quinta-feira, 29 de agosto de 2013

TOURADA (Festival da Canção 1973)


             
TOURADA

Não importa sol ou sombra 
camarotes ou barreiras 
toureamos ombro a ombro 
as feras. 

Ninguém nos leva ao engano 
toureamos mano a mano 
só nos podem causar dano 
espera. 

Entram guizos chocas e capotes 
e mantilhas pretas 
entram espadas chifres e derrotes 
e alguns poetas 
entram bravos cravos e dichotes 
porque tudo o mais 
são tretas. 

Entram vacas depois dos forcados 
que não pegam nada. 
Soam brados e olés dos nabos 
que não pagam nada 
e só ficam os peões de brega 
cuja profissão 
não pega. 

Com bandarilhas de esperança 
afugentamos a fera 
estamos na praça 
da Primavera. 

Nós vamos pegar o mundo 
pelos cornos da desgraça 
e fazermos da tristeza 
graça. 

Entram velhas doidas e turistas 
entram excursões 
entram benefícios e cronistas 
entram aldrabões 
entram marialvas e coristas 
entram galifões 
de crista. 

Entram cavaleiros à garupa 
do seu heroísmo 
entra aquela música maluca 
do passodoblismo 
entra a aficionada e a caduca 
mais o snobismo 
e cismo... 

Entram empresários moralistas 
entram frustrações 
entram antiquários e fadistas 
e contradições 
e entra muito dólar muita gente 
que dá lucro as milhões. 
E diz o inteligente 
que acabaram as canções.
                   
José Carlos Ary dos Santos, As Palavras das Cantigas 
(organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho). 
Lisboa, Edições Avante, 1995.
                              
                 
Escrita no final de 1972, "Tourada" foi a canção escolhida para representar Portugal no Festival Eurovisão da Canção 1973, interpretada em português por Fernando Tordo.
A canção tem uma letra que foi claramente entendida em Portugal como uma metáfora em que se comparava a tourada ao decrépito regime ditatorial do Estado Novo, a canção é uma crítica à sociedade portuguesa daquele tempo:
Entram velhas doidas e turistas 
entram excursões 
entram benefícios e cronistas 
entram aldrabões 
entram marialvas e coristas 
entram galifões 
de crista.
                 
Na letra faz-se uma crítica ao snobismo e hipocrisia da sociedade:
Entram cavaleiros à garupa 
do seu heroísmo 
entra aquela música maluca 
do passodoblismo 
entra a aficionada e a caduca 
mais o snobismo 
e cismo...
              
Critica-se as contradições existentes na sociedade e os lucros de alguns:
Entram empresários moralistas 
entram frustrações 
entram antiquários e fadistas 
e contradições 
e entra muito dólar muita gente 
que dá lucro as milhões.
            
Na letra faz-se uma alusão à chamada Primavera marcelista, uma pretensa mudança efetuada no governo de Marcelo Caetano (mudavam os nomes, por exemplo, censura passou a ter o nome de "exame prévio", mas na prática pouco mudava):
estamos na praça da Primavera.
Não se percebeu como é que a censura vigente na época, não conseguiu entender a mensagem transmitida pela letra que era uma crítica mordaz/sátira ao regime.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tourada_(canção)
                  
             
            
A contestação ao Estado Novo e o 25 de Abril foram os momentos mais marcantes no que diz respeito à música de intervenção. Temas como "Grândola Vila Morena", de Zeca Afonso ou a "Tourada" de Fernando Tordo, tornaram-se intemporais e fizeram história.
Canções de resistência ou canções de protesto, consideradas após a revolução de Abril de 1974 como canções de intervenção são constituídas por poemas e músicas de denúncia de um presente de repressão e surgem como luta por um mundo melhor. Sem finalidade comercial, recorrendo, com frequência, à balada , possuem uma mensagem universalista, livre de qualquer constrangimento social.
A canção de intervenção tem um valor pedagógico notável, na forma como alerta o povo para as prepotências existentes, que constrangem o  seu dia-a-dia. Não raro, a verdadeira mensagem era "camuflada" nos seus versos para poder passar pelo crivo da censura.
Carla Brito, “A canção enquanto arma - Música de intervenção” in Estórias da História, 23-03-2011
             

                  
                     
Em 1973, mais uma vez ganhou o Festival RTP da Canção com “Tourada”, uma das letras mais polêmicas entre as que ganharam o grande prêmio em toda a história do Festival. Na verdade, entre as concorrentes deste ano contavam-se quatro canções de autoria de Ary dos Santos.
É preciso abrir aqui um parêntesis na trajetória de Ary dos Santos para comentar-se que embora ele tivesse encontrado vários intérpretes para seus poemas, nenhum deles – nem mesmo Amália Rodrigues – foi tão importante para sua obra como poeta como o foi Carlos do Carmo. Entre as inúmeras colaborações entre os dois destaca-se, sobretudo, “Estrela da Tarde”, uma das mais belas composições de toda a música portuguesa.
Carlos do Carmo define assim Ary dos Santos (Ary dos Santos: O Homem, o poeta, o publicitário: fotobiografia, Alberto Bemfeita, Lisboa, Caminho, 2003. p. 81) : “... insubstituível, não me refiro só ao aspeto afetivo, à amizade, refiro-me igualmente ao lado profissional. Tenho a convicção de que, num momento muito particular da nossa história (Abril de 74) – sendo um momento de libertação, tem cicatrizes ainda hoje difíceis de avaliar dada a sua proximidade, e que envolvem inúmeras contradições de sentimentos, ódios, paixões, encantos e desencantos – Zé Carlos fez com que a canção portuguesa simples, a canção do quotidiano, que poderão chamar de ligeira, nunca mais fosse a mesma desde que resolveu escrever para ela. ... Tenho vindo a constatar que algumas das pessoas que escrevem para canções, têm talento, mas estão muito aquém do que ele escrevia.
… Dizia que era poeta e nada percebia de música, mas de facto ele era um músico excelente, pela capacidade que tinha de entender a harmonia das palavras nas canções.” E ainda: “O Zé Carlos e o Fernando Tordo formavam uma dupla perfeita. … Esses casamentos são raros, só acontecem a espaços. Por exemplo, no Brasil houve duplas assim: a do Vinícius de Morais com o Tom Jobim ... O Zé Carlos tinha um outro dom importante. Na Lisboa dele, para além do figurino arquitetónico da cidade, estava sempre associado o elemento humano.
As figuras de Lisboa, que ele sabia descrever espetacularmente, devia-se à sua grande capacidade de observação. Ele era o que nós vulgarmente chamamos de umaesponja. Absorvia tudo o que o cercava.
... Outra das suas facetas por que sempre tive enorme apreço era o lado frontal. A frontalidade com que assumia a sua homossexualidade: sem tabus nem esquemas. Assumida numa época muito difícil, de grandes transformações sociais na vida portuguesa. Foi uma atitude de coragem que o dignifica e que não é para qualquer homem.”
                   
in Bulletin of the Faculty of Foreign Studies, Sophia University, nº 40, 2005.
                

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 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                     

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/29/tourada.festival.cancao.1973.aspx]

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

OS OLHOS DO POETA (Manuel da Fonseca)


  MANUEL DA FONSECA
            
               
OS OLHOS DO POETA

O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da Terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gelos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando como contos de fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas prò mar amaldiçoando a tempestade:
‑ todas as cores, todas as formas do mundo se agitam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas,
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.
                
Manuel da Fonseca, “Rosa dos Ventos” (1940)
in 
Obra Poética, Lisboa, Editorial Caminho, 1984, 7ª ed. revista pelo autor.
                  
            
LINHAS DE LEITURA DO POEMA «OS OLHOS DO POETA»
           
No seu olhar estão:
- “estrelas luzindo na penumbra dos bairros de miséria”
- “silhuetas escuras dos meninos vadios”
- “rugas maceradas das mães que perderam os filhos” (luto)
- “gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas”
- “a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram”
- “os trapos negros das mulheres dos pescadores”
                
O “seu olhar […] é um farol erguido no alto de um promontório”, iluminando a “penumbra dos bairros de miséria”.
                      
A dicotomia LUZ / ESCURIDÃO evidencia os aspetos neorrealistas do poema:

Dias claros inundados de vida

           

- as coisas boas da vida

- o normal da sociedade

perdem o brilho nos olhos do poeta

           

- não interessam ao poeta

- não tem de se preocupar com isso

             

          

Escreve poemas de revolta com tinta de sol

            

- traz à luz do dia

- desmistifica

- deve preocupar-se com isso

             

              

na noite de angústia

         

- os problemas da vida

- as injustiças da sociedade

                  
                
               
LEITURA ORIENTADA DO POEMA «OS OLHOS DO POETA»
            
Assim, se por um lado a vida desejada é aquela invocada, com maiúscula, por outro lado há a outra vida, sem maiúscula, “organizada em formas sociais que contrariam e esmagam o que há de mais instintivo e intuitivo no poeta” (DIONÍSIO, 1998, p. 33). Poeta esse que possui um olhar percuciente e abrangente sobre o mundo que o circunda, como é descrito no poema «Os olhos do poeta», no qual através da retórica o poeta procura propagar sua voz de modo a ecoar como um apoio sólido. Desse modo, o poema apresenta uma relativa regularidade nos versos e uma cadência monótona que tornam os versos versículos que formam o poema. O poema apresenta também uma estrutura formal mais livre, com versos brancos.
O título do poema não apresenta dificuldades para o entendimento do leitor. Sugere que o poema descreverá a forma como o poeta vê as coisas. Desse modo, surgem algumas perguntas: qual é a visão de mundo que o poeta tem? Quais suas atitudes em relação a essa forma de ver o mundo? As atitudes e a visão de mundo se integram ou divergem entre si? Já no primeiro verso o eu-lírico, em terceira pessoa do singular, responde a primeira pergunta, pois afirma que “o poeta tem olhos de água”, ou seja, através dessa metáfora ele declara que seus olhos são transparentes como a água e assim conseguem refletir todas as cores do mundo.
No segundo verso o eu-lírico continua sua descrição do olhar, que segundo ele é bastante abrangente e exato, conseguindo enxergar até mesmo o que os sábios desconhecem, ou seja, é um olhar muito perspicaz. No decorrer dos versos do poema ocorre uma enumeração do que o olhar do poeta consegue alcançar, representada pela preposição “e”, a qual aparece ao longo do poema inteiro, totalizando treze vezes, como forma de causar o efeito de adição as características do olhar do poeta.
As cores refletidas nos olhos do poeta não são de “dias claros, inundados de vida”, mas sim aquelas que retratam “a angústia que pesa no mundo”. Com o olhar que vê a “miséria”, “as rugas”, as dores, “o gesto desolado dos homens”, “a sombra das pálpebras das noivas que não noivaram”, “os trapos das mulheres dos pescadores”, o poeta apresenta como atitude a revolta que se torna evidente nos seus poemas, com o intuito de trazer esperança para os corações dos homens. Dessa forma, esse olhar é comparado a um “farol erguido no alto de um promontório” que com sua luz e sua posição privilegiada tem a missão de ser uma “estrela” dentro das “trevas”, “estrelas luzindo na penumbra”. Isso parece ser uma forma de demonstrar a relevância do olhar do poeta na sociedade em que se insere.
Como o olhar do poeta deve refletir “todas as cores do mundo”, há no decorrer do poema a presença constante de vocábulos e adjetivações que de algum modo representam as cores, a maior parte deles referem-se a cores sombrias como: “penumbra”, “silhuetas escuras”, “sombra das pálpebras”, “trapos negros”, “trevas”, “noite de angústia”. Significando dessa forma que as cores predominantes no mundo são negativas, devendo o poeta ser uma “estrela” a trazer brilho e esperança a esse mundo tomado pelas “trevas”.
Os olhos do poeta revelam-se assim não como olhos que apenas choram ou lamentam a realidade que o circunda, mas sim como olhos que se abrem para a realidade social e são capazes de recriar esse real. São olhos que revelam que o poeta possui uma especial propensão para auscultar os males que afetam os homens, uma sensibilidade que se reflete no lirismo da sua poesia e por isso consegue descrever e interpretar o espaço geográfico e humano do Alentejo, permeado de dores e sofrimentos. Ou seja, o seu compromisso é o de escrever “poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo”, pois no seu olhar “todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam”, implorando que sejam escutadas e comunicadas aos homens.
                 
Dissertação de mestrado de Rosilda de Moraes Bergamasco, 
Universidade Estadual de Maringá, 2012, pp. 85-87.
               
              
PERFIL LITERÁRIO DE MANUEL DA FONSECA
                
Escritor português, vulto destacado do Neorrealismo, nasceu a 15 de outubro de 1911, em Santiago do Cacém, e morreu a 11 de março de 1993, em Lisboa.
Partiu ainda jovem para Lisboa para realizar estudos secundários, tendo desempenhado posteriormente na capital diversas atividades profissionais no comércio, na indústria e no jornalismo. Antes de colaborar em Novo Cancioneiro, com Planície, coleção onde se afirmariam algumas coordenadas da estética poética Neorrealista numa primeira fase, editou, em 1940, Rosa dos Ventos, obra pioneira do neorrealismo poético português, nascida do convívio com um grupo de jovens escritores, entre os quais Mário Dionísio, José Gomes Ferreira, Rodrigues Miguéis, Manuel Mendes e Armindo Rodrigues, unidos numa "obstinada recusa de ser feliz num mundo agressivamente infeliz, uma ânsia de dádiva total e o grande sonho de criar uma literatura nova, radicada na convicção de que, na luta imensa pela libertação do Homem, ela teria um papel estimável a desempenhar contra o egoísmo, os interesses mesquinhos, a conivência, a indiferença perante o crime, a glorificação de um mundo podre" (DIONÍSIO, Mário - prefácio a Obra Poética de Manuel da Fonseca, 1984, p. 21). Não existindo descontinuidade entre a poesia e a prosa de Manuel da Fonseca, nem entre ambas e o escritor, que as impregna de um cariz autobiográfico, alimentado por recordações da convivência com o homem alentejano, ficção e obra poética interpenetram-se na evocação de personagens, narrativas, romances, paisagens alentejanas. Mário Dionísio (id. pp. 32-33) vê na oposição cidade/vila, recorrente na obra de Manuel da Fonseca, a oposição entre o que é "apaixonado e violento, desgraçado e heroico, profundamente humano, grave, limpo" e o que é ridículo, repugnante, mesquinho, "de ambição medíocre, de preconceitos míseros, que desvirtuam e lentamente asfixiam uma imagem ideal de vida que, na poesia de Manuel da Fonseca, quase sempre se identifica com tudo o que a infância e a adolescência têm de ingénuo e generoso e transparente e que a vida embacia, adultera e destrói." Autor de uma obra ancorada na realidade e eivada de um apontado regionalismo, a escrita de Manuel da Fonseca ultrapassa a contingência histórica de que nasceu, por um enaltecimento da vida, compreendida como intrinsecamente livre das imposições, frustrações, mentiras e condicionamentos impostos pela sociedade, ânsia de libertação, simbolizada, por exemplo, na repressão sexual imposta a algumas figuras femininas ou na admiração de figuras marginais como o "maltês" ou o vagabundo. Cerromaior (1943), O Fogo e as Cinzas (1951) e Seara de Vento (1958) são algumas das suas obras mais emblemáticas.
                
Manuel da Fonseca. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. Disponível na www: http://www.infopedia.pt/$manuel-da-fonseca>.
                
                
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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html

 

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/28/os.olhos.do.poeta.manuel.da.fonseca.aspx]               

terça-feira, 27 de agosto de 2013

SÉTIMA CANÇÃO DA VIDA (Manuel da Fonseca)


   MANUEL DA FONSECA
             
                   
SETE CANÇÕES DA VIDA
SÉTIMA
          
Entontecido 
como asa que se abre para o azul
abarco a Vida toda
e parto
para os longes mais longes das distâncias mais longas
sei lá de que destinos ignorados!
Como pirata à hora da abordagem
grito e estremeço
liberto!
Grito e estremeço
perdido o sentido das pátrias
e a cor das raças,
livre para todos os caminhos dos homens!
Inebriado de posse
vou contigo, Vida,
como se fosses a minha namorada
e eu te levasse inteira nos meus braços!
Vida!
agora que comecei o poema que andava nos meus gestos
me arrepiava a carne e me tocava nos ouvidos como um eco,
tudo em mim grita a ânsia da largada: 
‑ os músculos, retesados nos braços prontos a todas as audácias,
os olhos jogados para a frente, jogados para a frente, 
e nas veias esta lava escaldante que corre e se dispersa 
com o rumor de mil milhões de abelhas saindo de mil cortiços 
para o sol!
             
Manuel da Fonseca, Rosa dos Ventos, 1940.
                  
                      
QUESTIONÁRIO SOBRE O POEMA
           
1. De entre as afirmações seguintes, identifique, através da alínea respetiva, a que melhor corresponde ao sentido do texto.
1.1. Ao longo do poema, o sujeito poético exprime:
a) O sonho da omnipotência
b) A euforia da liberdade
c) A partida para um destino concreto
1.2. A palavra “Vida” está com letra maiúscula porque:
a) É um substantivo comum
b) É um valor supremo para o poeta
c) Não se refere à vida terrena
1.3. Através da pontuação utilizada, o poeta revela:
a) Emoção
b) Revolta
c) Euforia
d) Indiferença
e) Desânimo
2. Retire do texto palavras do campo lexical de “totalidade”.
3. Escreva o sinónimo mais adequado para substituir cada um dos seguintes vocábulos do poema:
·         “entontecido” (v.1)
·         “abarco” (v.3)
·         “Ignorados” (v.6)
·         “inebriado” (v.14)
4. Refira antónimos de:
·         “abarco” (v.3)
·         “parto” (v.4)
·         “ignorados” (v.6)
·         “liberto” (v.9)
5. Estabeleça a correspondência entre as expressões e os recursos estilísticos:

·         Comparação

·         Apóstrofe

·         Personificação

·         Hipérbole

·         “como asa que se abre” (v.2)

·         “abarco a Vida toda” (v.3)

·         “vou contigo, Vida” (v.15)

·         “como se fosses a minha namorada” (v.16)
           
                  

INTERTEXTUALIDADE
         
Quando Jorge de Sena falava do «tom desataviado» da poesia de Manuel da Fonseca e do que nele terá desenvolvido «notavelmente as virtualidades humanísticas da liberdade expressiva criada por Álvaro de Campos e Alberto Caeiro» (in Líricas Portuguesas, 3ª série, Lisboa, Portugália Editora, 1958, p. 175), teria, segundo cremos, sobretudo em mente alguns textos de Rosa dos Ventos, de 1940, v. g., a última das «Sete Canções da Vida», em que é possível distinguir ecos da «Ode Marítima» («Como pirata à hora da abordagem / grito e estremeço / liberto! / Grito e estremeço / perdido o sentido das pátrias / e a cor das raças, / livre para todos os caminhos dos homens!», cuja presença se faz igualmente sentir em «Canção da Beira-Mar» (Rosa dos Ventos, 1940), (Compare-se, por exemplo, a segunda estrofe, «Que triste a nossa vida, / tudo temos: / barcos, remos e tripulação, / só nos falta partir…», com esta passagem da ode de Campos: «Ah, seja como for, seja para onde for, partir! / Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar, / Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstracta […»], ou ainda «Domingo» (idem), atrás do qual se desenha como intertexto «Adiamento» (O. P., pp. 368, 369), também de Campos, e de que Manuel da Fonseca poderá ter tido conhecimento através do nº 1 de Solução Editora, de 1929, sendo, todavia, impossível que do poema que começa «Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros», incluído pela primeira vez nas Poesias de Álvaro de Campos, de 1944, lhe tenha vindo qualquer sugestão inspiradora. De resto, o «domingo» também está presente em «Adiamento» («Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana. / Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…»), e é o programa que o sujeito aí, amarga e ironicamente, delineia («Depois de amanhã serei outro, / A minha vida triunfar-se-á») que se projeta, diluída, no entanto, a ironia, na «tenção» que anima o eu poético no texto de Rosa dos Ventos («Quando chega domingo, / faço tenção de todas as coisas mais belas / que um homem pode fazer na vida»; «Domingo que vem, / eu vou fazer as coisas mais belas / que um homem pode fazer na vida!»). Mas, pegando numa expressão que Maria de Lourdes Belchior utilizou a propósito de Joaquim Namorado, podemos dizer que a «sombra bruxa» que ronda os versos de Manuel da Fonseca, e muito especialmente os de Planície, o livro com que colabora no Novo Cancioneiro, é, não a de Caeiro ou Campos, mas, soberanamente, a do verbo bruxo e envolvente de Federico García Lorca (Cf. Manuel Simões, Garcia Lorca e Manuel da Fonseca – Dois Poetas em Confronto, Milão, Cisalpina-Goliardica, 1979).
               
Fernando J. B. Martinho, Pessoa e a Moderna Poesia Portuguesa (Do Orpheu a 1960)
Lisboa, ICLP, Coleção Biblioteca Breve, vol. 82, 1983, pp. 82-83.
                
                
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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html

 

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                  

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/27/setima.cancao.da.vida.manuel.fonseca.aspx]