segunda-feira, 11 de agosto de 2008

«Lara» de Lord Byron (Canto I, estância XVIII lida por J.M.Coetzee)

  
 XVIII.
  
 There was in him a vital scorn of all:
 As if the worst had fall'n which could befall,  He stood a stranger in this breathing world,  An erring spirit from another hurled;  A thing of dark imaginings, that shaped  By choice the perils he by chance escaped;  But 'scaped in vain, for in their memory yet  His mind would half exult and half regret:  With more capacity for love than earth  Bestows on most of mortal mould and birth,  His early dreams of good outstripp'd the truth,  And troubled manhood followed baffled youth;  With thought of years in phantom chase misspent,  And wasted powers for better purpose lent;  And fiery passions that had poured their wrath  In hurried desolation o'er his path,  And left the better feelings all at strife  In wild reflection o'er his stormy life;  But haughty still and loath himself to blame,  He called on Nature's self to share the shame,  And charged all faults upon the fleshly form  She gave to clog the soul, and feast the worm;  Till he at last confounded good and ill,  And half mistook for fate the acts of will:  Too high for common selfishness, he could  At times resign his own for others' good,  But not in pity, not because he ought,  But in some strange perversity of thought,  That swayed him onward with a secret pride  To do what few or none would do beside;  And this same impulse would in tempting time  Mislead his spirit equally to crime;  So much he soared beyond, or sunk beneath,  The men with whom he felt condemned to breathe,  And longed by good or ill to separate  Himself from all who shared his mortal state;  His mind abhorring this had fixed her throne  Far from the world, in regions of her own;  Thus coldly passing all that passed below,  His blood in temperate seeming now would flow:  Ah! happier if it ne'er with guilt had glowed,  But ever in that icy smoothness flowed!  'Tis true, with other men their path he walked,  And like the rest in seeming did and talked,  Nor outraged Reason's rules by flaw nor start,  His madness was not of the head, but heart;  And rarely wandered in his speech, or drew  His thoughts so forth as to offend the view.
  
Byron (Inglaterra, 1788-1824)
Lara (1814), Canto I, Estância XVIII
  
  
  
  
  
— Prosseguimos com Byron — diz ele, mergulhando nas suas anotações. — Como vimos na semana passada, a celebridade e o escândalo afectaram não apenas a vida de Byron mas também a forma como os seus poemas foram recebidos pelo público. Byron viu-se fundido com as suas próprias criações poéticas — com Harold, com Manfred, até mesmo com Don Juan. […]
  
Mandara-os ler «Lara». As suas anotações são sobre «Lara». Não há forma de poder escapar ao poema. Lê em voz alta:
  
  
Era um estranho neste mundo respirado,
Espírito errante de um outro mundo tombado;
Uma coisa de obscuros intentos, que moldou
Pela escolha os perigos a que por sorte escapou.
  
  
— Qual de vocês vai dissecar estas linhas? — Quem é este «espírito errante»? Por que razão se autodenomina ele «uma coisa»? De que mundo vem ele?
  
Há já muito tempo que deixara de se surpreender com a ignorância dos seus alunos. Pós-cristãos, pós-história, pós-alfabetizados, até parecia que tinham nascido ontem. Por isso, não espera que saibam algo acerca de anjos caídos ou de onde Byron possa ter lido a seu respeito. O que ele espera é uma série de tentativas bem intencionadas, as quais, com alguma sorte, ele poderá levar ao bom caminho. Mas hoje apenas há silêncio, um silêncio tenaz que se baseia obviamente na figura do desconhecido que se encontra entre eles. Não falarão, não entrarão no seu jogo enquanto um desconhecido ali estiver a escuta a fazer julgamentos, a gozar.
  
— Lúcifer — diz ele. — O anjo caído do paraíso. Pouco sabemos acerca da forma como os anjos vivem, mas podemos partir do princípio de que não necessitam de oxigénio. Na sua terra, Lúcifer, o anjo negro, não tem necessidade de respirar. De repente, dá por si atirado para este mundo desconhecido «onde se respira». «Errante»: um ser que escolhe o seu próprio destino, que vive perigosamente, chegando mesmo a criar o perigo. Vamos ler mais um pouco.
  
O rapaz não olhou para o livro uma única vez. Em vez disso, com um pequeno sorriso nos lábios, um sorriso onde existe, possivelmente, um laivo de perplexidade, absorve as suas palavras.
  
  
                                                                      Podia
renunciar ao seu pelo bem que aos outros faria,
Mas não por pena, por dever ou sentimento,
Mas sim por uma estranha perversidade de pensamento,
Que o impelia para a frente com um orgulho velado,
A fazer o que poucos ou nenhuns teriam gizado;
E este mesmo impulso iria, pela tentação,
Conduzir ao crime a sua mente e o seu coração.
  
  
— Portanto, que tipo de criatura é este Lúcifer?
  
Neste momento, de certeza que os alunos sentem a corrente a passar entre os dois — ele e o rapaz. A pergunta foi dirigida apenas ao rapaz; e, como quem acorda de repente, o rapaz responde. — Ele faz o que lhe apetece. Não lhe importa se é bom ou mau. Limita-se a fazê-lo.
  
— Exactamente. Bom ou mau, ele limita-se a fazê-lo. Ele não actua por princípios, mas sim por impulsos, e a fonte dos seus impulsos é-lhe desconhecida. Vamos ler mais umas linhas: — «A sua loucura não se encontra na cabeça, mas no coração». Um coração louco. O que é um coração louco?
  
Está a perguntar de mais. O rapaz gostaria de levar a sua intuição mais longe, compreende-o. Quer mostrar que não percebe apenas de motas e roupas vistosas. E se calhar até é verdade. Talvez saiba mesmo o que é ter um coração louco. Mas aqui, nesta sala de aula, na presença destes desconhecidos, as palavras não saem. Abana a cabeça.
  
— Não interessa. Reparem que não nos é pedido que condenemos este ser de coração louco, este ser com o qual há continuamente algo de errado. Pelo contrário, somos convidados a compreendê-lo e a simpatizar com ele. Mas existe um limite para a simpatia. Embora viva entre nós, não é um de nós. Ele é exactamente aquilo que se auto-denomina: uma coisa, ou seja, um monstro. Por fim, Byron sugere que não será possível amá-lo, pelo menos no sentido mais profundo, no sentido mais humano da palavra. Ele será condenado à solidão.
  
As cabeças baixam-se, escrevinhando as suas palavras. Byron, Lúcifer, Caim, para eles é tudo o mesmo.
       
J. M. Coetzee, Disgrace (1999)
(Desgraçatradução de José Remelhe, revisão de Ana Maria Chaves para Publicações Dom Quixote, 2000)
       
   



«Lara» de Lord Byron (Canto I, estância XVIII lida por J.M.Coetzee)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 11-08-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/08/lara-de-lord-byron-canto-i-estancia.html (2.ª edição). (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/08/11/Lara.Byron.aspx)



sexta-feira, 8 de agosto de 2008

William Wordsworth lido por J. M. Coetzee

           
[…] That very day,
From a bare ridge we also first beheld
Unveiled the summit of Mont Blanc, and grieved
To have a soulless image on the eye
That had usurped upon a living thought
That never more could be. […]
    
William Wordsworth (Inglaterra, 1770-1850)
The Prelude: Or, Growth of a Poet's Mind(1805, 1850)
“Book Sixth Cambridge and the Alps”, vv. 525-530
    
        



  
     
[…] Ainda estão a dar Wordsworth, vão no Livro 6 de O Prelúdio, o poeta nos Alpes.
— «De um cume despido» — lê em voz alta,
       
vimos pela primeira vez também
Despido, o cume do Monte Branco, e sofremos
Ao guardar uma imagem sem alma nos olhos
Que tinha usurpado um pensamento vivo
Que nunca mais poderia existir.
    
— Portanto. A majestosa montanha branca, o Monte Branco, revela-se uma desilusão. Porquê? Comecemos pela pouco habitual forma verbal usurpar. Alguém foi ver ao dicionário?
   
Silêncio.
   
— Se tivessem ido, teriam verificado que usurpar significa forçar a entrada, invadir. Mas também extorquir, roubar. A palavra é, portanto, polissémica, adquirindo diversos significados em função do contexto em que está inserida.
   
As nuvens dissiparam-se, diz Wordsworth, o pico foi revelado e sofremos ao avistá-lo. Uma réplica estranha, para um viajante dos Alpes. Porquê o sofrimento? Porque, diz ele, uma imagem sem alma, uma mera imagem na retina, usurpou o que, até então, fora um pensamento vivo. E o que era esse pensamento vivo?
[…]
— A mesma palavra usurpar surge novamente umas linhas mais abaixo. A usurpação é um dos temas mais profundos da sequência dos Alpes. Os grandes arquétipos da mente, as ideias puras, são usurpadas por meras imagens sensitivas.
   
Contudo, não podemos viver o dia-a-dia no domínio das ideias puras, arredados da experiência dos sentidos. A questão não é «Como poderemos manter a imaginação pura, protegida das arremetidas da realidade?» A questão tem de ser «Será possível coexistirem as duas coisas?»
   
Vejam o verso 599. Wordsworth escreve sobre os limites da percepção sensitiva. Trata-se de um tema que já focámos. A medida que os órgãos dos sentidos atingem o limite das suas capacidades, a sua luz começa a extinguir-se. Contudo, no momento dessa extinção, a luz tem uma última arremetida como a chama de uma vela, dando-nos um vislumbre do invisível. Este trecho é difícil; talvez contradiga até o momento do Monte Branco. Não obstante, Wordsworth parece encaminhar-se para um certo equilíbrio: não a ideia pura, em nuvem espiralada, nem a imagem visual marcada na retina, açambarcadora e desiludindo-nos com a sua clareza prosaica, mas a imagem sensitiva, mantida fugidia o mais possível, como forma de estimular ou activar a ideia que se encontra mais profundamente enterrada no pântano da memória.
   
Faz uma pausa. Incompreensão. Foi longe de mais, depressa de mais. Como conseguir captar-lhes a atenção? Como conseguir captar a atenção dela?
— É como se estivessem apaixonados — diz. — Se fossem cegos, dificilmente se teriam apaixonado. Mas agora, desejam mesmo ver a amada na claridade fria do mecanismo visual? Talvez seja do vosso interesse colocar um véu sobre o olhar, para manter vivo o seu arquétipo, a sua forma divina.
   
Isto não é Wordsworth, mas pelo menos acorda-os.
   
Arquétipos? pensam eles. Formas divinas? Sobre o que está ele a falar? O que sabe este velho acerca do amor?
   
Uma recordação ensombra-o: aquele momento no chão quando ele lhe ergueu a camisola e expôs os pequenos seios, puros e perfeitos. Ela ergue os olhos pela primeira vez; os seus olhares cruzam-se e, de repente, ela compreende tudo. Confusa, baixa o olhar.
   
— Wordsworth está a escrever sobre os Alpes — diz. — Neste país não existem Alpes, mas temos o Drakensberg ou, numa escala mais pequena, a Table Mountain, que escalamos ressuscitando os poetas, esperando um desses momentos revelatórios wordsworthianos de que todos ouvimos falar. — Agora está só a falar, a disfarçar. — Mas momentos como esses não ocorrerão se o olho não estiver meio virado para os grandes arquétipos da imaginação que carregamos connosco. […]
       
J. M. Coetzee, Disgrace (1999)
(Desgraçatradução de José Remelhe, revisão de Ana Maria Chaves para as Publicações Dom Quixote, 2000)
       
   




CARREIRO, José. “William Wordsworth lido por J. M. Coetzee”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 08-08-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/08/william-wordsworth-lido-por-j-m-coetzee.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/08/08/Wordsworth.aspx)



quinta-feira, 24 de julho de 2008

O CORPO QUE ESTALA (José Carreiro)




O CORPO QUE ESTALA
     
In illo tempore os deuses descendentes
tocavam os homens que emergiam do centro do mundo.
De alguma forma solidários fortaleciam-se
numa espontaneidade exuberante.
Seria esta a condição da mistura
ficar longe da cronologia
que se tornou extrema e aspectual
um acto perturbado da mensagem.
Por próximo sentem o meio concreto
um semi-som proveitoso e danado
que verte nas superfícies cortadas
de um corpo que estala.
Um regaço de possibilidades cai
côncavo e percutivo no interior dos corpos.
O que ocupa o símbolo grande cerco faz
tropas em disposição e circuito sitiam aos metros
como bétulas lenhosas, achas no vazio
e estilhas súbitas com um cheiro azedo
entram na porção das partes.
            
José Maria de Aguiar Carreiro





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CARREIRO, José. “O corpo que estala”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 24-07-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/07/o-corpo-que-estala.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/07/24/corpo.aspx)


segunda-feira, 28 de abril de 2008

O ROSTO AQUELE ROSTO (José Carreiro)

       
Marion Lucka, "Bedenklichkeit"
("a criança saída do deus de rosto cruel,
que dissimula o seu corpo em serpente.")
  


O ROSTO AQUELE ROSTO

Entre portas um aveludado rosto
prenuncia: logo existe o meu espaço.
Eu toco então aquele rosto este rosto
aquele rosto
conheço as mãos no corpo no rosto
o toque desfasado toque
na quase intimidade do olhar
o beijo.

Hoje acabo o desenho das letras
desenho rosto
pronuncio-o e tu és lá
roço nele até à precisão do t
mas o que fica é esta preparação para o beijo
que a vogal me coloca.

Digo o teu nome
os dentes tocam o lábio inferior
e aí começo a saborear-te
toda a boca te trabalha
um som nasal ressoa no crânio
mexe-me.
José Maria de Aguiar Carreiro
Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005.





EL ROSTRO AQUÉL ROSTRO   
¯

Entre puertas un veludazo  rostro
prenuncia: inmediatamente existe mi espacio.
Yo toco entonces aquel rostro este rostro
aquel rostro
conozco las manos en el cuerpo en el rostro
el toque desfasado toque
en la casi intimidad de la mirada
un beso.

Hoy acabo el dibujo de las letras
dibujo rostro
lo pronuncio y tú eres allá
rozo en él hasta la precisión del la t
pero lo que queda es esta preparación para el beso
que la vocal me coloca.

Digo tu nombre
los dientes tocan el labio inferior
y ahí comienzo a saborearte
toda la boca te trabaja
un sonido resuena en el cráneo
me menea.
            
      
Tradução de Maria João Fernandes e Vitor Vicente, “Poesía en Big Ode”, concerto/performance porRodrigo Miragaia, Maria João Fernades, Sara Rocio e Vitor Vicente da Revista Big Ode (Almada, Portugal) para o Edita 08organizado pelo poeta Uberto Stabile, a ter lugar em Punta Umbria, Huelva, entre 30 de Abril e 3 de Maio de 2008. 




      

                                     
    
    
     

HET GEZICHT, DAT GEZICHT
   
Een fluwelen gezicht tussen de luiken
spreekt: weldra ben ik ruimtelijk.
Dus raak ik dat gezicht aan, dit gezicht,
dat gezicht
ik ken de handen op het lichaam op het gezicht
de ongelijkmatige aanraking beroert
het haast intieme van de blik
de kus.
   
Vandaag teken ik de laatste letters
ik teken gezicht
ik spreek het uit en jij bent er
ik wrijf erover totdat ik bij de z ben
maar wat blijft is de hunkering naar de kus
waartoe de klinker mij aanzet.
   
Ik spreek je naam uit
de tanden tegen de onderlip
en ik begin jou te proeven
mijn mond raakt je overal
in mijn schedel weerklinkt een hard geluid
het doet me wat.
   
   (versão holandesa de Marcel Beekman)  


     
CHUVA DE ÉPOCA - Canções para o tenor Marcel Beekman e o Ensemble Ciudate  integradas no espetáculo VIAGEM NO TEMPO (Holanda, 19-02-2011).
Composição de Kees Arntzen.
Poemas de José Maria de Aguiar Carreiro extraídos de «Nada nunca de ninguém» - parte I do livro Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005:
1.  «O rosto aquele rosto»
2.  «A casa onde nos abrigamos»
3. «Rapto»

Sobre o poeta:

Sobre o tenor:

Sobre o compositor:


 MARCEL BEEKMAN tenor * HAFID BOUAZZA reciter * ANTOINETTE LOHMANN baroque violin * ANTÓNIO CARRILHO recorder * MIENEKE VAN DER VELDEN viola da gamba * DAVID VAN OOIJEN lute / baroque guitar. * FABRIZIO ACANFORA harpsichord * MARCO VITAL organ * CHRISTINA DE VOS drawings program book * JASPER BARTLEMA stage production * ANNE VAN DER HEIDEN production assistance.

VIAGEM NO TEMPO is a production of STICHTING BLAEUBEECK and is part of the own programming of the Muziekgebouw aan 't IJ. The compositions of Kadar, Kleppe and Tsoupaki were made possible by the Performing Arts Fund. SNS Reaal awarded a production subsidy. The VPRO will record the concert for n.t.b. broadcast on Radio 4.


   

CARREIRO, José. “O rosto aquele rosto”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 28-04-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/04/o-rosto-aquele-rosto.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/04/28/rosto.aspx)