quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

ILHA, Pedro da Silveira

         
        
ILHA
            
Só isto:
                 O céu fechado, uma ganhoa
pairando. Mar. E um barco na distância:
olhos de fome a adivinhar-lhe, à proa,
Califórnias perdidas de abundância.
          
Pedro da Silveira
A Ilha e o Mundo, 1952
                   
ilha de São Jorge, por Diografic, agosto de 2017


Pedro Laureano Mendonça da Silveira, natural da Ilha das Flores, nos Açores, foi um poeta e investigador de avantajada cultura, com colaboração dispersa em numerosas revistas, açoreanas e continentais. Pertenceu ao conselho de redacção daSeara Nova até 1974. É autor de vários livros de poesia, estreando-se com A Ilha e o Mundo, editada em 1953, e de duas antologias de poetas açoreanos, a primeira das quais com um prefácio em que autonomiza a literatura deste arquipélago em relação a todas as outras literaturas de expressão portuguesa. Foi, depois do 25 de Abril, membro da comissão de gestão BN, tendo-se reformado como director de serviços desta instituição.
O espólio (34 cx.) engloba manuscritos do autor, (com destaque para a organização de antologias e outros projectos de edição), correspondência, documentos biográficos, recortes de imprensa e alguns manuscritos de terceiros.
Doação faseada do autor iniciada em 1981 com incorporações em 1995, 1997 e 1998. Em Abril de 2003 o acervo foi completado com a doação do remanescente por parte da viúva do escritor, Sra. D. Athiná Mendonça de Oliveira Dáskalos da Silveira.
      
                               




Cartão de identidade de Pedro da Silveira como membro da Casa dos Açores, 1958
BNP Esp. E39/cx. 6
        
          
        
SILVEIRA, PEDRO DA
         
N. Fajã Grande, ilha das Flores, 5.9.1922 – m. Lisboa, 13.4.2003]
Fica-lhe bem o epíteto de o mais ocidental poeta europeu, por ter nascido no ponto em que a Europa e a América mais se aproximam uma da outra. Talvez esse facto e a existência de uma forte tradição migratória na família (ele próprio possuía passaporte americano) ajudem a explicar a inquietação e a errância intelectual deste homem, poeta, investigador histórico e literário, tradutor, etnógrafo.
Nos anos 40 do século XX, na cidade de Ponta Delgada, transformou o jornal A Ilhanum pólo aglutinador de jovens intelectuais; neste jornal divulgou a moderna literatura cabo-verdiana (revista Claridade, de 1936), cujos autores também nele colaboraram.
O seu primeiro livro de poemas atestaria de forma irrecusável esse contacto com os poetas cabo-verdianos e também com um poeta brasileiro como Manuel Bandeira. De resto, a poesia de Pedro da Silveira soube sempre assinalar uma forte vinculação ao chão açoriano, ao mesmo tempo que se desdobrava num constante e profícuo diálogo com «as ilhas todas do mundo», em termos culturais e poéticos.
Em 1951, Pedro da Silveira fixou residência em Lisboa, tendo exercido aí várias actividades e reformando-se em 1992 como director de serviços da Biblioteca Nacional. Redactor da revista Seara Nova até 1974, deixou colaboração dispersa pela imprensa nacional e estrangeira, do Brasil ao México, de Cabo Verde a Moçambique.
A sua Antologia de Poesia Açoriana – do século XVII a 1975 (Lisboa, Sá da Costa, 1977) reúne um precioso manancial de informação histórica e biobibliográfica; o extenso verbete «Açores» no Grande Dicionário de Literatura Portuguesa e de Teoria Literária, de João José Cochofel, constitui uma excelente amostra do que viria a ser a História da Literatura Açoriana, que andava a preparar quando faleceu.
Pedro da Silveira foi ainda um atento pesquisador literário e etnográfico, como o reconhece o investigador Gerald Moser e o atestam as numerosas recolhas de exemplares da oratura que efectuou e de que deu conta em publicações avulsas.
Deve-se a Pedro da Silveira a reedição de Almas Cativas (Lisboa, Ática, 1973), de outro grande poeta açoriano, o simbolista Roberto de Mesquita, cuja lição de enraizamento poético não deixa de repercutir em Silveira, embora já em diferentes modulações expressivas e estéticas, que passam, entre outras coisas, pela utilização de processos discursivos da oralidade: a transposição da fala popular, o tom narrativizante de alguns poemas e de algumas sequências poéticas que muito devem à tradição narrativa popular.
           
Obras. Poesia: (1952), A Ilha e o Mundo. Lisboa, Centro Bibliográfico. (1962), Sinais de Oeste. Lisboa, Ed. do autor. (1985), Corografias. Lisboa, Perspectivas & Realidades. (1999), Poemas Ausentes. Santarém, O Mirante. A sua obra completa começou a ser publicada pela Direcção Regional da Cultura, sob o título deFui ao mar buscar laranjas, de que saiu apenas o 1.º volume (Angra do Heroísmo, 1999).
Diversos: (1986), Mesa de Amigos, Angra do Heroísmo, Direcção Regional dos Assuntos Culturais. (2.ª ed., Lisboa, 2002), traduções de poesia feitas ao longo de mais de trinta anos; (s.d.), 43 Médicos Poetas(antologia). Porto, Laboratório Normal. (1999); Antologia Poética, de Joaquim Fortunato de Valadares Gamboa. Santarém, Ed. O Mirante.
        
Bibl. Fagundes, F. C. (1999), A Visão da Outra Margem: A emigração em A Ilha e o Mundo de Pedro da Silveira, in Gávea-Brown, Providence, Department of Portuguese and Brazilian Studies, Brown University, Dec., XIX-XX. Sousa, J. R. (2000), Pedro da Silveira: um viajar no tempo e nas palavras, in Atlântida, Angra do Heroísmo, XLV. Bettencourt, U. (2003), Pedro da Silveira- a escrita e o mundo, in Ilhas conforme as circunstâncias. Lisboa, Edições Salamandra.
           
Silveira, Pedro da”, verbete da Enciclopédia Açoriana, Urbano Bettencourt
© 2011 Direção Regional da Cultura, Centro de Conhecimento dos Açores
            
        
Pedro da Silveira
          
     
Pedro da Silveira. Quando ser poeta era outra coisa

Apagado desde a sua morte, em 2003, o poeta açoriano vê finalmente reunida a sua obra, numa edição que traz à luz um livro inédito e vários dispersos, mas que, antes de tudo, nos obriga a reconhecer a inquieta grandeza da sua voz. 

“Ilhéu da casca até ao cerne”, descreveu-se Pedro da Silveira. E quanto ao feitio lixado, mesmo os admiradores e amigos não o escondem, e ele também não se desculpa. No seu “Soneto de Identidade”, explica como lhe está na natureza – o que é que se há-de fazer? –, e até no nome, pois “Pedro é pedra; picante agudo assomo/ de silva dos silvedos – não me dou!” E se lhe dava tão facilmente para se arreliar, se até agradece a destemperança de feitio – “os meus desdéns soberbos/ e sarcasmos ferozes” –, essa outra forma de errância, de exumar “lendas e sepultas verdades” não cai bem entre as repartições do ego. As meninas do guichet não carimbam, não se vai a lado nenhum. Mas no que toca à poesia, quem não se dá nem pede licença, e também não engole sapos, paga o preço que se sabe. E, contudo, a vingança na poesia é uma constante, e basta que resistam umas poucas páginas para acabar dando razão a esse que não negou à língua a maldade, essa que tanta justiça faz ao modo como a vida entre nós se arranja. De resto, o que podia esperar-se de um poeta que deve a nobreza das suas impressões a um feroz sentido crítico. Traindo este, seria natural que a musa se enfadasse. De resto, ninguém leva a mal se se disser o pior desde que a culpa se dilua entre todos, e todos, assim, se sintam ilibados. A tendência é até para concordar com os arrasadores diagnósticos gerais. No particular é que a coisa fia mais fino. Ora, sendo natural da Fajã Grande, uma freguesia rural da ilha das Flores, Pedro da Silveira sentiu a fundo essa espécie de agonia de sentir como “as horas vão, morosas como lesmas,/ rastejando por sobre o nosso tédio” (Roberto de Mesquita), em que, a ânsia de ver quebrar-se a monotonia, chega ao ponto de se desejar que haja um naufrágio, sem mortos, só para que o fio do tempo se tensione. Um espírito são não chega a implorar por uma tragédia, com mortos e assim, mas só a ignição para a mínima intriga, e é natural, por isso, que a modorra da vida numa ilha pequena entre a Europa e a América cultive esses espíritos chagados por não acontecer nada (“fora de nós, pelo menos”). É por dentro que tudo se contorce, e sem sinal de baleia lá fora, recria-se ou genial ou mesquinhamente alguma agitação. Isso justifica a imunda fauna do tédio que é tão comum em meios pequenos. Esses carácteres absurdos, terríveis, essas figuras insuportáveis de tontas, esse beatério com a sua insidiosa perseguição: “Todos os dias a pesar pecados/ na balança velha do céu”. Silveira, que cedo foi cirandando entre as ilhas, antes de, em 1951, ter ancorado em Lisboa, não chegou nunca a libertar- do sonho antigo de evadir-se, e tinha na carne as marcas dessa lenta dilaceração do que, de tanto esperar, nos torna íntimos da ausência. “Que vida monótona a vida da vila!.../ Sem cinema nem teatro/ nem luz eléctrica/ nem automóveis,/ nada do que dizem que têm as terras grandes...” As reticências abundam nestes poemas, e percebe-se como foge a desfazer-se nelas, a ceder àquele registo moribundo de quem escreve, não para a gaveta, mas para a garrafa que há-de ser entregue à maré, na esperança de que leve os versos mais longe do que merecem. Por outro lado, há um evidente apego à matéria, à exterioridade mais comum e que dá por quotidiano. “Não; não cultivo a poesia/ intemporal e profunda:/ a minha é quotidiana,/ imediata, o que abranjo/ vivo, visível, real;/ ou que, lembrado, me sobe/ pelos degraus da memória.” Mas se insiste nos “nomes próprios das coisas”, o poeta não se serve delas para se rebaixar comprazido. Não faz dos versos um bicho que no colo ronrona satisfeito nesse ir e vir da “cadeira-de-balanço/ como tantas que há/ nas terras pequenas das ilhas pequenas/ guardando sonhos e desenganos/ de várias gerações...” De resto, não é difícil encontrar traços em comum com Raul Brandão, esse que a propósito da ilha das Flores, escreveu: “A vida não me interessa. Algumas florentinas esbeltas, de xale escuro pela cabeça, alguns tipos de homens fortes – e mais nada. De ilha a ilha – Corvo e Flores – vão quinze milhas – mas que distância as separa!... (…) Compreendo o Corvo, não compreendo os interesses mesquinhos, moídos e remoídos numa pequena vila isolada a cem léguas do mundo. Vejo às janelas, por dentro das vidraças, fisionomias tristes de velhos que estão desde que se conhecem à espera de quem passa – e não passa ninguém. É aqui que o hábito deita raízes de ferro. Oh, meu Deus! descubro que a gente enterrada há cinquenta anos se encontra outra vez nas Flores, viva e aferrada às mesmas palavras e às mesmas manias do passado, numa meia-sombra em que se cria bolor. Estou talvez no Purgatório – o Inferno é mais ao norte... Certos seres mortos na minha mocidade, e que eu não sabia onde se tinham metido, foram desterrados para as Flores. Até personagens de romance! (…) Visitei uma senhora de idade que nunca saiu de casa e até a paisagem da ilha desconhece. Quem não trabalha só pode fazer uma coisa: sentar-se nos bancos de pedra da Misericórdia e esperar a morte. E na verdade aqui tanto faz estar vivo como morto e sepultado num jazigo de família.”




Curiosamente, Silveira termina o poema “Outra vez no Corvo” com a mesma impressão: “Ermo com gente:/ vivos e mortos confundidos.” Mas é no poema “Toada dos Jornais Velhos” que melhor nos explica os constrangimentos de estar isolado do mundo, dando-nos, assim, o mais tocante retrato do intelectual no exílio, esse que não se resigna e, ao invés de sentir a distância como um empecilho, faz-se valer dela para recriar na sua cela as notícias que lhe chegam desse mais vasto teatro: “Maços de jornais já velhos/ de Lisboa e mais d’América,/ do Faial e da Terceira:/ têm dez dias, quinze, trinta/ as novas que me eles contam: novas de nada de novo/ para mim de novidade desses mundos lá de fora:/ sempre-vivas flores secas/ para mim como de quando.// Abro-os, ordeno-os por datas,/ e leio-os de ponta a ponta,/ releio-os, torno-os a ler,/ já de cor tudo lhes sei/ e o que foi, quanto me dizem/ não foi outrora, é agora,/ nem longe, nos longes que/ longes são a mais de longe:/ tão perto como se aqui/ nesta sala em onde os leio.” O poeta fala do que é ter trinta dias para contar entre cada remessa, trinta dias de intervalo até que chegue novo maço de jornais, então já velhos, mas: “Que me importa já ter sido?/ Que me importa quando foi?/ Ausente, vivo em presença;/ participo, mesmo ausente.”

Pedro da Silveira morreu em Lisboa, em 2003, aos 80 anos. Não parecia acreditar ou deixar-se seduzir pela ideia de posteridade (“Sempre soube que devemos morrer/ e penso que é melhor/ não se saber quando nem como./ E quanto ao que deixámos,/ não se recorde de quem foi./ Que só assim somos eternos.”). Além do mais, sempre se mostrou insatisfeito com os poucos livros que chegou a editar. Publicou quatro livros – A Ilha e o Mundo (1953), Sinais de Oeste (1962), Corografias (1985) e Poemas Ausentes (1999) –, além do primeiro volume do que teria sido a reedição integral desta obra poética – “Fui ao mar buscar laranjas” (1999). Raramente, um ou outro lá surge como destroço de alguma biblioteca que perdeu o seu leitor, mas nem estão devidamente valorizados, e vendem-se a um preço igual ao de tantos livros da “maioria dos mesmos da vida literária portuguesa, tão satisfeitos de si mesmos que escrevem sempre um livro pior do que o anterior” (Jorge de Sena). Para que se diga que Pedro da Silveira é, hoje, um poeta esquecido, era preciso que alguma vez tivesse sido outra coisa que não um poeta absurdamente desvalorizado. A boa notícia é que o Instituto Açoriano de Cultura inaugurou uma colecção de poesia, sob a direcção do poeta e crítico Carlos Bessa, com a reunião da obra de Silveira. Urbano Bettencourt preparou esta edição de pouco mais de 400 páginas e que, no essencial, retoma o projecto de reedição. Trata-se de um desses acontecimentos editoriais  de primeira grandeza e que, se são ignorados, isso deve-se simplesmente ao facto de, neste país, do ponto de vista cultural, não restar um número suficiente de intelectuais e críticos minimamente responsáveis, e capazes de, numa ou noutra circunstância, fazer coro exaltando o que quer que seja.

Não sendo possível nem desejável falar para toda essa terra onde a poesia vem triunfando como outra forma de populismo, em que, na falta de um destino mais alto, considerar-se poeta é uma forma de orgulho, uma “obstinação maníaca do ressentimento”, pelo menos, ainda vai sendo possível “dizer um segredo a um só ouvido”. E assim, como se se tratasse de uma indecência absoluta, diga-se que Pedro da Silveira é um grandessíssimo poeta. A coisa deve ser dita soando a uma divinal injúria, reforçando o quanto isso revela um alto grau de danação entre os homens. E o resgate de um poeta destes traria um sentido de regeneração quando da poesia querem fazer um último palco, uma espécie de tábua de salvação para a canalha. De tão íntegra, tão fiel aos seus conflitos, a voz que aqui nos fala das coisas como elas podem entender-se de forma clara, contadas com essa urgência da “curiosidade deslumbrada do mundo”. 

“Poema feito de esperas e de longe,/ cheirando a sal”, mesmo se o poeta abandonou as nove ilhas e cada um dos seus lugares, a canção que não se cansa do mundo diz-lhe, como a epígrafe de Severo Sarduy a “Ossos na Areia” – caderno de inéditos que Silveira ainda deixou preparado –, no fim, “regressarás à tua terra, mas por outro caminho”. A ilha como que vaga com ele, o mar ainda o cerca de todos os lados, fazendo-se sentir, como esse silência que lhe pesa nos ombros e na cabeça: “E desce-me, como um líquido peganhento, ao longo do corpo. É um silêncio que se fixa, e ao mesmo tempo móvel – mas tão lento, tão lento!, dir-se-ia que vagarosamente engrossa, um corpo disforme de silêncio. (...) E no entanto, não sei porquê, não me mortifica: integra-me na paz vazia de estar vivo dentro desta morte azul e prata.”

É evidente o muito que a poesia tem a ganhar com esse talento para expandir coisas de nada, essa habituação dos sentidos ao ínfimo, a esses lugares da terra tão desertos de passos, em que, para fugir “de habitar a Morte”, habituando-se, o poeta vive em permanente estado de vigília, cultivando uma atenção salva-vidas. Assim, evita essa forma de desespero de quem toma o próprio pensamento por “uma inútil recordação de sobrevivente”. Inútil porque se está “num mundo-além-morte”. “No cimo do morro alto”. Silveira permanece “no pólo meridional deste Mundo-por-dentro, na sua Antártida-às-avessas.” A sua voz é uma longa, bela e triste história, contada e enriquecida ao longo de gerações, como “sangue de sombras que a memória avança”.

No prefácio a esta edição, Urbano Bettencourt assinala esta função da história que de si a si mesmo conta o poeta, como para não se deixar perder na corrente nem diluir naquela “paz de espelho velho”: “A evocação e a ordenação levadas a cabo pela memória serão, assim, um último exercício de auto-sobrevivência.” No desafio ao "íntimo oco" que formam o céu e o mar, o poeta dá-nos, mais que nomes, coordenadas, como a dessa "Praia do Fim", e dá-nos notícias das "sete barcas que o mar aqui tragou". São lugares que, ao longo dos séculos, quietamente, renovam o seu perigo, a sua virgindade alimentando-se de destroços, e que, assim, têm como um cadastro, onde estão inscritos os nomes de embarcações mais ou menos célebres a que deu um fim: "Da Nova Caledónia rumo a França,/ foi aqui que a Bidarte naufragou.// Pedregulhos, da carga, por lembrança,/ amarelos e verdes n'onde estou.../ – Lá fora, dela, mais o olhar alcança/ o ferro que um arrecife cativou." Assinando um dos nossos mais belos sonetos, Silveira está com Pessanha naquela caliginosa fluência, acrescentando algo mais ao seu assombro. Serviu-lhe bem a dura aprendizagem do ilhéu, fazendo da memória e do próprio eco um avanço: "Praia do Fim da Europa escura e baça/ onde ao redor só cresce a vil margaça,/ a perrejil, o cubre, a usaidela...// aqui – oh caos de rolos e salvados! –/nestes baixios negros desolados,/ desde Velasco e Teive a morte vela!"

Bettencourt recorda-nos ainda o leitor extraordinário que Silveira foi, desde o largo convívio que manteve com a literatura popular, o que se pressente na buliçosa entoação dos versos, nas suas modulações, como, a par dessa investigação, o diálogo que manteve com tantos nomes maiores da literatura, oferecendo-nos uma das mais exigentes e admiráveis antologias pessoais entre nós publicadas. No volume de traduções “Mesa de Amigos”, não há um poema a mais. Mas com a confiança que é natural num leitor que não precisava que outros lhe dissessem o que é a grande poesia, mesmo servida em prosa, na sua obra, Silveira recolhe sobressaltos maravilhosos que recebeu de outros, nessa indefinição de quem não distingue as vozes que se ouvem das que se lêem com maior fervor, e tal como nos diz que vasculhos de todas as raças lhe sifilizaram o sangue, também essa forma de memória cheia de futuro que é a poesia guarda laços de sangue improváveis com autores cujo rasto não se firmou entre nós. Há uma epígrafe fabulosa recolhida de um livro de versos do poeta brasileiro Afonso Félix de Sousa, em que além da “praia espessa do espanto”, que serve como uma das melhores noções desse retiro daquele que tira do mundo o bastante para se defender dele nas horas piores, nos diz que “força é acordares no estrangeiro que, pálido, acorda no teu íntimo.” Os envios de Silveira nunca são meramente decorativos, não funcionam como adereços ou enfeites. Nem muito menos são desses sinais de fumo entre os membros de uma dispersa tribo que se servem da erudição em elaborados cumprimentos que não querem, afinal, dizer nada de mais profundo. Como nota Steiner, citando o crítico francês Roger Caillois, “numa época cada vez mais incapaz de ler, quando até os espíritos instruídos não dispõem de conhecimentos clássicos ou teológicos mais do que rudimentares, a erudição torna-se em si própria um tipo de fantasia, uma construção surralista”. Isto explica porque, ao lermos os poemas e os ensaios pejados da quinquilharia de certas referências que estão ali como “flores de plástico na montra de um talho”, a sensação que temos é que a nossa época não faz mais que produzir um longo cadáver esquisito, perfumando-o de erudição para disfarçar o fedor.

Pelo contrário, nesta poesia tudo participa de um moto-contínuo, e cada eco é consumido na invenção de um novo hálito. Há, de resto, aqui um ímpeto que faz, nalguns poemas, um aceno à épica. No segundo dos “Sete romances imperfeitos” Silveira dedica em recordação de alguns familiares, e das experiências que foram decisivas para a construção do seu próprio mito biográfico, temos um corte com esse ânimo frio e que, mesmo se fero, parece um tanto recatado, como se não houvesse margem na nossa lírica para algo mais aventuroso. Tomando balanço no desabrido registo de Blaise Cendrars, de quem traduziu vários poemas, traça de si mesmo um estrondoso retrato: “Remotos sangues confluindo desde a Ásia à Europa no meu sangue./ Remotos, velhos, remoçados sangues/ do longe aos longes feitos./ - Mancha mongólica enigmática/ na minha pele de descendente,/ um pouco claro,/ de Gomes Dias Rodovalho/ e de Willem van der Haague… (…) babilónia de sangues/ noutros sangues inventando/ um novo sangue!/ Povos que se copulam, exterminam/ – e, sobre o amor e a morte, vivos! (…) Nómadas, oh força, sangue bruto, oh cruel/ e amorável sangue meu/ de esforçados! (…) Sangue indomado, indomável até onde/ é a razão indomável// – qual o vento do largo, cuja fúria desata/ as cadeias da água (…) Sangue de achar o retido no sono/ dos confins da água/ e dos cerros da terra! (…) Na minha voz as vozes/ amargosas de todos,/ sobre o lume do tempo/ e seus passos queimados!”


Diogo Vaz Pinto, Jornal i, 02/09/2019



        
   Sugestões de leitura
   
           
OBRA DE PEDRO DA SILVEIRA. ENSAIOS. ESTUDOS
BOLETIM DO NCH Nº 15, 2006    
   
    

    
     

   

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/01/30/PedroDaSilveira.aspx]
[Última atualização: 2019-09-02]

terça-feira, 23 de outubro de 2012

A IDEIA (Antero de Quental)


         
         
A IDEIA
       
IV
       
Conquista, pois, sozinho o teu Futuro,
Já que os celestes guias te hão deixado,
Sobre uma terra ignota abandonado,
Homem -‑ proscrito rei ‑ mendigo escuro!

Se não tens que esperar do céu (tão puro
Mas tão cruel!) e o coração magoado
Sentes já de ilusões desenganado,
Das ilusões do antigo amor perjuro;

Ergue-te, então, na majestade estoica
De uma vontade solitária e altiva,
Num esforço supremo de 
alma heroica


Faze um templo dos muros da cadeia.
Prendendo a imensidade eterna e viva
No círculo de luz da tua Ideia!
          
Antero de Quental
      
         
         

       
TEXTOS DE APOIO
       
A Ideia ‑ No primeiro soneto desta série, chega à conclusão que Deus desapareceu da Terra. No 2.°, porque o nome de Deus se apagou, até os astros são ateus e, como lei única, só querem o infinito. No 3.°, diz que importa reagir e procurar outro caminho, talvez mais luminoso, fora do cristianismo. No 4.°, sacode o orgulho do homem e exorta-o a conquistar, sem guias celestes, só com a sua Ideia, o seu futuro. No 5.°, pergunta quem é a Ideia. Não sabe defini-la. É algo de vago e impreciso. Chama-lhe peregrina, pálida imagem com alguma coisa de divina. No 6.°, considera a Ideia a esposa do homem, a grande razão de ser da sua vida. No 7.°, fala do consórcio, do «noivado da alma com a Ideia», num certo lugar distante, indefinido, «Lá, no seio da eterna claridade, / Aonde Deus à humana voz responde». Mas não chega a localizá-la. É neste soneto que define a Ideia - esta é o símbolo da Verdade. No 8.°, finalmente, esclarece que é na consciência do homem que se encontra o lugar para o «noivado da alma». Só lá se pode realizar essa união.
          
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º Ano, Lilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), pp. 194-195.
          
         

          
          
[…] Esse retorno será o núcleo de construção dos sonetos sobre «A Ideia». Não é já um retorno, é uma transmutação. Já que os deuses desapareceram (em termos em tudo similares aos das «Saudades Pagãs»: «Pois que os deuses antigos e os antigos / Divinos sonhos por esse ar se somem» mas ampliando-se logo inicialmente ao Deus do Cristianismo: «Deus tapou com a mão a sua luz, / E ante os homens velou a sua face!») o Homem, confinado a si mesmo, vai construir o seu próprio templo, «prendendo a imensidade eterna e viva / no círculo de luz da [t]sua Ideia!". Este é uma espécie de projeto inicial, primeira sequência em quatro sonetos de uma história de morte e ressurreição, de perda e invento, em que um absoluto herdado e decorativo se substitui pela construção pessoal e coletiva de uma «aspiração» (a palavra é fortemente anteriana) comum; o V soneto é o da identificação da Ideia, o do seu reconhecimento pela necessidade de fixação da sua natureza ‑ e é talvez um dos mais flagrantes exemplos do poema de ideias fortemente implicado numa mensagem poética vigorosa e sugestiva; natureza evanescente, coincidindo com o ideal simbolista, inapreensível e multímoda na sua mutação incessante ‑ imagem liquefeita, pequenina luz, nuvem, e sabemos como estes três elementos, água, fogo e ar são essenciais na imagística anteriana, já que a terra é a síntese realmente ideológica da cosmovisão que os envolve; este soneto organiza por si só uma sequência complexa de três momentos convertíveis em três micronarrativas: após a identificação da ideia, o apelo é o de um encontro necessário e ansioso, união de salvação simultaneamente erótica e terapêutica, para se terminar no abandono, deceção ou insatisfação de um encontro que não dá tudo, que promete mais do que cumpre. Os sonetos VI e VII dão conta da prossecução do encontro amoroso e matrimonial entre os homens e a ideia (o sujeito poético oscila entre o «vós» e o «nós») e, no último soneto, é o problema do espaço, dolugar da ideia que se coloca: «o espaço é mudo», o silêncio dá conta do vazio que aponta o além, «o céu da ideia», o absoluto romântico-simbolista; e é este percurso de incidência narrativa, reabsorvido na ressonância da exclamação do nada, que se detém na incidência lírica da paragem, de que o soneto «Contemplação» é um dos momentos mais esteticamente conseguidos.
Maria Alzira Seixo, Antero e a poesia de ideias” in Congresso Anteriano Internacional – Actas [14-18 outubro 1991]. Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1993.
          
       


          
         
Sonetos incluídos textualmente n’Os Sonetos Completos (o último da série o VIII, não figurava na 1ª edição das Odes Modernas: na 2ª edição, aparece com a data de 1871). Assim como a palavra Revolução exprimia o sonho de reforma social assim Ideiaresume o seu pensamento filosófico. No sistema hegeliano, a filosofia era a ciência da Ideia absoluta.

Repare-se como já nas Odes o soneto filosófico surge plenamente realizado, quer quanto à forma, quer quanto ao conteúdo. O processo artístico aqui documentado – concretizar, tornar plástica e sensível a abstração – converte-se numa das características do lirismo anteriano.

Recorde-se o comentário de Fidelino de Figueiredo (Antero, pág. 74): «O que Antero faz é meter o mundo requintado das ideias abstratas e das suas singulares ansiedades metafísicas, no mundo comum das sensações de forma e cor e dos normais sentimentos humanos.»

[O IV soneto da série] “A Ideia” exprime claramente uma mística política e social e o otimismo anteriano, isto é, a afirmação do Antero apolíneo.
      
Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada. Século XIX. Do Romantismo ao Realismo. Poesia, 
Lisboa, Editora Ulisseia, 1985, 2ª edição.
        
           

         
       
Na poesia anteriana, o plano real é sempre confrontado com o plano do ideal.
       
Ao perspetivar-se a poesia de Antero de Quental não parece difícil relevar várias dicotomias, entre as quais o real/o ideal, dicotomia que perpassa por quase todas as suas fases poéticas.
Assim, mesmo num primeiro momento, onde a mulher assume papel relevante, o mundo do ideal é colocado em destaque. A mulher a que Antero alude não é definida em termos concretos, é antes "uma miragem", um "Ideal", um “sonho”. Nunca a figura feminina se assume como sensual, com contornos bem definidos.

E se nesta 1ª fase se deteta esta dualidade, ela surge ainda mais acentuada na poesia de intervenção, do apostolado social. Aqui constata-se a necessidade de intervir no sentido de, pelo Amor e pela Justiça, poder transformar a sociedade. Acredita poder encontrar o Ideal que incessantemente busca e, pleno de otimismo, revela-se o apolíneo anteriano, aquele que busca a verdade e a luz, comandado por uma força, a que chama vontade. Afirma mesmo que o homem não precisa da ajuda divina e que sozinho pode conquistar o seu futuro ("A Ideia"). Pode até subir a "escada multiforme" para encontrar a liberdade, o ideal, superiorizando-se a Deus, que identifica com um mundo em ruínas.

Mas o contacto com o real fá-lo perder a esperança de transformação que idealizou, lançando-se por isso no pessimismo que o fará conotar com o noturno e negativo. Para obter a paz de espírito de que necessitava, vai procurar um novo ideal, agora no mundo místico, no domínio do budismo do Nirvana, isto é, no transcendente. Posteriormente vai ainda procurar reafirmar-se este transcendentalismo quando, numa fase final, procura reconciliar-se com Deus para atingir o absoluto que, obviamente, não poderá atingir-se no mundo real.

Parece pois ser possível identificar-se a dicotomia real/ideal na poesia anteriana, embora o idealismo supere o concreto, o real, porque este último o transforma num ser angustiado.
        
Dossier Exame ‑ Português A, 12º ano, 
Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003
ISBN: 972-41-3415-6
      
       
         
         
QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO
       
1. Caracteriza o destinatário da mensagem poética, comprovando a tua resposta com citações.
2. Comenta a expressividade das metáforas presentes no seguinte verso: “Homem ‑ proscrito rei ‑ mendigo escuro!”
3. Pronuncia-te acerca da relação Homem/Deus, tal como a entende o sujeito poético.
4. Divide o soneto em duas partes lógicas, justificando a divisão efetuada.
5. Explicita a relação sujeito poético/destinatário da mensagem poética.
6. Indica dois recursos linguísticos e/ou estilísticos de que se serve o sujeito poético para enfatizar a sua mensagem, exemplificando-os.
7. Tendo em conta a divisão proposta por António Sérgio, identifica a faceta em que se incluirá este soneto, explicando-a.

 angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal



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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/10/23/A.Ideia.aspx]