domingo, 31 de agosto de 2025

O lixo, Luís Fernando Veríssimo

 



Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.

- Bom dia...

- Bom dia.

- A senhora é do 610.

- E o senhor do 612

- É.

- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...

- Pois é...

- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...

- O meu quê?

- O seu lixo.

- Ah...

- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...

- Na verdade sou só eu.

- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.

- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...

- Entendo.

- A senhora também...

- Me chame de você.

- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...

- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...

- A senhora... Você não tem família?

- Tenho, mas não aqui.

- No Espírito Santo.

- Como é que você sabe?

- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.

- É. Mamãe escreve todas as semanas.

- Ela é professora?

- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?

- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.

- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.

- Pois é...

- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.

- É.

- Más notícias?

- Meu pai. Morreu.

- Sinto muito.

- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.

- Foi por isso que você recomeçou a fumar?

- Como é que você sabe?

- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.

- É verdade. Mas consegui parar outra vez.

- Eu, graças a Deus, nunca fumei.

- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...

- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.

Você brigou com o namorado, certo?

- Isso você também descobriu no lixo?

- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.

- É, chorei bastante, mas já passou.

- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...

- É que eu estou com um pouco de coriza.

- Ah.

- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.

- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.

- Namorada?

- Não.

- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.

- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.

- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.

- Você já está analisando o meu lixo!

- Não posso negar que o seu lixo me interessou.

- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.

- Não! Você viu meus poemas?

- Vi e gostei muito.

- Mas são muito ruins!

- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.

- Se eu soubesse que você ia ler...

- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?

- Acho que não. Lixo é domínio público.

- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?

- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...

- Ontem, no seu lixo...

- O quê?

- Me enganei, ou eram cascas de camarão?

- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.

- Eu adoro camarão.

- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...

- Jantar juntos?

- É.

- Não quero dar trabalho.

- Trabalho nenhum.

- Vai sujar a sua cozinha?

- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.- No seu lixo ou no meu?


VERÍSSIMO, Luís Fernando. O analista de Bagé. RJ: Objetiva. 2002.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Fui eu, madre, lavar meus cabelos, João Soares Coelho


 

Fui eu, madre, lavar meus cabelos
a la fonte e paguei-m’eu delos
        e de mi, louçana.

Fui eu, madre, lavar mias garcetas
a la fonte e paguei-m’eu delas
        e de mi, louçana.

A la fonte [e] paguei-m’eu deles;
aló achei, madr’, o senhor deles
        e de mi, louçana.

[E], ante que m’eu d’ali partisse,
fui pagada do que m’el[e] disse
        e de mi, louçana.

 

João Soares Coelho, in Cantigas Medievais Galego-Portuguesas, vol. 1, edição coordenada por Graça Videira Lopes, Lisboa, BNP/IEM/CESEM, 2016, p. 614.

 

 

NOTAS

paguei-m’eu delos (verso 2) – agradei-me deles.

louçana (verso 3) – formosa.

garcetas (verso 4) – tranças.

aló (verso 8) – ali.

ante (verso 10) – antes.

fui pagada (verso 11) – fiquei agradada.

 

1. Complete o texto seguinte, selecionando, para cada alternativa, a opção adequada.

A composição poética apresentada é uma CANTIGA DE AMOR / CANTIGA DE AMIGO / CANTIGA DE ESCÁRNIO, como se verifica, entre outros aspetos, pelo facto de a enunciação poder ser atribuída a UMA DONZELA / UM TROVADOR / DUAS FIGURAS EM DIÁLOGO.

No que respeita à estrutura do poema, observa-se que a SEGUNDA ESTROFE / TERCEIRA ESTROFE / QUARTA ESTROFE se encontra desvinculada do esquema paralelístico e que o segundo verso da primeira estrofe é retomado no primeiro verso da SEGUNDA ESTROFE / TERCEIRA ESTROFE / QUARTA ESTROFE (leixa-prem).

 

2. Indique a figura a quem o sujeito poético se dirige e qual o papel que desempenha nesta cantiga.

 

3. Explique de que modo as duas primeiras estrofes contribuem para a caracterização do sujeito poético, com base em dois aspetos relevantes.

 

4. Na terceira estrofe, é referida uma figura masculina: «o senhor deles» (verso 8).

Explicite a importância desta figura para o desenvolvimento temático do poema.

 

 

Chave de correção:

1. A composição poética apresentada é uma CANTIGA DE AMIGO, como se verifica, entre outros aspetos, pelo facto de a enunciação poder ser atribuída a UMA DONZELA.

No que respeita à estrutura do poema, observa-se que a QUARTA ESTROFE se encontra desvinculada do esquema paralelístico e que o segundo verso da primeira estrofe é retomado no primeiro verso da TERCEIRA ESTROFE (leixa-prem).

 

2. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A figura a quem o sujeito poético se dirige e o papel que desempenha nesta cantiga podem ser indicados do modo seguinte:

- o sujeito poético (a donzela) tem como destinatário a mãe («madre»);

- o papel desempenhado por essa figura é o de confidente (da donzela).

 

3. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

As duas primeiras estrofes contribuem para a caracterização do sujeito poético do modo seguinte:

- ao lavar os «cabelos» (v. 1) e as «garcetas» (v. 4) na fonte, a donzela mostra-se satisfeita com a sua beleza;

- a autocaracterização da donzela como «louçana», no refrão, revela a sua vaidade;

- a expressão «e de mi», no refrão, sugere que o elogio («louçana») não se refere apenas aos cabelos (podendo resultar do facto de a donzela ver o próprio reflexo nas águas da fonte).

 

4. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A importância da figura masculina para o desenvolvimento temático do poema é a seguinte:

a referência ao «senhor deles» (v. 8) remete explicitamente para o contexto amoroso da cantiga, associado ao tópico do encontro entre a donzela e o amigo (num cenário natural);

as palavras do amigo reforçam o sentimento de felicidade expresso pela donzela.

 

Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa (Prova 734) - Ensino Secundário (11.º Ano de Escolaridade - Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 62/2023, de 25 de julho). Portugal, IAVE, 2025 (2.ª Fase)

 


quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Ao acaso da estante, Nuno Júdice


 

AO ACASO DA ESTANTE

Abro um livro de poesia, gasto pelos anos,
e de dentro dele saem dois bilhetes de cinema
e uma fotografia. Já não me lembro que filme
foi esse que vimos, numa tarde de outono; mas
o teu rosto, de súbito, ganha uma realidade que
o tempo gastou, tanto como esse livro de poesia,
que nunca cheguei a ler. No entanto, se esses
poemas não me ficaram na memória, o teu nome,
os teus olhos, as tuas mãos que escorregavam
pelo amor de uma tarde de cinema, ainda
hoje permanecem comigo. Onde estás? Que
fazes? Que voltas deste na tua vida? Mas
não procuro respostas: e assim te voltei
a guardar, nesse livro que já não sei
onde está, na mesma página em que pus
os bilhetes de um cinema que há muito fechou.

 

Nuno Júdice, Uma Colheita de Silêncios, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2023, p. 44.

 

1. Refira de que modo os objetos encontrados dentro de «um livro de poesia» (verso 1) contribuem para a evocação do passado, tendo em conta os versos 1 a 7.

 

2. Explicite o contraste entre esquecimento e memória sugerido nos versos 3 a 11, com base em dois exemplos.

 

3. Analise o valor expressivo das perguntas presentes nos versos 11 e 12.

 

4. Explique a importância das referências ao «livro» (versos 1, 6 e 14) para o desenvolvimento temático do poema, destacando dois aspetos pertinentes.

 

 

Chave de correção

1. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Os objetos encontrados dentro de «um livro de poesia» (v. 1) contribuem para a evocação do passado do modo seguinte:

- fornecem um contexto espácio-temporal ao episódio evocado («cinema» v. 2; «tarde de outono» v. 4);

- possibilitam a reconstituição do rosto do «tu», através da memória («o teu rosto, de súbito, ganha uma realidade» v. 5).

 

2. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

O contraste entre esquecimento e memória sugerido nos versos 3 a 11 pode ser explicitado com base nos exemplos seguintes:

- o «filme» (v. 3), enquanto elemento esquecido («Já não me lembro que filme / foi esse que vimos» vv. 3-4), é apresentado como contraponto da figura rememorada pelo sujeito poético(«mas / o teu rosto, de súbito, ganha uma realidade» vv. 4-5);

- os «poemas» (v. 8), que não «ficaram na memória» (v. 8), contrastam com a identidade e os traços da figura evocada («o teu nome, / os teus olhos, as tuas mãos» vv. 8-9), que são relembrados pelo sujeito poético («ainda / hoje permanecem comigo» vv. 10-11).

 

3. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

O valor expressivo das perguntas presentes nos versos 11 e 12 pode ser analisado do modo seguinte:

- as interrogações, formuladas na ausência de um interlocutor, exprimem desconhecimento acerca do percurso e da situação atual da figura evocada;

- as três perguntas realçam a presença do «tu», através da interpelação.

 

4. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A importância das referências ao «livro» (vv. 1, 6 e 14) para o desenvolvimento temático do poema pode ser explicada com base nos aspetos seguintes:

- o livro é associado aos momentos de abertura e de fecho do poema («Abro um livro» v. 1; «assim te voltei / a guardar, nesse livro» vv. 13-14);

- a possibilidade de nele guardar os objetos que evocam acontecimentos passados confere ao livro um relevo que contrasta com o carácter acidental da ação que dá início ao poema (igualmente sugerido pelo título) e com a aparente desvalorização do seu conteúdo literário («esse livro de poesia, / que nunca cheguei a ler» vv. 6-7).

 

Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa (Prova 734) - Ensino Secundário (11.º Ano de Escolaridade - Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 62/2023, de 25 de julho). Portugal, IAVE, 2025 (1.ª Fase)