domingo, 30 de julho de 2023

Arte poética, Manuel António Pina


 


Arte poética

Vai, poema, procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob tanta literatura.
Se a escutares, porém, tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então, se puderes, pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.
Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
e teu canto, insensato, será feito
só de melancolia e de despeito.
E de discórdia. E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?

 

Manuel António Pina, Os livros, 2003 (Todas as Palavras poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, p. 309)

 

 

Leitura orientada da “Arte Poética”

 

A escolha do título "Arte Poética" sinaliza o tema central do poema: uma reflexão sobre a própria poesia e o seu propósito. Desde o início, somos confrontados com a instrução dada ao poema de procurar a "voz literal" que se oculta sob a literatura.

“A demanda é por aquilo que o poema não tem: procure algo, uma voz literal, uma origem. Mas isso está além do alcance tanto do texto, quanto do humano. Como vimos, o literal está associado a um sentido de fim, o fim “das interpretações e sentidos”. Por isso, o poema, como Orfeu, precisa regressar desse “mundo dos mortos”. Não para trazer consigo a voz literal, mas novamente a literatura. O que o poema procura está nele mesmo, na linguagem e não fora dela. Não é à toa o diálogo com a tradição órfica. Tradição essa que tematiza a perda/ ausência da amada (de um ser) pela presença da poesia. Orfeu é a encarnação do canto pela materialização da música enquanto sujeito que toca a lira e objeto desse mesmo instrumento, ou seja, ele é um tipo de prosopopeia.” (Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. São Paulo, USP, 2021)

Os versos “Se a escutares, porém, tapa os ouvidos, / porque pela primeira vez estás sozinho” sugerem que, ao encontrar a “voz literal” mencionada anteriormente no poema, o sujeito deve tapar os ouvidos. Isso pode ser interpretado como uma rejeição da verdade absoluta que essa voz pode representar. O sujeito está sozinho pela primeira vez, o que pode ser angustiante. A verdade absoluta pode ser assustadora e solitária, e é preferível a liberdade do “caminho das interpretações e dos sentidos”. Esses versos sugerem que a busca pela verdade pode levar a um lugar solitário e angustiante, e é melhor evitar ouvir a “voz literal”.

A advertência de não olhar para trás, que Orfeu não respeitou, ressalta a dificuldade de se manter autêntico diante das influências do passado e das convenções literárias.

Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
e teu canto, insensato, será feito
só de melancolia e de despeito.
E de discórdia.

A ideia expressa pelo sujeito poético é a de que a "perdição" e a "insensatez" são necessárias para alcançar uma expressão poética mais autêntica e original.

Enquanto Orfeu não podia olhar para trás para não perder a sua amada Eurídice, no contexto da "Arte Poética", o desejo é justamente perder-se para encontrar a verdadeira voz poética.

A "perdição" aqui pode ser vista como um estado de desorientação, em que o poema se distancia de fórmulas conhecidas e se lança num percurso de autodescoberta e experimentação. Ao perder-se, o poema pode descobrir novas formas de expressão, que talvez não sejam previsíveis ou racionais, mas que são genuínas e únicas.

Da mesma forma, a "insensatez" sugere que o poema deve permitir-se ser irracional ou até mesmo "louco" na sua abordagem criativa. Isso significa que o poema não precisa se ater apenas à lógica e à razão, mas pode abraçar o caos, a emoção e o inesperado como fontes de inspiração.

Mas a verdade é que o passado literário não está "sepultado" nem estão superados os elementos inerentes à experiência humana e à própria criação artística, tais como o tumulto, o ressentimento e a ironia.

O sujeito poético, ao encorajar o poema a não olhar para trás e a enfrentar o passado insepulto, está a incentivar a que o poema busque a sua própria voz e originalidade na criação artística.

 

Numa entrevista ao jornal Público de 07-06-2011, que reproduzimos a seguir, Manuel António Pina explica o motivo pelo qual a "Arte Poética" parece abordar a impossibilidade de remontar à fonte, ao afirmar: «É que mesmo que ele [o poema] encontre a Palavra, tem de regressar, como lá digo, "pelo caminho das interpretações e dos sentidos". E não pode olhar para trás, porque senão jamais se perderá. Orfeu não podia olhar para trás para não se perder, mas aqui o desejo é perder-se. E quando lá chega, encontra o que deixou. Estou agora a notar que isto é um bocado eliotiano. Nos "Quatro Quartetos", o T. S. Eliot escreve: "Para chegares aonde estás, para saíres de onde não estás, deves seguir por um caminho onde não há êxtase". Acho até que cito isto em "Aquele que Quer Morrer".»

É interessante ver como o poeta explora a ideia da impossibilidade de remontar à fonte original, procurando uma voz literal que desocultamente fala, mas encontrando tumulto e ressentimento sob o passado insepulto da literatura.

 

 

Entrevista a Manuel António Pina (17-06-2011)


A auto-ironia é afastar-me de mim, deixar-me desamparado

"A porta está fechada na palavra porta/para sempre". Sugerindo que estamos nas palavras como num quarto fechado e sem chave, este verso, que Manuel António Pina escreveu em plena entrevista, dá-nos, ironicamente, a chave para a sua poesia. O mais recente Prémio Camões é uma ilha cercada de vozes por todos os lados, sobretudo o de dentro. "Aceitei todas as influências". Nesta conversa, há momentos em que responde mesmo às perguntas. Não são necessariamente os mais interessantes.

Passavam alguns minutos da uma hora da manhã, quando abri a porta a Manuel António Pina. Por volta das cinco, quando o mais recente galardoado com o Prémio Camões regressou a casa, não posso dizer que me sentisse inteiramente seguro de que o que tinha no gravador fosse uma entrevista. Confiava que seria, ao menos (ou ao mais), algo parecido com isso, da mesma substância.

O que se passou nessas quatro horas, descreve-o o ensaísta Osvaldo Silvestre, por antecipação, num artigo que assina no último número da revista "Ler": "A retórica da conversação procede em Pina por circunlóquio e anexação: de um tópico inicial e supostamente central o conversador passa a outro e outro e ainda outro, deixando o ouvinte na dúvida sobre se alguma vez o tópico inicial será retomado (por vezes sim, mas nem sempre)". Mas, note-se, Silvestre começa por esclarecer que "é um privilégio ouvir Manuel António Pina discorrer, ao seu modo, sobre um assunto".

Nesta conversa, Manuel António Pina fala da sua relação com a modernidade, e com Pessoa em particular, confessa ter-se alvoroçado quando lhe sugeriram que era pós-moderno, admite que se resignou à Literatura e explica que muitos dos seus livros de poemas nasceram da leitura de ensaios. Isto para dar só um apanhado breve. Também revela, por exemplo, os primeiros versos que escreveu, confessa ter despachado, com grande lucro, as obras completas de Eça de Queirós, transforma um soneto de Antero num filme erótico e aperfeiçoa, em plena entrevista, um poema que anda a escrever.

Quanto ao prémio Camões, tem apenas um desejo, e é o inverso do que Paulo Futre ambicionava para o jogador que pretendia impingir ao Sporting: "Só espero que não "vá vir" charters para me ver jogar". Não sei se o leitor vai ler uma entrevista, mas espera-se que fique com uma ideia bastante aproximada do que é o privilégio de passar uma noite à conversa com Manuel António Pina.

Publicaste "O País das Pessoas de Pernas para o Ar" no final de 1973. Logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, saiu o teu primeiro livro de poemas, "Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde". Seguiram-se "Gigões e Anantes" (1974), "O Têpluquê" (1976) e mais um livro de poemas, "Aquele que Quer Morrer" (1978). Hoje parece óbvio que, desde o início, optaste por navegar em dois rios paralelos, a poesia e a literatura dita infantil. Foi uma coisa programada?

Não tinha muita consciência disso. A literatura infantil era uma coisa que eu fazia com, digamos assim, honestidade, mas que encarava com menos seriedade do que a poesia. Os quatro contos de "O País das Pessoas de Pernas para o Ar" foram escritos em Novembro de 1973 e o livro saiu em Dezembro. Mas o primeiro livro de poemas já estava a ser escrito em 1965. Até há lá um poema que se chama "4 de Julho de 1965" e que é uma colagem de decassílabos perfeitos que encontrei nos jornais desse dia. Ainda tenho em casa o original, com os recortes colados. Acho que o nascimento da minha filha Sara, em 1970 - a Ana só nasceu em 1974 -, terá tido alguma importância para eu começar a escrever literatura infantil. Mas a poesia vinha muito de trás. Desde os seis ou sete anos que escrevia poemas, que depois a minha mãe guardava. As mães são seres admiráveis. Ainda me lembro do início do primeiro que fiz, que era sobre o milagre das rosas: "Nasceu um dia em lua-de-mel uma princesa chamada Isabel.// Casou depois porque quis/ com um príncipe chamado Dinis."

A infância...

Deixa-me contar-te uma coisa engraçada. A minha mãe fazia versos para eu ler às visitas que lá iam lá lanchar nos dias em que o meu pai, que era secretário de Finanças, jantava com o tesoureiro da Fazenda Pública, o sr. Marnoto. Eu lia os poemas atrás da porta, porque tinha vergonha. Quando o meu avô morreu, a minha mãe insistiu comigo para eu fazer um poema à morte dele. "Não faço nada, não faço nada", e não fiz. Um dia a minha mãe disse-me: "Sabes uma coisa tão bonita que eu encontrei na tua mesinha de cabeceira? Aquele poema que fizeste à morte do avô". Tinha sido ela a escrevê-lo, mas queria convencer-me de que tinha sido eu. Já eu era adulto, e ainda continuava a insistir naquilo.

A infância é um tópico central na tua poesia...

Acho que é na de toda a gente. Borges diz que o amor e a morte são os grandes temas. Eu acrescentaria o tempo. Georges Bataille, num livro chamado "Madame Edwarda", observa que uma grande parte do humor é sobre o sexo e sobre a morte, e diz: "Ris-te porque tens medo". Medo do sexo, que está ligado à origem do ser, e medo da morte, que é o seu desaparecimento. É o medo do antes e do depois, os dois grandes abismos. A arte é provavelmente uma forma de lidar com o medo.

Num poema teu...

Ted Hughes [poeta e escritor de livros infantis britânico, 1930-1998] diz que à terceira estrofe a morte já se tornou numa questão de estilo. Os meus pais não me deixavam ter a luz acesa à noite, e eu descobri um truque para não ter medo. Escrevia num papel os pesadelos que tinha. A primeira vez, devo tê-lo feito para contar o sonho à minha mãe, no dia seguinte. Depois descobri que, ao escrever, começava a ter necessidade de encontrar palavras. E a morte, o medo, tornava-se uma questão de estilo. A linguagem afastava-me do medo. Ao escrever, tudo se transforma em literatura.

Num poema teu, a infância é um estranho a bater à porta. E quando lhe perguntas "quem é?", responde: "- É a mãe morta - São coisas passadas/ - Não é ninguém". Sabes (sabes no que escreves) que não é verdadeiramente possível lembrar a criança que foste, e que até este "foste" é uma concessão gramatical. Escreveres para crianças é também um modo de tentares recuperar ao menos a ilusão dessa irrecuperável "(...) infância/ inicial não embaciada/ de nenhuma palavra/ e nenhuma lembrança"?

A infância é algo que só se tem quando se perde, porque as crianças estão perto de mais da infância para se aperceberem dela. Como em outras poesias, na minha a infância -a palavra "infância" e a ideia de infância mais do que a concreta memória de uma infância - é, julgo eu, a melancolia da "primeiridão", de um tempo mítico em que olhámos o mundo e a nós próprios pela primeira vez, com olhos inocentes de palavras e de memória, isto é, "não embaciados de nenhuma palavra/ e nenhuma lembrança". Não é a inocência da criança, que é uma inocência inocente, mas uma nietzschiana "segunda e mais perigosa inocência", uma inocência que se sabe inocente, ou então apenas uma espécie de vontade de inocência. Neste último sentido, talvez haja na minha literatura para crianças - nunca pensei muito nisso - algo como uma tentativa não de recuperação, mas de vivência segunda, ou tosco sucedâneo, dessa inocência, e muito em particular da inocência linguística, que é a que mais me interessa.

Essa impossibilidade de aceder à infância cruza-se com um tema recorrente na tua poesia que é a ideia de que a origem nos está vedada. A antologia pessoal que acabaste de publicar na Assírio & Alvim, "Poesia, Saudade da Prosa", abre com uma "Arte Poética" que, justamente, parece abordar essa impossibilidade de remontar à fonte. Começas por exortar o poema a que procure "a voz literal que desocultamente fala/sob tanta literatura" e, no final, perguntas. "E todavia/ sob tanto passado insepulto/ o que encontraste senão tumulto,/ senão de novo ressentimento e ironia?".

É que mesmo que ele encontre a Palavra, tem de regressar, como lá digo, "pelo caminho das interpretações e dos sentidos". E não pode olhar para trás, porque senão jamais se perderá. Orfeu não podia olhar para trás para não se perder, mas aqui o desejo é perder-se. E quando lá chega, encontra o que deixou. Estou agora a notar que isto é um bocado eliotiano. Nos "Quatro Quartetos", o T. S. Eliot escreve: "Para chegares aonde estás, para saíres de onde não estás, deves seguir por um caminho onde não há êxtase". Acho até que cito isto em "Aquele que Quer Morrer".

Em 1974, quando publicaste o teu primeiro livro de poemas, Gastão Cruz reunia a sua obra poética em "Os Nomes", Joaquim Manuel Magalhães publicava "Consequência do Lugar" e António Franco Alexandre dava-nos a ler "Sem Palavras Nem Coisas". Se reparares, são todos títulos altamente programáticos. Como é que te situavas, então, nas encruzilhadas da poesia da época, se é que a questão se te punha?

A questão não se me punha.

Não lias outros poetas?

Nessa altura, as minhas leituras de poesia portuguesa contemporânea eram fundamentalmente o O"Neill e o Ruy Belo.

Mas esse teu livro de estreia já tem referências expressas ao Cesariny.

Tens razão. Comprei a "Poesia", uma recolha de vários livros dele. Interessavam-me os surrealistas. O Alexandre O"Neill, lia-o desde os 13 ou 14 anos. Havia aquelas bibliotecas da Gulbenkian, e eu ia lá requisitar os livros. Lembro-me de ter levado para casa um do O"Neill e outro do Tomaz Kim porque estava convencido de que eram poetas ingleses. Ao mesmo tempo, lia o Augusto Gil. Era uma misturada. E recordo-me agora que também já tinha lido o João Cabral de Melo Neto. E o Jorge de Sena.

Seria estranho que não tivesses lido bastante, porque, desde o início, a tua poesia está cheia de citações.

Lia muita coisa, mas ao acaso. No 6º ano, no liceu de Aveiro, ganhei um prémio literário e recebi 500 escudos. Comprei tudo o que havia do Pessoa na Ática, e as obras completas do Eça de Queirós, da Lello, que depois vendi por dez contos numa altura em que precisava de dinheiro.

Esse meu primeiro livro tem uma nota, no fim, assinalando diversa colaboração citada e não citada. Até refiro os Beatles, embora não haja nada dos Beatles em poema nenhum. E também não há nada de outros autores que cito, como o Giambattista Vico.

E talvez deixes alguns por citar. Há um poema que termina com o verso "Conto estas aventuras extraordinárias". Ocorreu-me que pudesses ter sacado a expressão de um livro do Poe, que se chama, na edição portuguesa, "As Aventuras Extraordinárias de Gordon Pym".

Não me lembro, mas, inconscientemente, é capaz de vir daí. Também lá aparece uma referência ao "Palácio da Ventura" do Antero. Tenho, aliás, uma teoria sobre esse soneto. É dado como sendo poesia filosófica, mas acho que é erótica. Ora repara: "Sonho que sou um cavaleiro andante.

Por desertos, por sóis, por noite escura, [com as mãos vai apontando no seu próprio corpo as partes da anatomia feminina a que Antero se estaria metaforicamente a referir]/Paladino do amor busco anelante [interrompe para emitir sons arquejantes]/ O palácio encantado da Ventura." E vê como continua: "Quebrada a espada já, rota a armadura...". E a seguir : "Abri-vos portas d"ouro antes meus ais!". E vê como acaba: "Abrem-se as portas d"ouro, com fragor.../ Mas dentro encontro só, cheio de dor,/ Silêncio e escuridão - e nada mais!". Está-se mesmo a ver que é uma queca que acabou mal.

Ainda a propósito das tuas leituras. Um aspecto que sempre me intrigou na designação daquilo a que os espanhóis chamam poesia da experiência, é a aparente pouca conta em que é tida, nessa "experiência" do poeta, a percentagem dela que é dedicada à leitura. Dado que os poetas tendem a ser grandes leitores, parece ser de presumir que boa parte do seu "real" se componha de livros alheios. Dir-se-ia que a tua poesia é particularmente irrigada por essa parte do teu real que é a leitura. Estás de acordo?

Inteiramente de acordo. E digo-o em resultado daquilo a que posso chamar a minha própria "experiência", ou, talvez mais rigorosamente, a sua memória, já que se escreve - falo naturalmente de mim - não propriamente com a experiência, mas com a memória dela. Mais sobressalto menos sobressalto, sempre tive uma vida burguesmente pacata; algumas lágrimas, alguns remorsos, alguns sonhos, solidão q. b., medo q.b.. As emoções mais fortes e mais complexas que experimentei foram colhidas em livros e em filmes, ou ouvindo música, e a sua memória é, em mim, permanentemente atravessada pela memória de outros livros e outros filmes, ao mesmo tempo que se confunde com a memória da minha existência por assim dizer "real". Mas mesmo esta última é, tenho consciência disso, frequentemente contaminada por memórias literárias: cada uma a seu modo, todas as despedidas são Heitor despedindo-se da mulher e do filho, todos os regressos o de Ulisses. Talvez até, quem sabe?, todas as obras literárias fundamentalmente sejam, como pretende Raymond Queneau, ou uma "Ilíada" ou uma "Odisseia".

É mais a leitura de poetas, ou os ensaios também te servem de gatilho?

Servem muito. O livro que gerou "Os Livros" foi uma colectânea de conferências de Borges sobre literatura inglesa. O "Farewell Happy Fields" foi escrito enquanto ia lendo "A Angústia da Influência" de Bloom. "Aquele que Quer Morrer" resultou da influência de dois livros: a "Gaia Ciência", de Nietzsche, e o "Tao Te Ching", de Lao Tsé. Também me inspiro na Bíblia, no budismo, no xintoísmo, em livros de ciência. Vou apontando coisas nuns caderninhos. Tenho aqui um [saca do bolso um pequeno caderno de capa "bordeaux", da Moleskine], mas este ainda vai no princípio. [Folheia as páginas e vai citando:] "Derrida: não há começos"; "Só as certezas envelhecem"; "A retirada da palavra como a deserção de deus da criação"; "estante da Ana: 90 cm de largura". Estás a ver? Tenho aqui tudo... E isto aqui [mostra uma página] é um poema começado, que resultou de uma leitura do Hofmannsthal.

Tinha piada pô-lo na entrevista.

Eu leio: "Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras, nas suas caves, nos seus infindáveis corredores;/ pudesse ele, o corpo, o que quer que o corpo seja,/ na ausência das palavras calar-se./ Não, com palavra nenhuma [faz aqui uma pausa e acrescenta: tinha mudado isto, mas é capaz de ser melhor voltar a pôr "com nenhuma palavra"] abrirá a porta,/ nem com o silêncio, nem com nenhuma chave". E ainda tenho aqui uma coisa que não sei se hei-de aproveitar: "A porta está fechada na palavra porta".

Acho que deves aproveitar.

[Fica um ou dois minutos calado, sem ouvir.] "A porta está fechada na palavra porta para sempre". Tem bom ritmo. Fica assim. Espera aí, desculpa lá, deixa-me só tomar nota disto.

Na homenagem que te prestaram na Guarda, Eduardo Lourenço fez uma intervenção de improviso...

Ele ter dito aquilo tudo espontaneamente, sem estar a ler, foi incrível.

Segundo Lourenço, levaste ainda mais longe do que Pessoa a morte do "Eu", transformando-o numa espécie de buraco negro que nenhuma ilusão, nem a ilusão do poder reparador da palavra poética, pode aspirar a suturar. E Osvaldo Silvestre, num depoimento prestado após teres recebido o Prémio Camões, diz que a tua poesia seria impensável sem o precedente da metafísica pessoana. Pessoa é um ponto de partida essencial?

Há uns anos participei, no Salão do Livro de Paris, num debate inquietantemente intitulado "Faut-il oublier Pessoa?". Como se fosse possível esquecer. Pessoa ou o que quer que seja ... Pessoa é algo de irremediável. Pode fazer-se de conta que o arquipélago pessoano nunca existiu, mas o seu vulto está necessariamente presente, até na denegação dele, em toda a poesia portuguesa posterior. Se não como ponto de partida ou de chegada, ao menos como ponto de passagem. Mesmo um poeta que, por mera e surpreendente hipótese, nunca tivesse lido Pessoa, teria decerto lido outros que o leram. No caso da minha poesia, até onde posso sabê-lo de forma consciente, diria que a sua relação com a modernidade passa, não em exclusividade mas em boa parte, pelo Pessoa ortónimo (que li intensamente na juventude) e, talvez de forma menos evidente, também por Caeiro.

A instabilidade do "Eu" na tua poesia, muitas vezes sublinhada por via sintáctica - "a minha vida é uma multidão onde, não sei quem, em vão procuro/ o meu rosto" - é, como dizes, uma herança da modernidade. Rimbaud, também ele forçando a gramática, escreveu "Je est un autre". Pergunto-me como seria este verso traduzido em "pinês". Talvez "Eu (quem?) é um outro (qual?)"?

Ou talvez: "Eu (o quê?) é um outro (quem?, qual?)". Ou ainda: "Eu (isto é, palavras falando) é um outro (palavras escutando)". Ou: "Eu (isto) é um outro (algo, outra coisa)". Talvez prefira a versão do meio. Devo no entanto observar, em defesa da honra do "Eu" na minha poesia, que ele, o "Eu", tem andado um pouco mais estável nos últimos livros. Provavelmente, mas que sei eu?, por cansaço.

Isso leva-me a outra pergunta. A auto-ironia, a sabotagem da eloquência, são marcas que atravessam toda a tua poesia. Ainda assim, não te parece que os teus últimos livros têm uma intensidade declarativa que pareces ter evitado nas obras iniciais? Penso no poema "It"s All Right, Ma...", de Cuidados Intensivos (1994), que acaba com uns versos nos quais a ironia não apenas não atenua, mas acentua a pungência: "Que não se perturbe nem intimide/ o teu coração,/ estou só a morrer em vão." Ou no final do poema "Extrema-Unção", que fecha o livro seguinte: "Tínhamos levado as crianças de casa,/ feito os telefonemas, escolhido os dizeres./ O quarto fora arrumado, a cama mudada/ com roupa lavada. Só faltava morreres." Não te parece que, nos teus primeiros livros, dificilmente correrias tão sérios riscos de comover o leitor?

Estou a ir-me abaixo, é da idade. Tens razão, houve uma altura em que me resignei à literatura. Confesso tudo. Dando como testemunha abonatória das boas intenções poéticas desses meus últimos livros, no que toca a comover, o velho Rodolfo Agrícola, para quem a literatura serve "ut doceat, ut moveat, ut delectet", que é como quem diz: "para ensinar, para comover, para deleitar".

[02h55. A mulher de Pina, Fátima, telefona-lhe, a pedir-lhe que confirme, antes de se deitar, se algum dos gatinhos não terá ficado preso numa gaveta de um móvel recém-adquirido na Ikea. "Está descansada que eu vou ver, e não te preocupes, que há lá ar que nunca mais acaba. Lembra-te que fui eu que montei isso.]

Estávamos a falar de quê?

Estava a sugerir que a auto-ironia, que usavas para sabotar a eloquência, era agora posta ao serviço da emoção.

A auto-ironia pode ser muito pungente. Nos meus primeiros livros é gozosa, mas nos outros é mais melancólica. Por isso é que tenho medo dela. A auto-ironia é afastar-me de mim, deixar-me desamparado, entregue à bicharada, é ir para o meio da bicharada ajudar a multidão que me cospe em cima. A ironia é uma coisa triste e a auto-ironia é tristíssima.

Por acaso sei exactamente onde começou essa mudança que observas. Foi num poema do livro "Nenhum Sítio" [1984], quando escrevi pela primeira vez a palavra "pétala". Fiquei assustadíssimo. Percebi que era um risco enorme, que nunca tinha ido tão longe. Nunca antes poderia ter escrito a palavra "pétala, pelo menos a sério.[O poema em causa fecha com os versos: "Coração, sombra de uma sombra na pétala mais funda da noite"].

A propósito de mudanças de registos. Na última parte de "Farewell Happy Fields" (1993), intitulada "Aos Meus Livros", escreves: "Um bancário calculava que tínheis curto saldo/ de metáforas ". Referes-te - desculpa se revelo informação interna - a uma recensão feita a ao teu primeiro livro, que, segundo o recenseador, pecava por escassez de metáforas. Se hoje seria quase inimaginável que um crítico censurasse um poeta por insuficiência metafórica, a tua resistência à metáfora podia de facto ser vista, nesse contexto dos anos 70, como uma marca distintiva. Já num poema de "Os Livros" (2003), escreves: "(...) Ah sim, claro, o real. Pelos olhos dentro/ e pelo coração dentro, tão perto e tão lento/ que basta estar atento que decerto/ algum sentido há-de fazer ou algum sentimento.// Eu sei, também tenho ido a bares e outros lugares/ igualmente reais. E tenho tido/ Uma vida ou mais. (...)". É difícil não ler aqui uma farpa dirigida a alguma poesia recente que, justamente, se caracteriza por um deliberado abandono da metáfora. E parece-me inegável que a tua poesia é hoje bastante mais metafórica do que o foi na sua primeira fase. Gostas de ser um poeta em contra-ciclo?

Não, não há nisso que chamas de contra-ciclo qualquer deliberação. Aliás, reconhecendo a pertinência das observações que sustentam a pergunta, só agora me apercebo disso. Acontece que, sendo leitor de poesia, tenho uma ideia da que se vai fazendo à minha volta, da poesia, digamos assim, minha contemporânea, ou da poesia contemporânea da minha. E, com efeito, há em alguns poemas meus ocasionais alusões a essa poesia. Mas não escrevo em função dessa contemporaneidade, escrevo em função de muitas coisas mas dessa certamente que não, e muito menos para alinhar ou desalinhar deliberadamente o passo com ela. Nunca tive estratégia alguma desse género, de conformidade ou de desconformidade. Para falar verdade, estou-me nas tintas para a contemporaneidade poética; quero dizer: uma poesia, ou um processo poético, não me interessam pelo facto de serem ou não meus contemporâneos mas por razões decerto menos objectivas e mais obscuras.

No teu primeiro livro surgem estes versos. "Já não é possível dizer mais nada mas também não é possível ficar calado". Vinte anos depois, em "Cuidados Intensivos", escreves: "A impossibilidade de falar/ e de ficar calado/ não pode parar de falar, escrevi eu ou outro". Essa ideia de que chegámos tarde e de que já está tudo dito, mas que temos de continuar a falar, é um dos mais persistentes tópicos da tua poesia. A estratégia que adoptaste foi a de te deixares impregnar pelas vozes de todos esses que falaram antes de ti...

Um livro que me influenciou muito foi o "ABC of Reading", de Pound. O conselho que ele dá aos jovens poetas é o de que não procurem ser originais e se deixem atravessar por todas as influências possíveis. A originalidade, depois, vem ou não vem.

E cumpriste à risca.

Pois foi. Aceitei as influências todas. Nunca me deu para enfrentar, para ter uma relação edipiana com os antecessores.

Os teus livros estão, de facto, enxameados de citações e alusões, ao mesmo tempo que a auto-ironia te vai servindo para sabotar o que poderia haver de trágico nessa consciência de que estamos condenados a ser uma espécie de Plágio dos Fazeres, para citar uma personagem do teu primeiro livro, também referida como Flávio dos Prazeres. Apesar da persistência da herança modernista na tua poesia, não te parece hoje que ela sempre mostrou algumas das marcas que viriam a ser consideradas constitutivas do pós-modernismo?

Quando pela primeira vez vi a minha poesia referida como "pós-moderna" - acho que foi num texto crítico de Américo António Lindeza Diogo -, fiquei tão alvoroçado como Monsieur Jourdain quando soube que falava em prosa. Corri a comprar "O Pós-modernismo Explicado às Crianças" de Lyotard, que tinha saído por essa altura, acho que na D. Quixote, e não fiquei muito tranquilo. Conta-se que Getúlio Vargas se vestia particularmente mal e que, um dia, a filha lhe entrou agitadíssima gabinete dentro com uma revista de moda na mão: "Papai, Papai, a moda pegou finalmente você!". O que senti foi uma coisa do género, embora menos (muito menos) eufórica.

A tua poesia inicial tem marcas nítidas do surrealismo, uma influência que depois parece ter-se atenuado bastante. Qual é a tua relação com o surrealismo? Seria de esperar que te identificasses com o seu propósito de fuga da Literatura, mas que já tivesses mais dificuldade em partilhar da sua crença romântica numa espécie de poder demiúrgico da palavra poética.

Dava-me jeito poder discordar uma vez ou outra do que dizes. Com efeito li muito alguns surrealistas, em particular os mais heterodoxos. Tenho uma certa inclinação por heterodoxos. E, embora seja naturalmente desconfiado em relação a "movimentos" e congéneres, talvez do surrealismo possa dizer algo semelhante ao que disse antes a propósito de Pessoa: não é possível fazer de conta que o surrealismo nunca existiu. O surrealismo foi um momento charneira (se há tal coisa) da história literária e artística do século XX. Mais do que qualquer outra vanguarda, multiplicou-se em estirpes inumeráveis (e, às vezes, inomináveis) e contaminou as próprias noções de literatura e arte. Mais do que aquilo que chamas de "crenças" centrais dos diferentes surrealismos, as suas marcas na minha poesia julgo que resultam não só da memória da leituras de poetas, como, por exemplo, Cesariny - o escritor, já antes o disse, é um ladrão de túmulos, nada do que escreve lhe pertence, roubou-o a outros e outros lho roubarão -, mas principalmente do recurso, mesmo que diluído, a processos poéticos que o surrealismo fez seus. Por exemplo, o das associações livres. Liberdade, na parte que me toca, condicional; mas até nisso vislumbro a sombra do "abandono vigiado" de O"Neill.

E poetas recentes, lês?

O Borges dizia - acho que é uma "boutade" - que só lia livros com mais de 50 anos, porque o tempo já tinha feito metade do trabalho. Eu leio livros recentes, mas não muitos. Acho que o mais recente de quem li a obra toda será o Ruy Belo. E gosto muito do António Franco Alexandre. Os "Quatro Caprichos" é um livro extraordinário.

Publicaste o teu primeiro livro de poemas há 37 anos, mas não achas que essa consagração que agora culminou no prémio Camões só começou realmente a acelerar quando chegaste à Assírio & Alvim, em 1999, ano em que saiu "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança"?

É verdade. Foi o Hermínio que, ainda antes de o livro sair, o andou a entregar a uma data de gente, a tentar que se interessassem por aquilo. Lembro-me de ter saído uma crítica do Eduardo Prado Coelho, uma coisa exageradamente elogiosa, e de o Osvaldo [Silvestre] me ter mandado um mail a dizer: "Sim senhor, quem tem capa sempre escapa". O Hermínio já me tinha convidado muitas vezes a publicar na Assírio, mas eu estava convencido de que era só por simpatia.

Nunca te levaste excessivamente a sério, pois não?

Não, nem nunca me valorizei muito. E sou muito autocrítico. Mas a questão não é bem essa. Tenho um lado nietzschiano, mas que em mim não é uma questão ética, é temperamento. O Zaratustra pergunta-se muito se terá feito batota. Eu também. Quando soube do prémio Camões, perguntei-me: terei feito batota, terei enganado aquela gente toda? O António Guerreiro escreveu que eu sou humilde. Mas não sou nada. Calhando de ganhar, quero ganhar é com mérito, não me basta ganhar. E isso não é humildade, é orgulho. A minha mulher, que é uma crítica dos diabos, às vezes diz-me: "Lá estás tu a pôr-te em bicos de pés". E normalmente tem razão. Eu recuo logo, vejo que estou a levar-me muito a sério. Mas, às vezes, ela, que me conhece como ninguém, também me diz: "Como é que escreveste uma coisa destas?". Eu próprio, às vezes, lendo uma coisa antiga, pergunto-me: como é que escrevi isto? Não acredito na inspiração, mas há momentos em que escrevemos coisas que não sabemos de onde vêm.

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Ou seja, acreditas na inspiração.

É verdade que tenho uma grande desconfiança dos poemas que compreendo perfeitamente, nos quais sei a origem de tudo. Os poemas com os quais tenho melhor relação são aqueles em que não alcanço bem o que quero dizer, mas sinto, instintivamente, que aquilo é verdade. Os outros têm pouca autonomia face a mim mesmo, não têm vida própria, são inteiramente alcançáveis pela razão. Acho que é por isso que muitos artistas usaram as drogas, para a razão patinar. Eu prefiro a mecânica quântica.

Quase me esquecia da pergunta mais importante: o que é que o Prémio Camões mudou na tua vida?

Perturbou-me mesmo o quotidiano. Logo no primeiro dia, dei sete entrevistas. Uma delas, para a RTP1, foi feita ao pé de uma piscina e agora toda a gente pensa que eu tenho uma casa com piscina. E se dantes, nas sessões de autógrafos, assinava 10, 15 livros, agora são 100 ou 200. Só espero que, como disse o outro, não "vá vir" charters da China para me ver jogar.

Já entrevistei alguns amigos e, no papel, trato-os sempre por você. Mas estou tentado a abrir uma excepção, porque talvez seja preferível que se perceba que estás a falar com alguém que conheces.

Acho bem, faz como o Groucho Marx: "Nunca me esqueço de um rosto, mas vou abrir uma excepção para o seu".

 

Luís Miguel Queirós, Público, 07-06-2011. Disponível em: https://www.publico.pt/2011/06/17/jornal/a-autoironia-e-afastarme-de-mim-deixarme-desamparado-22277928

 

sábado, 29 de julho de 2023

Neste preciso tempo, neste preciso lugar, Manuel António Pina

Manuel António Pina

 

NESTE PRECISO TEMPO, NESTE PRECISO LUGAR
 
No princípio era o Verbo
(e os açúcares
e os aminoácidos)
Depois foi o que se sabe.
Agora estou debruçado
da varanda de um 3.° andar
e todo o Passado
vem exatamente desaguar
nesse preciso tempo, nesse preciso lugar,
no meu preciso modo e no meu preciso estado!

Todavia em vez de metafísica
ou de biologia
dá-me para a mais inespecífica
forma de melancolia:
poesia nem por isso lírica
nem por isso provavelmente poesia.
Pois que faria eu com tanto Passado
senão passar-lhe ao lado
deitando-lhe o enviesado
olhar da ironia?

 
Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?
Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que dá para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.»

 

Manuel António Pina, Nenhuma palavra e nenhuma lembrança, 1999 (Todas as Palavras poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, pp. 252-253)

 


É curta e assombrada pela dor a obra poética de Manuel António Pina. Nela a morte espreita a cada poema, de par com a reflexão sobre as palavras (inúteis) que enchem o mundo e a nostalgia do silêncio que a eternidade, no seu sono, devolve. Entretanto, e homens por cá, da vida vivida, o passado, não temos fuga, a menos que a desmemória nos atinja. Felizmente não guardamos tudo, e do que fica fala-nos o poema: «Por onde vens, Passado, / pelo vivido ou pelo sonhado? / Que parte de ti me pertence, / a que se lembra ou a que esquece?»

Saberá cada um de nós com o que conta, mas para lhe aliviar o peso lá virá o momento em que «…em vez de metafísica / ou de biologia…» nos dê para qualquer outra coisa, não necessariamente poesia, como ao poeta, mas uma atitude igualmente salutar: «…passar-lhe ao lado / deitando-lhe o enviesado / olhar da ironia».

Carlos Mendonça Lopes, https://viciodapoesia.com/2014/06/05/um-poema-de-manuel-antonio-pina/

 ***

Do discurso bíblico do Fiat lux, o poeta passa para o discurso científico. Da conceção de mundo criado pelo verbo, passa-se a matéria orgânica que o compõe. Uma forma de desviar-se, mudar de rota, típica da linguagem tropologia, tal como temos discutido. “Depois foi o que se sabe”, mas o que se sabe? Existe qualquer discurso mais adequado para explicar o surgimento do universo, se o poeta, entre metafísica e biologia, se coloca em um ainda mais inespecífico discurso: o da “nem por isso provavelmente poesia”?

Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2021

***

Quando diz "Depois foi o que se sabe", o sujeito poético parece reconhecer que a história e a evolução do mundo e da humanidade são conhecidas, documentadas e estudadas.

A partir desse ponto, o poema mergulha numa reflexão pessoal e introspetiva do eu poético, que se encontra debruçado na varanda do terceiro andar, observando o passado "desaguar" no presente, nesse exato momento e local. O sujeito poético manifesta uma forma de melancolia indefinida, uma sensação de saudade ou nostalgia sem uma causa específica, que ele associa à poesia, mas também a uma poesia não necessariamente lírica ou convencional. O sujeito poético parece abraçar a ambiguidade e a complexidade da existência, encontrando a sua expressão através de uma poesia que escapa às categorias convencionais.

Quando o sujeito poético questiona "Por onde vens, Passado, pelo vivido ou pelo sonhado?", ele reflete sobre a natureza da memória e da história. Há, pois, a indagação sobre a natureza e a origem do passado, se é algo vivido ou sonhado, se é algo que se recorda ou que se esquece, se é algo que nos pertence ou que nos escapa.

A presença contínua das pessoas na rua representa a continuidade do tempo presente, contrastando com o passado que existe apenas na memória. O sujeito poético observa a rua como um cenário de movimento e de efemeridade, onde as pessoas entram e saem da sua vida  sem deixar rasto nem história. A ideia de "não ter história" e ser uma "ausência entre indiferença e indiferença" sugere uma sensação de anonimato e de insignificância pessoal no fluxo contínuo do tempo e da história.

Ao afirmar que o seu discurso é "nem por isso provavelmente poesia", o sujeito poético parece duvidar da própria natureza poética das suas palavras. Essa dúvida pode ser vista como uma forma de humildade, uma autoconsciência sobre as limitações da linguagem e da poesia em capturar a profundidade da experiência humana e do tempo.

 

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Quem desenterrará o que é preciso esquecer? (Manuel António Pina)

  

Uma segunda e mais perigosa inocência

 

Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á.

Marcos, 8, 35

 

Quem desenterrará o que é preciso esquecer?
O escritor torna-se retórico com cega serenidade,
será preciso passar para o lado de fora, flutuar?

Escrevo aquilo que não posso,
transformo-me no que me proponho destruir.
Já não é uma Literatura, é uma Fatalidade.

Aquele que quer morrer
é aquele que quer conservar a vida,
a tristeza daquele que fala ri-se de tudo,
que sentido faz isto e que sentido não faz isto?

 

Manuel António Pina, Aquele que quer morrer, 1978 (Todas as Palavras poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, p. 68)

 

No poema há uma indagação sobre renascimento e suas relações com uma ideia de arte (no caso a literatura). Partindo do mote da epígrafe, Pina inverte a equação. Em lugar daquele que perde a vida ao tentar conservá-la, temos aquele que quer conservar a vida ao querer morrer. Eis um conceito de renascimento: morrer, mas conservar a vida. O que deseja renascer precisa morrer, mas paradoxalmente manter a vida. Nietzsche fala da severa enfermidade, de um estado de quase morte, para que daí surja a segunda inocência. Já Pina trata da impossibilidade desse paradoxo (“que sentido faz isto e que sentido não faz isto?”). Aliado a isso também aparece uma ideia de arte, mas que se constrói a partir da suspeita e do paradoxo. A Literatura (escrita com maiúscula) torna-se Fatalidade, pois escreve-se na impossibilidade do dizer, nos limites do sentido e do não-sentido. Palavra ‘sentido’ que, aliás, está carregada de ambiguidade semântica: a de criar uma significação e sentir sensorialmente; pois a Literatura se confunde com a vida (essa fatalidade) e, portanto, significado e sensação (vazios ou plenos) são formas de morrer conservando a vida. “Escrevo aquilo que não posso” surge como uma constatação de suspeita tanto em relação à arte como à ideia de renascimento.

AFORISMOS 233, 236, 262 E 266, DE A GAIA CIÊNCIA (NIETZSCHE) 
O rascunho de “Uma segunda e mais perigosa inocência”
 está entremeado de uma série de excertos copiados de
 uma tradução de A gaia ciência, de Nietzsche


O poema em si estrutura-se na forma de indagação. Sintaticamente, temos cinco orações completas, sendo três delas perguntas. Apenas a segunda estrofe contém afirmações, sendo ambas asseverações da impossibilidade. Tal paradoxo da impossibilidade também é um pouco nietzschiano, pois no trecho anotado por Pina do aforismo 262 de A gaia ciência, lemos o subtítulo latino Sub specie aeterni (do ponto de vista da eternidade) e a última frase do aforismo: “o privilégio é não morrer”. Esse privilégio, segundo Nietzsche, é dos mortos e não dos vivos: “É a única maneira de partilhar o privilégio dos mortos” (NIETZSCHE, 2012, p. 164). Novamente “aquele que quer morrer/ é aquele que quer conservar a vida”. Ou ainda, no poema “Na morte de Mao”, do mesmo livro e que também aparece rascunhado nessa parte do espólio a que estamos nos referindo: “A morte é propriedade dos vivos,/ aquele que morreu já não vive nem está morto” (PINA, 2012, p. 96). A partir de uma constatação que se diria lógica – a morte só pertence aos vivos –, Pina constrói um diálogo que diz muito mais do que o lógico; aponta para a dúvida e impossibilidade como um princípio poético.

 

Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2021

 

ANOTAÇÃO DO AFORISMO 182 E PARTE DO AFORISMO 183, DE A GAIA CIÊNCIA


[…]

Tal modulação de um sentido prévio de infância estaria ligada, em alguma medida, ao que, na escrita de Pina, ganha cena através do título de um de seus poemas, tomado de uma passagem de Nietzsche,18 em seu livro A gaia ciência: “Uma segunda e mais perigosa inocência19 (PINA, 2012, p. 68):


[...] voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais risonhos, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que jamais fôramos antes (NIETZSCHE, 2001, p. 13).

 

Na passagem de Nietzsche, lemos a finalização da frase que, embora não esteja no título do poema: “com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria” (grifo nosso), comparece, com alguma discrição, nos versos que esboçam uma quase contra-arte poética: uma segunda inocência na alegria – apesar de toda consciência da fatalidade e melancolia de quem escreve tardiamente perante uma modernidade que já não é possível alcançar, de uma primeira infância igualmente irrecuperável, de quem escreve, afinal, aquilo que não pode –, alegria inscrita, de algum modo, em grau mais sutil, não evidente, em forma de tristeza daquele que “ri-se de tudo”, através de uma relação irônica e risonha com o passado, com a Literatura, e a sua morte, de um exercício persistente, e não sem tormento, de despersonalização consciente de sua retórica em cega e contraditória “serenidade”, quando exercer essa segunda inocência, essa infância como gesto, modulação, procedimento, é antes de tudo brincar com o tempo, e no caso de Pina, com a biblioteca, esse “lugar anacrônico por excelência” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 26).

O poema traz ainda uma epígrafe: “Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á”, apotegma de Marcos, de onde virá inclusive o verso-título do livro de 1978, Aquele que quer morrer (PINA, 1978). Existe uma disjunção de tempos nessa composição, uma montagem de temporalidades heterogêneas no espaço do poema, procedimento que pode se evidenciar na afirmação de Rui Lage:


O estatuto do poeta contemporâneo implícito na poesia de Pina é o de um investigador forense debruçado sobre o cadáver da Literatura. É uma criatura tardia, um recoletor de sentidos dispersados, um inventariador de ruínas, de “papéis velhos, vidas mortas, /identidade, sujidade, eternidade”. (LAGE, 2016, p. 29)

A infância em Pina surgiria antes de mais no gesto de um colecionador, perdido na biblioteca, capaz de em seus poemas “introduzir-se na Última Ceia pela mão de Quevedo, ao parafrasear Bob Dylan, ao cruzar num mesmo poema a letra de ‘Highway to hell’ do AC/DC com o despenhamento do carro do Sol às mãos de Faetonte” (LAGE, 2016, p. 28). Além do intenso trabalho de intertextualidade em seus poemas, das referências, colagens, do “recurso constante à citação, ao pastiche, a alusões, ao remake, à glosa, ao revivalismo” (SANTOS, 2004, p. 19), compondo o que Pedro Eiras chamará de “palimpsesto absoluto” (EIRAS, 2002, p. 155), tal gesto de infância se configuraria ainda na tentativa incessante de dissolução de uma voz autoral; na criação de pseudo heterônimos, como Slim da Silva e Clóvis da Silva;20 e em deslocamentos e desmontagens sintáticos, como, por exemplo, em torno do dêitico isto: “Alguma coisa em algum lugar/ de o que existe e de o que não existe/ é isto que escreve e a ciência de isto/ a pura voz sem sujeito e o fora de ela” (PINA, 2012, p. 69).

 

_______

18 Como bem aponta Rui Lage, Pina em entrevista à “Ciber- kiosk”, afirma de forma explícita: “Os poemas de Aquele que quer morrer radicam, fundamentalmente, em duas leituras (os livros geram outros livros): o Tao Te King e A gaia ciência, de Nietzsche” (PINA, 2016, p. 18).

19 A expressão encontra igualmente lugar numa fala de Pina sobre a infância, em entrevista dada a Luís Miguel Queirós: “A infância é algo que só se tem quando se perde, porque as crianças estão perto de mais da infância para se aperceberem dela. Como em outras poesias, na minha a infância – a palavra ‘infância’ e a ideia de infância mais do que a concreta memória de uma infância – é, julgo eu, a melancolia da ‘primeiridão’, de um tempo mítico em que olhámos o mundo e a nós próprios pela primeira vez, com olhos inocentes de palavras e de memória, isto é, ‘não embaciados de nenhuma palavra/ e nenhuma lembrança’. Não é a inocência da criança, que é uma inocência inocente, mas uma nietzschiana ‘segunda e mais perigosa inocência’, uma inocência que se sabe inocente, ou então apenas uma espécie de vontade de inocência” (QUEIRÓS, 2011, s/p).

 

Entre o brinquedo e a biblioteca: a poética de Manuel António Pina, Paloma Roriz Espínola. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2020

 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Cuidados intensivos, Manuel António Pina


 

Cuidados intensivos

 

III

 

«Vê se há mensagens
no gravador de chamadas;
rega as roseiras;
as chaves estão
na mesa do telefone;
traz o meu
caderno de apontamentos
(o de folhas
sem linhas, as linhas distraem-me).
Não digas nada
a ninguém,
o tempo, agora,
é de poucas palavras,
e de ainda menos sentido.
Embora eu, pelos vistos,
não tenha razão de queixa.

Senhor, permite que algo permaneça,
alguma palavra ou alguma lembrança,
que alguma coisa possa ter sido
de outra maneira,
não digo a morte, nem a vida,
mas alguma coisa mais insubstancial.
Se não para que me deste os substantivos e os verbos,
o medo e a esperança,
a urze e o salgueiro,
os meus heróis e os meus livros?

Agora o meu coração
está cheio de passos
e de vozes falando baixo,
de nomes passados
lembrando-me onde
as minhas palavras não chegam
nem a minha vida
Nem provavelmente o Adalat ou o Nitromint.»

Quinta-feira, 5 de março

 

Manuel António Pina, Cuidados intensivos, 1994 (Todas as Palavras poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, pp. 194-195)

 

O poema apresentado é marcado por uma atmosfera melancólica e reflexiva, evocando um estado de convalescença ou transição após uma enfermidade.

«Convalescença significa, segundo o dicionário, um “período de transição depois de uma enfermidade, no qual se processa a recuperação gradativa das forças e da saúde” (HOUAISS, 2009, p. 542). Um pouco dessa transição, desse estado intermédio, nem cá, nem lá, parece ganhar um contorno privilegiado no livro de Pina intitulado Cuidados intensivos, de 1994. O autor de facto havia passado por um período de internação hospitalar, em decorrência de uma complicação mais séria de saúde. O termo “cuidados intensivos” deriva de outro, “medicina intensiva”, voltado para pacientes em estado crítico e que demandam monitoramento ininterrupto. Mas os “cuidados intensivos” são dirigidos a pacientes em condições potencialmente reversíveis, com chances de recuperação e de sobrevivência. E é nesse sentido que o título também remete, de algum modo, à ideia de uma transição, uma abertura, um espaço intervalar, oscilatório e frágil, entre uma interioridade e uma exterioridade. É um livro de certo pendor dramático, embora sempre amortecido pela entoação algo distanciada, contrabalançada, contudo, por um tom próximo, por vezes quase doméstico, de fala ao pé do ouvido, em que a figura do “coração” em meio aos versos é reincidente. Um dos recursos do autor para sustentar a impessoalidade do sujeito poético parece ser, na secção intitulada “monólogos”, por exemplo, o uso irónico de aspas ao início e final dos poemas, como se se tratasse da fala de um outro – na reiteração de uma desestabilização da voz enunciativa tão própria aos seus poemas –, com marcas de datação ao fim de cada um, indicando o dia da semana e do mês, o que aludiria a uma encenação descritiva e sequencial de diário ou registo biográfico.» (in Entre o brinquedo e abiblioteca: a poética de Manuel António Pina, Paloma Roriz Espínola. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2020)

A seguir, destacam-se algumas linhas de leitura do poema:

O poema começa com uma série de instruções ou tarefas aparentemente quotidianas, como verificar mensagens, regar roseiras e encontrar objetos, mas, ao mesmo tempo, cria uma sensação de isolamento e distanciamento. O sujeito poético parece estar sozinho ou lidando com uma solidão interna (Manuel António Pina utiliza aqui a sua experiência hospitalar para explorar emoções e reflexões relacionadas com a convalescença).

Os versos "o tempo, agora, / é de poucas palavras, / e de ainda menos sentido" sugere uma reflexão sobre a passagem do tempo e a importância das palavras na vida do sujeito. Há uma sensação de que as palavras são insuficientes para expressar completamente o que ele está a sentir ou a viver.

O poema expressa um desejo por algo além da vida e da morte, uma "coisa mais insubstancial". O sujeito poético questiona o propósito de ter sido dotado de palavras, medo, esperança e experiências se, no final das contas, há algo que não pode ser alcançado ou compreendido plenamente.

Os versos “Agora o meu coração / está cheio de passos/ e de vozes” sugerem uma agitação interna, uma sensação de estar sobrecarregado por lembranças, experiências e pensamentos. Há uma mistura de sentimentos e uma necessidade de processar tudo o que está a acontecer ao seu redor.

O poema termina com referências explícitas a dois medicamentos, Adalat e Nitromint, que são utilizados para tratar certas condições médicas. Essas referências podem simbolizar a busca por uma solução para a angústia e o desconforto emocional, mas, ao mesmo tempo, podem destacar a limitação dos medicamentos em resolver questões existenciais mais profundas.

A datação do poema na quinta-feira, 5 de março, insere o poema em um contexto temporal específico, sugerindo que ele pode ter sido escrito durante um período particular na vida do autor, possivelmente durante a sua convalescença.