, e não te
preocupes, que há lá ar que nunca mais acaba. Lembra-te que fui eu que montei
isso.]
Estávamos
a falar de quê?
Estava a
sugerir que a auto-ironia, que usavas para sabotar a eloquência, era agora
posta ao serviço da emoção.
A
auto-ironia pode ser muito pungente. Nos meus primeiros livros é gozosa, mas
nos outros é mais melancólica. Por isso é que tenho medo dela. A auto-ironia é
afastar-me de mim, deixar-me desamparado, entregue à bicharada, é ir para o
meio da bicharada ajudar a multidão que me cospe em cima. A ironia é uma coisa
triste e a auto-ironia é tristíssima.
Por acaso
sei exactamente onde começou essa mudança que observas. Foi num poema do livro
"Nenhum Sítio" [1984], quando escrevi pela primeira vez a palavra
"pétala". Fiquei assustadíssimo. Percebi que era um risco enorme, que
nunca tinha ido tão longe. Nunca antes poderia ter escrito a palavra "pétala,
pelo menos a sério.[O poema em causa fecha com os versos: "Coração, sombra
de uma sombra na pétala mais funda da noite"].
A
propósito de mudanças de registos. Na última parte de "Farewell Happy
Fields" (1993), intitulada "Aos Meus Livros", escreves: "Um
bancário calculava que tínheis curto saldo/ de metáforas ". Referes-te -
desculpa se revelo informação interna - a uma recensão feita a ao teu primeiro
livro, que, segundo o recenseador, pecava por escassez de metáforas. Se hoje
seria quase inimaginável que um crítico censurasse um poeta por insuficiência
metafórica, a tua resistência à metáfora podia de facto ser vista, nesse
contexto dos anos 70, como uma marca distintiva. Já num poema de "Os
Livros" (2003), escreves: "(...) Ah sim, claro, o real. Pelos olhos
dentro/ e pelo coração dentro, tão perto e tão lento/ que basta estar atento
que decerto/ algum sentido há-de fazer ou algum sentimento.// Eu sei, também
tenho ido a bares e outros lugares/ igualmente reais. E tenho tido/ Uma vida ou
mais. (...)". É difícil não ler aqui uma farpa dirigida a alguma poesia
recente que, justamente, se caracteriza por um deliberado abandono da metáfora.
E parece-me inegável que a tua poesia é hoje bastante mais metafórica do que o
foi na sua primeira fase. Gostas de ser um poeta em contra-ciclo?
Não, não
há nisso que chamas de contra-ciclo qualquer deliberação. Aliás, reconhecendo a
pertinência das observações que sustentam a pergunta, só agora me apercebo
disso. Acontece que, sendo leitor de poesia, tenho uma ideia da que se vai
fazendo à minha volta, da poesia, digamos assim, minha contemporânea, ou da
poesia contemporânea da minha. E, com efeito, há em alguns poemas meus
ocasionais alusões a essa poesia. Mas não escrevo em função dessa
contemporaneidade, escrevo em função de muitas coisas mas dessa certamente que
não, e muito menos para alinhar ou desalinhar deliberadamente o passo com ela.
Nunca tive estratégia alguma desse género, de conformidade ou de
desconformidade. Para falar verdade, estou-me nas tintas para a contemporaneidade
poética; quero dizer: uma poesia, ou um processo poético, não me interessam
pelo facto de serem ou não meus contemporâneos mas por razões decerto menos
objectivas e mais obscuras.
No teu
primeiro livro surgem estes versos. "Já não é possível dizer mais nada mas
também não é possível ficar calado". Vinte anos depois, em "Cuidados
Intensivos", escreves: "A impossibilidade de falar/ e de ficar
calado/ não pode parar de falar, escrevi eu ou outro". Essa ideia de que chegámos
tarde e de que já está tudo dito, mas que temos de continuar a falar, é um dos
mais persistentes tópicos da tua poesia. A estratégia que adoptaste foi a de te
deixares impregnar pelas vozes de todos esses que falaram antes de ti...
Um livro
que me influenciou muito foi o "ABC of Reading", de Pound. O conselho
que ele dá aos jovens poetas é o de que não procurem ser originais e se deixem
atravessar por todas as influências possíveis. A originalidade, depois, vem ou
não vem.
E
cumpriste à risca.
Pois foi.
Aceitei as influências todas. Nunca me deu para enfrentar, para ter uma relação
edipiana com os antecessores.
Os teus
livros estão, de facto, enxameados de citações e alusões, ao mesmo tempo que a
auto-ironia te vai servindo para sabotar o que poderia haver de trágico nessa
consciência de que estamos condenados a ser uma espécie de Plágio dos Fazeres,
para citar uma personagem do teu primeiro livro, também referida como Flávio
dos Prazeres. Apesar da persistência da herança modernista na tua poesia, não
te parece hoje que ela sempre mostrou algumas das marcas que viriam a ser
consideradas constitutivas do pós-modernismo?
Quando
pela primeira vez vi a minha poesia referida como "pós-moderna" -
acho que foi num texto crítico de Américo António Lindeza Diogo -, fiquei tão
alvoroçado como Monsieur Jourdain quando soube que falava em prosa. Corri a
comprar "O Pós-modernismo Explicado às Crianças" de Lyotard, que
tinha saído por essa altura, acho que na D. Quixote, e não fiquei muito
tranquilo. Conta-se que Getúlio Vargas se vestia particularmente mal e que, um
dia, a filha lhe entrou agitadíssima gabinete dentro com uma revista de moda na
mão: "Papai, Papai, a moda pegou finalmente você!". O que senti foi
uma coisa do género, embora menos (muito menos) eufórica.
A tua
poesia inicial tem marcas nítidas do surrealismo, uma influência que depois
parece ter-se atenuado bastante. Qual é a tua relação com o surrealismo? Seria
de esperar que te identificasses com o seu propósito de fuga da Literatura, mas
que já tivesses mais dificuldade em partilhar da sua crença romântica numa
espécie de poder demiúrgico da palavra poética.
Dava-me
jeito poder discordar uma vez ou outra do que dizes. Com efeito li muito alguns
surrealistas, em particular os mais heterodoxos. Tenho uma certa inclinação por
heterodoxos. E, embora seja naturalmente desconfiado em relação a
"movimentos" e congéneres, talvez do surrealismo possa dizer algo
semelhante ao que disse antes a propósito de Pessoa: não é possível fazer de
conta que o surrealismo nunca existiu. O surrealismo foi um momento charneira
(se há tal coisa) da história literária e artística do século XX. Mais do que
qualquer outra vanguarda, multiplicou-se em estirpes inumeráveis (e, às vezes,
inomináveis) e contaminou as próprias noções de literatura e arte. Mais do que
aquilo que chamas de "crenças" centrais dos diferentes surrealismos,
as suas marcas na minha poesia julgo que resultam não só da memória da leituras
de poetas, como, por exemplo, Cesariny - o escritor, já antes o disse, é um
ladrão de túmulos, nada do que escreve lhe pertence, roubou-o a outros e outros
lho roubarão -, mas principalmente do recurso, mesmo que diluído, a processos
poéticos que o surrealismo fez seus. Por exemplo, o das associações livres.
Liberdade, na parte que me toca, condicional; mas até nisso vislumbro a sombra
do "abandono vigiado" de O"Neill.
E poetas
recentes, lês?
O Borges
dizia - acho que é uma "boutade" - que só lia livros com mais de 50
anos, porque o tempo já tinha feito metade do trabalho. Eu leio livros
recentes, mas não muitos. Acho que o mais recente de quem li a obra toda será o
Ruy Belo. E gosto muito do António Franco Alexandre. Os "Quatro
Caprichos" é um livro extraordinário.
Publicaste
o teu primeiro livro de poemas há 37 anos, mas não achas que essa consagração que
agora culminou no prémio Camões só começou realmente a acelerar quando chegaste
à Assírio & Alvim, em 1999, ano em que saiu "Nenhuma Palavra e Nenhuma
Lembrança"?
É
verdade. Foi o Hermínio que, ainda antes de o livro sair, o andou a entregar a
uma data de gente, a tentar que se interessassem por aquilo. Lembro-me de ter
saído uma crítica do Eduardo Prado Coelho, uma coisa exageradamente elogiosa, e
de o Osvaldo [Silvestre] me ter mandado um mail a dizer: "Sim senhor, quem
tem capa sempre escapa". O Hermínio já me tinha convidado muitas vezes a
publicar na Assírio, mas eu estava convencido de que era só por simpatia.
Nunca te
levaste excessivamente a sério, pois não?
Não, nem
nunca me valorizei muito. E sou muito autocrítico. Mas a questão não é bem
essa. Tenho um lado nietzschiano, mas que em mim não é uma questão ética, é
temperamento. O Zaratustra pergunta-se muito se terá feito batota. Eu também.
Quando soube do prémio Camões, perguntei-me: terei feito batota, terei enganado
aquela gente toda? O António Guerreiro escreveu que eu sou humilde. Mas não sou
nada. Calhando de ganhar, quero ganhar é com mérito, não me basta ganhar. E
isso não é humildade, é orgulho. A minha mulher, que é uma crítica dos diabos,
às vezes diz-me: "Lá estás tu a pôr-te em bicos de pés". E
normalmente tem razão. Eu recuo logo, vejo que estou a levar-me muito a sério.
Mas, às vezes, ela, que me conhece como ninguém, também me diz: "Como é
que escreveste uma coisa destas?". Eu próprio, às vezes, lendo uma coisa
antiga, pergunto-me: como é que escrevi isto? Não acredito na inspiração, mas
há momentos em que escrevemos coisas que não sabemos de onde vêm.
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Ou seja,
acreditas na inspiração.
É verdade
que tenho uma grande desconfiança dos poemas que compreendo perfeitamente, nos
quais sei a origem de tudo. Os poemas com os quais tenho melhor relação são
aqueles em que não alcanço bem o que quero dizer, mas sinto, instintivamente,
que aquilo é verdade. Os outros têm pouca autonomia face a mim mesmo, não têm
vida própria, são inteiramente alcançáveis pela razão. Acho que é por isso que
muitos artistas usaram as drogas, para a razão patinar. Eu prefiro a mecânica
quântica.
Quase me
esquecia da pergunta mais importante: o que é que o Prémio Camões mudou na tua
vida?
Perturbou-me
mesmo o quotidiano. Logo no primeiro dia, dei sete entrevistas. Uma delas, para
a RTP1, foi feita ao pé de uma piscina e agora toda a gente pensa que eu tenho
uma casa com piscina. E se dantes, nas sessões de autógrafos, assinava 10, 15
livros, agora são 100 ou 200. Só espero que, como disse o outro, não "vá
vir" charters da China para me ver jogar.
Já
entrevistei alguns amigos e, no papel, trato-os sempre por você. Mas estou
tentado a abrir uma excepção, porque talvez seja preferível que se perceba que
estás a falar com alguém que conheces.
Acho bem,
faz como o Groucho Marx: "Nunca me esqueço de um rosto, mas vou abrir uma
excepção para o seu".
Luís
Miguel Queirós, Público, 07-06-2011.
Disponível em: https://www.publico.pt/2011/06/17/jornal/a-autoironia-e-afastarme-de-mim-deixarme-desamparado-22277928