quinta-feira, 27 de setembro de 2012

VELUT UMBRA (Antero de Quental)


    



          
          
VELUT UMBRA1

Fumo e cismo. Os castelos do horizonte
Erguem-se, 
à tarde, e crescem, de mil cores,
E ora espalham no céu vivos ardores,
Ora fumam, vulcões de estranho monte...

Depois, que formas vagas vêm defronte,
Que parecem sonhar loucos amores?
Almas que vão, por entre luz e horrores,
Passando a barca desse aéreo Aqueronte2

Apago o meu charuto quando apagas
Teu facho, oh sol... ficamos todos sós...
É nesta solidão que me consumo!

Oh nuvens do Ocidente, oh cousas vagas,
Bem vos entendo a cor, pois, como a vós,
Beleza e altura se me vão em fumo!
          
1863
Antero de Quental, Primaveras Românticas
          
__________________
VELUT UMBRA (expressão latina): como sombra.
Aqueronte: rio que as almas devem atravessar para chegarem ao reino dos mortos (mitologia grega).
          

          
COMENTÁRIO DE TEXTO
          
Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- estruturação do texto em partes lógicas;
- marcas de subjetividade presentes na descrição do «céu»;
- recursos estilísticos e aspetos formais significativos;
- caracterização do estado de espírito do sujeito poético.
          
          
EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA
          
Estruturação do texto em partes lógicas

O poema pode estruturar-se em duas partes lógicas.
Na primeira, constituída pelas duas quadras, é descrito o espetáculo de cor e de movimento das nuvens num céu de poente, contemplado pelo sujeito poético que, fumando e cismando, nele projeta o seu mundo interior.
Na segunda, formada pelos dois tercetos, regista-se o apagar do charuto, em simultâneo com o desaparecer do «sol», e o comentário do «eu», que se entrega à solidão, assinalando a identificação entre os seus sonhos e a beleza do crepúsculo, pois ambos desaparecem, esfumando-se.
          
Nota - É admissível uma outra divisão do texto, desde que devidamente fundamentada.

          
Marcas de subjetividade presentes na descrição do «céu»

O céu é descrito segundo a perspetiva do sujeito poético que o contempla, cismando.
Na primeira quadra, as metáforas «castelos do horizonte» e «vulcões de estranho monte» evidenciam o carácter fantasmagórico que as formas das nuvens adquirem aos olhos do sujeito.
Na segunda quadra, a subjetividade acentua-se, pois as «formas vagas» que o «eu» contempla representam-se como materializações de sonhos de «loucos amores» e da própria morte.
Na verdade, à medida que a luz solar se desvanece, intensifica-se a perceção fantasmagórica e insinua-se uma visão negativa da realidade: o céu torna-se a imagem do rio («aéreo Aqueronte») por onde se efetua a travessia das «Almas» até ao reino dos mortos, «por entre luz e horrores». Em síntese, a descrição do céu constitui uma projeção dos desejos e medos mais profundos do «eu».

          
Recursos estilísticos e aspetos formais significativos

De entre os recursos estilísticos presentes no texto, destacam-se os seguintes:
- a homonímia entre a primeira e a última palavra do poema, produzindo um efeito de aparente circularidade que representa a própria situação do sujeito poético, partilhado entre o sonho e a realidade;
- as metáforas («castelos», «vulcões de estranho monte») e a acumulação de formas verbais («Erguem-se», «crescem», «espalham», «fumam», «vêm», «parecem sonhar», «vão», «passando»), descrevendo o céu, e dando conta do espetáculo das nuvens em movimento;
- a interrogação retórica (vv. 5-6), insinuando uma inquietação que anuncia a transição para um estado de espírito disfórico;
- as apóstrofes, conjugadas com a personificação («oh sol», «Oh nuvens do Ocidente, oh cousas vagas» - vv. 10 e 12), criando um efeito dialógico que aproxima o sujeito dos seus interlocutores imaginários, com os quais se identifica;
- …
          
Quanto aos aspetos formais significativos, salientam-se:
- a utilização da forma clássica do soneto, com versos decassílabos, rimas emparelhadas e interpoladas nas quadras (abba abba) e interpoladas nos tercetos (cde cde);
- o recurso a cesuras, marcadas em alguns versos (nomeadamente vv. 1 e 10), instaurando uma oscilação melódica (que reflete a inquietação íntima do «eu»);
- …
          
Nota - Para a atribuição da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro aspetos (estilísticos e/ou formais).

          
Caracterização do estado de espírito do sujeito poético

Entregue ao devaneio, o sujeito contempla, primeiro como que encantado, depois com progressiva inquietação, o espetáculo das nuvens.
Ao apagar o charuto, o «eu» anuncia o fim do seu devaneio, estabelecendo implicitamente uma relação entre este e a luz do Sol ao crepúsculo. A personificação do Sol - que apaga o seu «facho» - salienta a influência da luz crepuscular no estado de espírito do sujeito poético. Na ausência dessa luz, o «eu» entrega-se a um profundo sentimento de solidão, que é o da própria condição humana («ficamos todos sós» - v. 10), sentimento esse que o conduz à consciência infeliz de si mesmo («É nesta solidão que me consumo!» - v. 11).
De facto, tanto as formas etéreas das nuvens como o esfumar das mesmas, quando o «sol» desaparece no horizonte, constituem imagens do próprio sujeito que vive entre um sentimento exaltante de «Beleza e altura» e um estado de abatimento e de solidão.
          
Exame Nacional do Ensino Secundário nº 138. Prova Escrita de Português A, 12º Ano (plano curricular correspondente ao Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de Agosto)Curso Geral – Agrupamento 4. 2000, 1ª fase, 2ª chamada.
          
        
        

SUGESTÕES DE LEITURA
        
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/27/VELUT.UMBRA.aspx]

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

ADORNOU O MEU QUARTO A FLOR DO CARDO (Antero de Quental)


  flor de cardo
             

             
VISITA

Adornou o meu quarto a flor do cardo,
Perfumei-o de almíscar1 recendente2;
Vesti-me com a púrpura3 fulgente4,
Ensaiando meus cantos, como um bardo5;

Ungi as mãos e a face com o nardo6 
Crescido nos jardins do Oriente,
A receber com pompa, dignamente,
Misteriosa visita a quem aguardo.

Mas que filha de reis, que anjo ou que fada
Era essa que assim a mim descia,
Do meu casebre à húmida pousada?...

Nem princesas, nem fadas. Era, flor,
Era a tua lembrança que batia
Às portas de ouro e luz do meu amor!

            
Antero de Quental
                 

___________________
1 Almíscar: substância utilizada em perfumaria.
2 Recendente: aromático.
3 Púrpura: cor vermelho-escura; veste régia com essa cor.
4 Fulgente: resplandecente.
5 Bardo: poeta trovador.
6 Nardo: óleo perfumado, feito de flores, citado 24 vezes na Bíblia (foi precisamente com um perfume de nardo que Maria Madalena ungiu os pés de Cristo). Até hoje é usado por perfumistas.




LINHAS DE LEITURA
           
Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- divisão do texto nas suas partes lógicas;
- modos de caracterização do “eu”;
- recursos estilísticos relevantes;
- sentido da “misteriosa visita”.
           
           
EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA
           
Divisão do texto nas suas partes lógicas
O soneto divide-se em três partes:
- a primeira, constituída pelas duas quadras, consiste num discurso narrativo sobre o ritual de preparação do sujeito poético para receber condignamente a “visita”;
- a segunda, formada pelo primeiro terceto, corresponde a uma pausa reflexiva (marcada pelo uso da adversativa no início da estrofe e pela interrogação), revelando-se nela a qualidade disfórica do espaço e do “eu”.
- a terceira, constituída pelo segundo terceto, é a chave do soneto, que apresenta a situação referida, na 1ª e na 2ª quadras, como a metaforização do mundo interior do sujeito transfigurado pela lembrança da amada.
           
Modos de caracterização do “eu”
O sujeito lírico surge caracterizado como:
-uma figura que se apropria simbolicamente de atributos de rei e de bardo, associando-os a um cenário de exotismo oriental. Assim, prepara-se ‑ vestindo-se "com a púrpura fulgente" (v.3), "Ensaiando" os seus "cantos, como um bardo" (v.4), e ungindo "as mãos e a face com o nardo/Crescido nos jardins do Oriente" (vv. 5-6) ‑ e prepara o espaço envolvente para receber "com pompa" real uma "Misteriosa visita" (vv. 7-8);
- alguém cuja memória torna que presente a amada.
           
O sujeito é ainda caracterizado através das seguintes representações metafóricas:
- o "quarto" adornado e perfumado, metáfora do mundo interior do sujeito transfigurado pela "lembrança" da amada;
- o "casebre" e a "húmida pousada", expressando a consciência decetiva que o sujeito tem da sua solidão;
- as "portas de ouro e luz", imagem da nobreza e da plenitude do sentimento amoroso que, acordado pela memória da amada, adquire um valor transformador e iluminante da dimensão íntima do sujeito.
- …
           
Recursos estilísticos relevantes:
O poema caracteriza-se por uma linguagem metafórica:
- o "quarto", o "casebre", a "húmida pousada", as "portas de ouro e luz", são representações do sujeito poético, destacam-se como metáforas estruturantes do texto;
- as plantas ("cardo", "nardo"), as substâncias aromáticas ("almíscar"), a púrpura e os "jardins do Oriente", criando a sugestão de um ambiente envolvente, preparado para a sedução amorosa, metaforizam o efeito, no "eu", da força transfiguradora do amor;
- a "flor", simboliza a beleza do feminino, é uma metáfora da amada.
           
São ainda relevantes, entre outros, os seguintes recursos estilísticos:
- o hipérbato – “Adornou o meu quarto a flor do cardo” (v.1); “Do meu casebre à húmida pousada?...” (v.11) – que, no primeiro exemplo, põe em evidência o ato de adornar (com a flor de cardo) e, no segundo, destaca a negatividade de “casebre”, amplificando-a pela sua caracterização (“húmida pousada”);
- a repetição de valor enfático – “… que… que… que…” (v. 9); “Nem… nem…” (v. 12); “Era…/ Era…” (vv. 12-13) – marca, no primeiro caso, o tom interrogativo, e, nos segundo e terceiro, a resposta-revelação que dá sentido a todo o poema;
- …
           
Sentido da “misteriosa visita”
"Visita" assume, no contexto do poema, um carácter espiritual, uma vez que se trata de algo que se processa no íntimo do "eu". De facto, esta "visita" é a própria lembrança da amada que, acudindo ao espírito do escritor, o transforma, dando-lhe a possibilidade de se tornar outro, numa imagem de plenitude e fulgor. Os efeitos desta memória são de tal forma surpreendentes, e ocorrem a um nível tão profundo, que associam esta "visita" a uma força mágica ou "Misteriosa" ‑ a força transfiguradora do amor.
           
Exame Nacional do Ensino Secundário nº 138. Prova Escrita de Português A, 12º Ano(plano curricular correspondente ao Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de Agosto).Curso Geral – Agrupamento 4. 1999, 1ª fase, 2ª chamada. 

           


        
SUGESTÕES DE LEITURA
        

 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/26/visita.aspx]

terça-feira, 25 de setembro de 2012

AQUELA QUE EU ADORO NÃO É FEITA DE LÍRIOS NEM DE ROSAS PURPURINAS (Antero de Quental)

  
Flor de Lotus (National Papyrus Center, Giza, Egipto)


          
A primeira fase [literária de Antero de Quental], ligada à produção da juventude, mostra que os ideais amorosos e outros são uma constante quando somos jovens. Sonhamos e idealizamos o ser amado e concebemos o amor como ideal perfeito. Tal como acontece ao comum dos mortais, também Antero Quental sonhou e idealizou a mulher e o amor. Como poeta e pensador conseguiu talvez fazer mais do que nós, exprimindo em verso esse sentimento profundo. Observe-se o que nos diz no soneto “Ideal”:
        
        
IDEAL

Aquela que eu adoro não é feita 
De lírios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas lânguidas, divinas,
Da antiga Vénus de cintura estreita...

Não é a Circe1, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortais entre ruínas,
Nem a Amazona, que se agarra às crinas
Dum corcel e combate satisfeita...

A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino...

É como uma miragem que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do Desejo...
         
(entre 1860 e 1884)
Antero de Quental, Sonetos
        
_________________
Circe: feiticeira, filha da ninfa Perseia e de Hélio (sol). Vivia na ilha de Ea, onde Ulisses apartou. Circe, movida de grande paixão por Ulisses, transformou os seus homens em porcos.
        
                                                                            *
                  
Ao observarmos o título deste soneto, somos levados, provavelmente, a evocar o Romantismo, embora o conceito de "Ideal" nos possa remeter para a própria luta travada pela Geração de 70 na busca de novos ideais. Em qualquer dos casos, há uma sugestão de transcendência e de perfeição.
Ao longo do poema, alguns elementos semânticos - "que eu adoro", "visão", "como uma miragem", "Ideal", "nuvem", "sonho impalpável" - confirmam o titulo do soneto e mostram-nos uma mulher adorável, como uma "visão".
O tema é a mulher ideal, mas a sua descrição surge por antítese daquilo que "não é", Em confronto com figuras mitológicas, aparece como um ser divino e sublime, ideia pura: nem mulher sensual como a "Vénus de cintura estreita", com "formas lânguidas, divinas"; nem mulher fatal e traiçoeira como a Circe que "compõe filtros mortais entre ruínas"; nem mulher corajosa e dominadora como a Amazona, que "combate satisfeita…”.
Esta mulher, retratada à maneira petrarquista, é uma "visão" que "ora amostra ora esconde o meu·destino…", levando o sujeito lírico ao Desejo, ou seja, ao amor, à aspiração do Ideal. Apresenta-se como uma "miragem", "nuvem", "sonho impalpável do Desejo".
A busca do ideal não se confina ao amor. O homem e a mulher sempre ansiaram por ideais que permitissem que a sua vida tivesse sentido. Por isso, Antero de Quental, com a consciência do mundo em que vivemos, orientou a sua luta na busca dos ideais da justiça, da fraternidade e da liberdade. De forma diferente dos românticos, que sacralizaram o sentimento, procurou o apoio na Razão a que chamou "irmã do amor e da Justiça".
           
Português A e B: acesso ao ensino superior 2000, Vasco Moreira, Hilário Pimenta. Porto, Porto Editora, 2000. (Coleção: Acesso ao ensino superior: preparação para a prova de exame nacional - 12º ano)
           
           
Poderá também gostar de:
               
  Exposição oral sobre a análise do soneto "Ideal", de Antero de Quental, disponível na Escola Virtual.



 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/25/ideal.aspx]

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

SONHO ORIENTAL (Antero de Quental)

   
ANTERO DE QUENTAL
           

           
SONHO ORIENTAL

Sonho-me às vezes rei, n'alguma ilha, 
Muito longe, nos mares do Oriente, 
Onde a noite é balsâmica1 e fulgente2 
E a lua cheia sobre as águas brilha... 

O aroma da magnólia e da baunilha 
Paira no ar diáfano e dormente... 
Lambe a orla dos bosques, vagamente, 
O mar com finas ondas de escumilha3... 

E enquanto eu na varanda de marfim 
Me encosto, absorto n'um cismar sem fim, 
Tu, meu amor, divagas ao luar, 

Do profundo jardim pelas clareiras, 
Ou descansas debaixo das palmeiras, 
Tendo aos pés um leão familiar.
          
Antero de Quental, Sonetos
          
_______________
Balsâmica: odorífera, apaziguadora, consoladora.
Fulgente: brilhante.
Escumilha: espuma miúda.
          
          

TEXTOS DE APOIO
          
EXPRESSÃO LÍRICA DO AMOR IDEAL
       
Repare-se na inspiração bíblica deste soneto e do seguinte [“Ideal”], que constituem exceções na obra de Antero pelas características parnasianas que os distinguem: a descrição pictórica e colorida; o visualismo completado pelas sensações auditivas e olfativas (aroma da magnólia e da baunilha; lambe a orla dos bosques, vagamente, / o mar...); o recorte severo do verso; a sugestão do cenário exótico e nobre (varanda de marfim; debaixo das palmeiras; tendo aos pés um leão familiar). Assim, este soneto, em que não se reconhece objetivo pragmático ou transcendente, aproxima-se da pintura e da conceção da arte pela arte. Assinala, portanto, um momento de transição: o da convergência do som e da cor, do poder sugestivo da musicalidade das palavras, que o poeta abandonará definitivamente.
      
Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada. Século XIX. Do Romantismo ao Realismo. Poesia, Lisboa, Editora Ulisseia, 1985, 2ª edição.
        
*
       
Este soneto, como indica Júdice, inserido no período de entre 1862-1866, conta formalmente com uma sonoridade muito destacável de jogos com as vogais /o/ e /a/ ao longo da composição. E é que Martins, no famoso Prefácio, já avisa que se trata “da série de sonetos psicologicamente menos original, mas sendo, artisticamente, a mais brilhante.” 
A voz poética vê-se numa ilha lá no Oriente que tal qual ele o imagina suscita um aparente ambiente agradável (“balsâmica”) e cheio de luminosidade, devido a ação da lua cheia. As comparações, neste último sentido, como estereótipos românticos são inevitáveis. No segundo quarteto evoca-se o aroma de prantas aromáticas (“magnólia e da baunilha”) dando uma sensação de vaguidade e de formas não muito claras (“o ar diáfano dormente”) ao tempo que se dão, como no primeiro terceto, pinceladas de sumptuosismo turrieburnista (“marfim”) para reincidir na meditação evasiva da voz poética. Há uma referência a uma segunda pessoa (“meu amor”) que repousa num jardim de claras evocações românticas, novamente, ao tempo que elementos exóticos (“ palmeira”, “leão”) partilham esse cenário que a voz poética semelha visualizar com olhos de serenidade libertadora.
António Sérgio situa este soneto no Ciclo “Da expressão lírica do Amor Paixão” devido, supomos, a essa referência a essa segunda pessoa que a voz poética denomina como “meu amor”. Contudo, também nos atreveríamos a situar esta composição fazendo parte do ciclo que se refere ao desejo de evasão na terminologia achegada por Sérgio, sobre tudo tendo em conta umas declarações de Antero adicadas a Castelo Branco por volta de 1865 e que Joel Serrão recolhe no seu exemplar deGénese e Devir dos Sonetos de Antero:
          
“[...] Ainda no ano da publicação de Odes Modernas (1865), em Setembro-Outubro, Antero confidencia a António de Azevedo Castelo Branco, um dos seus maiores amigos de então: “O cenobistismo e a contemplação, o misticismo, se quiseres, são na sua inércia aparente, os mais rijos obstáculos que a liberdade de espírito pode opor à brutalidade invasora das condições fatais do mundo; são a maior vitória consciência, o maior triunfo, com esta arma invisível e silenciosa – a indiferença, o desdém.- Todas as vezes que a alma humana, sufocada pelo abraço bestial da natureza, se tem visto em perigo de morrer, não lhe tem valido nem a paixão nem a luta ruidosa e dramática, mas só o desprezo, a abstinência, a contemplação. Esta é que é a base das religiões como das filosofias: e Cristo e Buda vão nisto (que é o essencial) de acordo com Sócrates e Epicteto. Crê que a grandeza de alma estava em resistirmos, conservando-se cada um no meio hostil em que o acaso o deixou cair, em resistir na imobilidade duma consciência a quem o mundo não pode ferir porque não depende dele para nada; mas só do ideal ou do espírito se quiseres. Enfim, tudo isto sabes tu melhor do que eu, que és acabado moralista – e eu sei também que tudo isto é uma questão doutrinal, de valor quase só científico e nada prático, para nós, porque não somos heróis nem mártires, mas só homens aspirando a viver segundo a justiça e a razão, o que não é pouco já. Para quem aspira e não são precisas condições: é que sem elas não fora o que só vê como ideal. E se isto, assim posto, por um lado é uma confissão de fraqueza, de doença mesmo, por outro lado é a justificação de todos os esforços que esses doentes morais fazem para sair dacorrente de ar mefítico, em que não podem respirar, para chegarem a alguma colina aonde o pulmão, e o coração também, se dilatem e sirvam enfim para alguma coisa. [...]” (Serrão,1999: 29-30)
          
Semelha haver uma aposta clara pela contemplação e as formas de cultura orientais, preferentemente budistas, para se evadir, desfazer do desajuste em que nos mergulha, às vezes, o meio hostil. Um meio adverso, supomos, muito em sintonia com o que se referia no anterior soneto que analisamos: o longo conflito entre o ideal e o real. Aqui, com respeito ao anterior poema, Antero semelha querer evoluir, superar-se numa luta que transcenderá através de toda a sua vida poética e dos seus ciclos evolutivos. Detrás da fachada da aparência plácida que suscita este soneto de formas suaves, temos um Antero fortemente convulsionado.
          
“[...] E fraco, por tanto? Não. A vontade, em obediência à qual, e com esforço, se faz colérico, fá-lo também forte – dessa força persistente, raciocinada e na aparência plácida, como a superfície do mar em dias de bonança. O oceano, porém, é interiormente agitado pelo gulf stream quente e invisível: encobre ondas aflição que sobem até aos olhos e rebentam em lágrimas ardentes. Sabe chorar, como todo o homem digno da humanidade. [...]” (Martins em Sérgio, 1976: LXVI)
          
“[...] O poeta é por isso um místico, e o crítico um filósofo. O misticismo e a metafísica, o sentimento e a razão, a sensibilidade e a vontade, o temperamento e a inteligência, combatem-se às vezes dilacerando-se. Eis aí a explicação desta poesia que é o retrato vivo do homem. [...]” (Martins em Sérgio, 1976: LXVII)
          
          
Castelo Branco, em Vila Franca do Campo, com a Lagoa das Furnas ao fundo. Ilha de São Miguel - Açores
          
QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO
          
1. Divida o soneto nas partes lógicas que o constituem, justificando a sua resposta.
2. Enumere os elementos descritivos que evocam o Oriente.
3. Indique qual o papel da distância na construção do sentindo geral do poema.
4. Mostre como é sugerido, no texto, um ambiente de sonho.
5. Explicite de que modos são representados o «eu» e o «tu».
          
          
EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA
          
1. As duas quadras, por um lado; os dois tercetos, por outro. As duas partes são unidas por um «E» integrativo; a primeira refere o lugar, o tempo e o ambiente na ilha, e a segunda a presença do «eu» e do «tu» num espaço que apesar de ainda marcado como exterior, é já o de uma casa, ou um palácio: «varanda», «jardim».
          
2. Os principais elementos descritivos pelos quais no poema se representa o Oriente são:
- «aroma da magnólia e da baunilha»
- «a orla dos bosques […] / O mar»
- «varanda de marfim»
- «palmeiras»
- «leão»
          
Também poderão aceitar-se como válidos os elementos:
- «ilha»
- «mares do Oriente»
- «noite […] balsâmica»
- «ar diáfano»
- «profundo jardim».
          
3. A distância é sublinhada desde o segundo verso, «Muito longe», e depois é referida pelo «Oriente», pela «varanda de marfim» e pelo «leão familiar», que são outros tantos sinais dessa distância, dessa estranheza ou desse exotismo.
A distância é um elemento importante para a caracterização deste «sonho oriental», que está situado num mundo tão longínquo que nada tem a ver com o mundo em que é sonhado.
A distância convida à divagação, á fantasia, ao onirismo.
          
4. A impressão de sonho consolador, num ambiente paradisíaco, é transmitida pelos elementos visuais da noite luminosa e pelos odores balsâmicos, bem como pelo clima de paz e de silêncio (o ar é «dormente», o «eu» está «absorto», o «tu» divaga «ao luar» ou descansa) e, ainda, pela imagem do leão deitado aos pés da mulher, em harmonia perfeita.
Nota – Também se pode elaborar a resposta a esta questão a partir de expressões do texto, tais como:
- noite «fulgente»; «a lua cheia sobre as águas brilha»; «ar diáfano»; «a orla dos bosques»; «O mar com finas ondas de escumilha»; «varanda de marfim»; «profundo jardim pelas clareiras»; «debaixo das palmeiras»; «aos pés um leão familiar»;
- noite «balsâmica»; «aroma de magnólia e de baunilha».
          
5. «Eu»: «rei», encostado à varanda, «absorto num cismar sem fim»…
«Tu»: ou «divagas ao luar» no jardim ou «descansas debaixo das palmeiras, / Tendo aos pés um leão familiar».
O «eu», que é quem sonha, é representado imóvel, num espaço quase-interior.
O «tu» é representado no exterior, em movimento ou descanso; ao ser figurado «debaixo das palmeiras» com um «leão familiar» aos pés, o «tu» mais que o «eu», torna-se uma imagem do poder real, quer porque o leão é um símbolo de realeza, quer porque a mansidão com que se lhe deita aos pés mostra que o «tu» tem poder sobre ele.
          
Exame Nacional do Ensino Secundário nº 139. Prova Escrita de Português B, 12º Ano 
(plano curricular correspondente ao Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de Agosto)
Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. 1998, 1ª fase, 2ª chamada.
          
        

        
Poderá também gostar de:
        

► Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 50 de Português – 11.º ano, sobre "Sonho oriental", de Antero de Quental. Temas, motivos e estilo dos sonetos anterianos, 2021-06-08. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7903/e549509/portugues-11-ano


 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/24/sonho.oriental.aspx]