LISBOA
AINDA REVISITADA EM 70!
Um pouco de sopa
uma posta de garoupa.
Mais uma vez
os alegres cadáveres do costume
e outra vez...
olha o Simões... olha o Armindo
é lindo... é lindo
(por favor
dá-me aí o RATOFINDO)
sô barbeiro
olhe que esqueceu a «pedra nua»
A ponte sobre o Tejo
(viva mais uma ode genial)
Que tal? Que tal?
Quando a vir pela primeira vez
vou com certeza ter saudade
do tempo em que acreditava
que nunca teria que rever
um trambolho
com molho
português,
o molho ribeirinho habitual.
Olha, o melhor parece ser
um pouco mais de sopa
e — porque não? — outra posta de garoupa.
Mário Henrique
Leiria
POIS...
Há anos que venho afirmando,
sempre tenho dito
que, afinal,
Portugal
é que é o país do cadáver esquisito
que esquisitice a do Simões
que beleza de antiguidade a do Tareco
e aí vamos nós
bebendo, sapientes, nos salões
da Natália...
e viva a PORTUGÁLIA
que aqui, no Brasil,
edita e propaga o Alves de Arganil
Montes de propostas desonestas
têm sido feitas ao cadáver.
Chamam-lhe periquito
tão bonito... tão bonito...!
ou convidam-no — com dignidade
para festas
com o Simões... claro, com o Simões
...como deve estar namora
esse Simões!
Isto de ser o tal
cadáver esquisito
só mesmo
em Portugal.
Um pouco de sal
e Soyo — o molho japonês —
couves — muitas —
Remexer e ficar com as orelhas
e voltar a Portugal
para assistir ao entremês... final.
Mário Henrique
Leiria
|
Grupo Surrealista de Lisboa |
MÁRIO HENRIQUE LEIRIA que, quase desde o início
esteve ligado ao Grupo Surrealista Dissidente, tendo feito parte das
experiências do Cadáver Esquisito, só na década de 70 começa a publicar os seus
livros, tendo até essa data colaborado, mais ou menos esporadicamente em
jornais e revistas.
Há um poema-colagem
datado de 1949, que circulou apenas numa folha volante73 e
que, pela sua riqueza irónica e imagística, merece ser reproduzido na íntegra:
«AVISO
FOI
PRESO
PELA
LEGIÃO ÁRABE
UM
ARISTIDES
DE
CABELOS DE CRISTAL
QUE
FOI O
AUTOR DA MORTE
DE
480
CRIANÇAS
COM
BETUME
JUDAICO
E
ZARCÃO
INGLÊS
A
SETENÇA
SERÁ
UM
GRANDE ÊXITO
PELO
EMPREGO JUDICIOSO DAS CORES».
A
sua obra literária é, quase na totalidade, formada por poemas e pequenos textos
que narram casos insólitos, com um estilo bastante sui generis.
Dos
poemas, só uma pequena parte foi publicada em livro: Imagem Devolvida — Poema
Mito74. Mário Cesariny de Vasconcelos trouxe ainda a público
alguns textos de dois livros inéditos: 6 poemas de Climas Ortopédicos75 e
cinco de Claridade Dada pelo Tempo76.
Ao analisarmos as
características surrealistas na poesia de Mário Henrique servimo-nos,
evidentemente, do material publicado, do Espólio existente na Biblioteca
Nacional e dos poemas inéditos de Climas Ortopédicos (Dez.
1949-Jan. 1950) e de Claridade Dada pelo Tempo (Nov. 1951)77.
Estes
textos, datados entre 1949 e 1951, possuem inegáveis traços surrealistas. São
inúmeras as imagens tipicamente bretonianas que encontramos em Climas
Ortopédicos:
«O
amor feito de noite
ao
som metálico
de uma orquídea vermelha
é a estrada uivante
que se enrosca em tranças
de animais marinhos
(...)
Os
teus olhos
são
a COLOSSAL PIRÂMIDE
por
onde sobem Vermes»78.
«Entre
a bicicleta e a laranja
vai
a distância duma camisa branca»79
ou
«Eu
sei que as túlipas
são
os olhos de todos os aviões perdidos
Eu
sei que as cidades
são
os esqueletos das aves de rapina»80
«Qualquer
encontro
entre
mim
e
a tua égua aquática
é sonho
mas verdade
feita de eco nostálgico e
tábuas
de engomar longínquas»81.
Em Claridade
Dada pelo Tempo, Mário Henrique Leiria assume directamente uma filiação
bretoniana ao apor uma transcrição de L'Amour Fou: «La beauté sera
erotique — voillé (sic) explosante — fixe, magique — circonstancielle ou ne
sera pas...» Apesar de tudo, porém, os poemas não se ressentem tanto da
influência surrealista como os de Climas Ortopédicos. Deparamos, apenas,
com uma ou outra imagem que nos remete para a lição de Breton:
«em
creança aprendi
a
olhar a lua distante
mar
ignorado da memória
— lâmina aguda e
extremamente
fina —
a
grande aranha do tempo
duas
asas sono que
nos
foi dado outrora»82.
Em Imagem
Devolvida há uma afirmação bem característica dos ditames surrealistas:
«posso
desde já afirmar que há dois corpos
ligados
por uma vara metálica vibrando
constantemente
digo entre o deserto
e
um rosto
de
criança morta»83.
Mas, como já vem
sendo hábito, as metáforas que designam a mulher são sempre das mais ousadas e
onde a distância entre os dois termos é maior. Num texto, inédito, «autorretrato
telegráfico»84, ela é designada com os mais espectaculares
atributos:
«(...)
meu
pequeno e carinhoso motor diesel
(...)
meu
avião de jacto
perdido
ao jogo de dados
meu
caranguejo-tigre
minha
mala-infância
meu
vento-mulher
(…)»
O poema «resultado
inesperado» de Climas Ortopédicos 85 é uma espécie de dissertação sobre
o homicídio. O tema é tratado de um modo aparentemente neutro, onde não falta o
humor negro e a crítica aos valores vigentes:
«Anuncia-se
frequentemente
em
todos os jornais
que
por uma insignificante quantia
qualquer
pessoa
pode
cair dum andaime
(...)
Uma pequena dose de ácido nítrico,
duas colheres de manteiga
e asas de morcego, quanto baste.
Temos
aqui a solução que não é
decerto
a esperada mas que, apesar de tudo,
serve
perfeitamente.
Quem
diria!!»
Apensa a Climas
Ortopédicos vem uma SEPARATA GRATUITA, intitulada «antropofagia»86, com
a data de 27 de Outubro de 1951. Pelo título se adivinha facilmente o tema, que
goza de uma certa fortuna no movimento surrealista português. O poema limita-se
a ser uma enumeração das partes do corpo e da ordem por que vão sendo comidas.
«ao
almoço come-se a perna
(...)», etc.
O seu interesse
reside sobretudo na estranheza do tema e na naturalidade com que ele é tratado.
Imagem Devolvida surge-nos repleta
de frases que revelam um voluntário automatismo de escrita que vai até à
enumeração totalmente desmotivada:
«equivalência
devolvida com rapidez
o
elevador bem sei
mas
mesmo assim
automaticamente
verdadeira
fonética
seguida pelos pássaros
A
LUA
A
LUA AZUL
janela(L)
e(U) rosto(A)»87.
e
«estrada
garganta carta asa; navio esfera engano
talvez
relógio-de-sol cogumelo estação árvore
(...)»88
|
Claridade dada pelo tempo, Mário Henrique Leiria,
1950-1951. Ilustração de Cruzeiro Seixas |
***
O
JOGO NA LITERATURA DE MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA
Mário-Henrique Leiria foi artista
plástico, escritor, tradutor, entre muitas outras atividades, tendo falecido em
1980, com apenas 57 anos. Deixou publicada uma breve e incisiva obra, sendo
mormente conhecidos pelo público os seus dois volumes de contos, embora existam
outros registos de criação artística, muitos deles mantendo-se inéditos até aos
dias de hoje.
O
seu envolvimento no seio das atividades do grupo surrealista, de 1949 a 1951,
permitiu-lhe experienciar «o jogo enquanto fórmula de criação coletiva
genuinamente surrealista»,1 repercutindo-se o mesmo na sua produção
artística pessoal e coletiva sob diversas formas:
no processo de escrita automática; em jogos de pergunta-resposta, e de
manipulação de textos populares; em projetos para espetáculos que incluem jogos
poéticos realizados em interação com a assistência; em colagens e em
inventários; em jogos de interpretação de sonhos e na apresentação de projetos
irracionais de diversão.2
Ainda
durante o período em que se considerou surrealista, e opondo-se ao servilismo e
à arte propagandística vigente, Mário-Henrique teve a oportunidade de
participar3 no mais disseminado dos jogos surrealistas (de origem francesa – le
cadavre exquis), praticado nas suas
expressões plástica e literária. Consiste o mesmo em compor uma frase ou um
desenho de papel que se entrega parcialmente ocultado a outra pessoa para que
esta, sem ter conhecimento da totalidade previamente desenhada ou escrita, continue
livremente a obra.
A par destas experiências, a
temática do jogo está bastante presente na obra literária leiriana. Alguns dos
textos mais representativos serão aqui analisados, visando pensar neles este
conceito.
Principie-se
então esta análise recuperando algumas considerações de Johan Huizinga tecidas
em Homo
Ludens,4 onde é afirmado que o ato de jogar é não só
inato ao homem, como é também a própria
mola impulsionadora do desenvolvimento da civilização.
Huizinga enuncia diversos aspetos
do ato de jogar, dentre os quais se destacam o facto de este se reger por
regras próprias e de implicar mudança, alternância e movimento em múltiplas e possíveis
direções.
Englobando esta perspetiva um
carácter contingente, lúdico e instrutivo do jogo, aventa-se que o jogo leiriano, sob as suas
múltiplas facetas, apresenta-se enquanto estratégia artística que rompe com
determinada conceção (racionalista) da realidade, lançando algumas sementes de
criatividade e de rebeldia singulares, que deram e continuam a dar um
contributo importante para uma mudança no panorama cultural nacional. Através
da literatura, o autor enceta um jogo com o poder autoritário, jogo do qual são
percetíveis inúmeras variantes combinatórias.
Estas
variantes são passíveis de se enquadrar nas divisões que Roger Caillois
estabelece em Les jeux et les hommes,5 caracterizando o jogo no homem de acordo com o papel da
competição (agôn), da sorte (álea),
do simulacro (mimicry) ou da vertigem
(ilinx). Delas serão apresentados, seguidamente,
exemplos ilustrativos na obra leiriana.
A par da utilização direta e
explícita da palavra jogo, existem na obra de
Mário-Henrique Leiria textos que aludem à prática do mesmo.
Sob
a forma de competição (agôn), por exemplo, é bastante
frequente a evocação de jogos de xadrez, que amiúde serviram também de motivo
na expressão plástica de artistas surrealistas. Deste modo, um título sugestivo
é Xeque-mate,6
termo que ilustra o final desse mesmo conto, constituindo o resultado de um
longo e entediante jogo de xadrez entre
o narrador e um passageiro anónimo, durante uma viagem de comboio. No final,
após o término do jogo, o narrador põe termo à viagem do seu adversário,
dando-lhe um empurrão para fora do comboio. A prática do xadrez é igualmente referenciada
no conto Jantar de amigos,7 que decorre no restaurante «Quatro ases» e onde
acontece um envenenamento coletivo, sendo Guilhermino, o xadrezista, um dos
envenenados.
Estes exemplos preliminares
ilustram já uma característica transversal a toda a obra leiriana: a recorrente
presença de jogos que metaforizam situações de relacionamentos humanos, isto é,
jogos de linguagem que frequentemente são usados como veículo de comunicação e
transposição entre a ficção e a realidade. […]
Em suma, a palavra adquire
sentidos distintos em contextos específicos, sendo o(s) significado(s) da mesma
estabelecido(s) pelo uso que lhe é dado num determinado jogo de linguagem.
A abordagem que se segue a alguns
escritos leirianos centrar-se-á na análise de jogos de linguagem nos quais
estão presentes três fatores essenciais: o visual, através das imagens
evocadas; o auditivo, pelo ritmo e pela sonoridade; e a significação.
Ler
mais em: “O jogo na literatura de Mário-Henrique
Leiria”, Marta Braga. In: O Jogo do Mundo, coord. Margarida Alpalhão, Carlos Carreto
e Isabel Dias. Lisboa, IELT - NOVA FCSH, 2017, pp. 145-168.
SOBRE A LITERATURA SURREALISTA EM PORTUGAL
Para se avaliar a literatura
surrealista não se pode nem deve desprezar a sua relação com as artes
plásticas. As maiores manifestações públicas do efémero Surrealismo português
passaram-se em exposições. Muitos dos autores de que falámos são também e
predominantemente pintores. Ousaria até afirmar, apesar de isso sair
completamente do âmbito do presente estudo, que a pintura surrealista, em
Portugal, é mais sólida do que a literatura ou que, em geral, mais surrealismo
nos quadros do que nos poemas e prosas de ficção.
O desfasamento
espácio-temporal em relação ao movimento francês, o diferente ambiente político
nos dois países (o que faz com que a um vivo posicionamento político em França,
sobretudo no Second Manifeste, corresponda um certo retraimento em
Portugal) e o peso da tradição literária portuguesa nos fins da
década de 40 não permitiram que o surrealismo português fosse além de algumas
manifestações que se concentraram principalmente em dois ou três anos. A partir
daí é mais importante a influência exercida por Cesariny ou António Maria
Lisboa nos poetas mais novos do que a consciência de estar a praticar uma
poética surrealista.
CARACTERÍSTICAS DA PINTURA SURREALISTA
•
origem do Surrealismo nos anos posteriores à 1.ª Guerra Mundial, tendo como
primado a afirmação do indivíduo na sua verdade interior;
•
afirmação do Surrealismo com a publicação do Manifesto do Surrealismo (1924) por André Breton;
•
movimento que defende a liberdade individual e a exploração do inconsciente;
•
gosto pela representação do mistério, do inverosímil e do insólito como
recursos criativos, e pela ambiguidade do significado;
•
reconhecimento das ideias de Freud e do método da psicanálise como meio de, a
partir do inconsciente, se chegar à verdade de cada indivíduo;
•
utilização de uma linguagem figurativa realista em composições incongruentes e
bizarras;
•
utilização a nível plástico de técnicas do Cubismo e do Dadaísmo, como colagem,
assemblage, frottage e decalcomania;
•
aplicação do automatismo psíquico como criação imediata, espontânea e
aleatória;
•
criação em estado semi-hipnótico, sob influência do álcool, da fome ou da
droga;
•
temática inspirada no onírico e no erotismo;
•
preferência pelo mundo da magia;
•
criação de paisagens amplas, ambíguas e irreais ou de espaços vazios, habitados
por figurações estranhas, com símbolos e signos diversos – astrais, animais,
vegetais.
Exame
Nacional de História da Cultura e das Artes, 11.º Ano de Escolaridade
(Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Critériosde classificação da prova724, 1ª fase. IAVE, 2015.