quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Homenagem a Ana Hatherly (1929-2015)




Rolam tumultuosas mas lentamente
as letras para sua própria ordem
por imposição incendiária de montanhas
de rios e de cidades.







Postal de Ana Hatherly para José Maria de Aguiar Carreiro, 2005.



quarta-feira, 5 de agosto de 2015

PALAVRAS PARA QUÊ? (manifestos em 1992)


Palavras Para Quê?, Lisboa, Galeria São Bento 34, 1992.
Organização de Nuno Artur Silva.

































































terça-feira, 4 de agosto de 2015

A pedregosa luz da poesia (Silvina Rodrigues Lopes)


Pensar a poesia é que nos propõe Silvina Rodrigues Lopes na série A Luz como Meio e Limite, sob orientação de Pedro Lapa, professor universitário e director artístico do Museu Colecção Berardo.
Falar de poesia é afirmar, postulando-o imanente ao viver humano, um exercício da linguagem que excede o seu uso instrumental. De outro modo: é referir-se ao que no humano é acção criadora, decidir-agir irredutível ao cálculo ou ao controle final.
Não há tempos nem espaços destinados à poesia (ao habitar poeticamente), nem alguma vez se está em solidão absoluta, pois os outros entram sempre nas palavras que se dizem, no que se vê e sente. Mas não podemos deixar de distinguir diferentes espaços de manifestação do viver, que, simplificando, constituem o espaço íntimo e o espaço público, os quais se conectam pelo amor que, vindo do íntimo, sustenta o mundo e a sua renovação. A filosofia, as artes, a ciência e a política existem no espaço público, participando da habitação do mundo de distintas maneiras. Por nelas não haver objectivos que se coloquem em primeiro plano, nem sequer os de criação, invenção de matrizes ou prescrição de orientações, as artes constituem excepção.
Pensar a poesia como uma das artes implica afastar os clichés que a cercaram até à modernidade — poesia como emanação de verdades adquiridas por contemplação ou inspiração; poesia como fornecimento das ditas verdades através do instruir divertindo — e os que, depois, se colocaram pretendendo ainda tornar explicáveis as formas infinitas, isto é, intensas e irredutíveis a uma extensão, a um conjunto de propriedades. Trata-se do exceder do fechamento das formas. Reconhece-se a posse de méritos aos heróis, aos mestres e aos trabalhadores, mas esses méritos nada são humanamente sem a poesia — suplemento heterogéneo, afirmação incondicional que sustenta o axioma de igualdade dos humanos, o da singularidade de cada um, da sua insubstituibilidade.
Na modernidade literária, a poesia deixa de poder ser apresentada nos termos humanistas de “farol da humanidade”. Aprende-se a entendê-la com a humildade do sentir-pensar, nunca inteiramente luminoso ou escuro, mas em deslocação entre os dois pólos que se desdobram em infinitas nuances, sem que nenhum deles prevaleça. A atenção à linguagem na sua materialidade expõe-na como múltipla e heterogénea, criadora de descontinuidades que contrariam as forças burocratizantes e despóticas. Encontram-se razões de escrever, razões de um certo agir: o resistir que incita a resistir à abdicação de viver. Não pela proposta de algo exemplar, a imitar, mas pela afirmação do incomensurável — alegria e inquietude, libertação do peso do passado colocado como sol esmagador e luz única, invenção da memória na (com a) qual se pensa.
Ao associarmos a casa, que para os humanos é o lugar de habitação que configura o íntimo, à guarda do fogo como passo decisivo do fabrico de instrumentos e dispositivos destinados à subsistência e à autoprotecção, vemos como a luz do fogo, ou o fogo da luz (relâmpago), abre a inexorável passagem entre a autopreservação e o exterior, que não é apenas o espaço do perigo, mas também o de forças errantes. Casa de um viver em comum, o mundo tem virtualmente exterior, caos, memórias, dentro de si.
Leia-se este poema de Carlos de Oliveira:
Casa
A luz de carbureto
que ferve no gasómetro do pátio
e envolve este soneto
num cheiro de laranjas com sulfato
(as asas pantanosas dos insectos
reflectidas nos olhos, no olfacto,
a febre a consumir o meu retrato,
a ameaçar os tectos
da casa que também adoecia
ao contágio da lama
e enfim morria
nos alicerces como numa cama)
a pedregosa luz da poesia
que reconstrói a casa, chama a chama.

A irrupção do caos dá-se a partir de uma certa luz, a luz feita de pedras (carburetos) que no pátio da casa, no átrio do poema, permite a perceptibilidade do que se experiencia operando a sobreposição de sentidos. Ela permite a organização de sensações desencontradas e põe à prova ideias e desejos, numa completa abdicação de estabelecer o que quer que seja. Abdicação da palavra de ordem. Despojamento. As linhas que o poema traça são de simbiose entre tipos de sensações reconstruídas, inventadas, que nascem de associações virtuais — cheiros, palavras, ideias, imagens descontínuas — desencadeadas pela pregnância do que ferve, uma luz ficcional através da qual o poema é endereçado ao mundo. Essa luz atravessa meios, sensações, que a tornam cintilante, descontínua, dando a ver significação e opacidade dos significantes que guardam o fogo (luz), enquanto pensar-sentir, fidelidade ao viver em comum.
Do fogo das pedras à pedregosa luz da poesia, a luz escrita desencadeia um movimento desenquadrante: ela não dá a ver com nitidez imagens de um presente passado, mas envolve uma forma-poema, “este soneto”, “num cheiro de laranjas com sulfato”. Por outro lado, tal como a luz do gasómetro persiste apenas na reacção química, também a luz da poesia apenas persiste na renovação de si. Não pedra sobre pedra, como seria a renovação da casa ficcionada, mas no fulgor das chamas, excesso de proximidade da matéria, que o manuseador de fogo, o poeta, equilibra na coluna breve de palavras. No poema, o rasto de luz da ficção é cortado em versos pedregosos, separados e ligados pelos intervalos que os iluminam. De uma palavra a outra palavra (matéria de que são feitos o poema e a sua leitura) há a chama, o chamar da chama. É pois já indecifrável que a palavra se entrega à decifração.
Ser afirmação, sem enquadramento de luz, teoria ou ficção que a contenha, é a condição da poesia (da arte), porque não há nada antes dela como relação ao outro — nada a testemunhar, nada a declarar, nada a comunicar. Ela é instauradora de relações outras que não as de poder, pois dirige-se a um povo que falta (como escreveu Klee), dirige-se a novas possibilidades de viver em comum, que começam na resistência a verdades feitas, a ficções petrificadas. A resistência à imagem do passado como necessidade que traça o futuro é a face perceptível da afirmação da intensidade febril da memória, da sua não comensurabilidade, que impede que tudo se reduza ao útil e ao imitável. Frágeis e mortais, os humanos são-no como os insectos, mas a luz da razão que lhes serve de instrumento de sobrevivência é também a possibilidade de se protegerem do automatismo e de olharem os outros chama a chama.
Silvina Rodrigues Lopes é professora catedrática de Estudos Portugueses na FCSH. É co-directora da revista Intervalo. Escreveu vários livros, nomeadamente: A Legitimação em Literatura, Teoria da Despossessão, Aprendizagem do Incerto, Literatura Defesa do Atrito, A Anomalia Poética, Exercícios de Aproximação, E Se-para, Tão Simples como Isso, Sobretudo as Vozes



segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Uma Nova Geração de Poetas




Num artigo recente, assinado por Luís Miguel Queirós e Carlos Câmara Leme (Público, suplemento Mil Folhas, 29 de Março de 2003), procurava-se testar a "hipótese de estarmos a assistir, sensivelmente desde meados dos anos 90, ao aparecimento de um conjunto de poetas que, com tudo o que os distingue uns dos outros, corporizam uma geração, no sentido forte do termo". Significativamente, a quase totalidade dos poetas referenciados tinha nascido depois de 1965, tendo, na generalidade dos casos, começado a publicar apenas na segunda metade da década.

“Reencontrar o leitor” - ensaio de Rosa Maria Martelo sobre NOVA POESIA PORTUGUESA para a revista RELÂMPAGO n.º 12.  4|2003.






O interesse pela poesia é, em Portugal, algo da ordem do milagre, afirmou há um par de anos, numa entrevista ao PÚBLICO, o ensaísta Eduardo Lourenço, bem colocado para traçar comparações com o mercado editorial francês. Um fenómeno que não só não abrandou, como parece estar a intensificar-se nestes anos inaugurais do século XXI. As editoras publicam novos títulos a um ritmo alucinante, surgem novas colecções de poesia, as revistas e jornais dedicam "dossiers" aos poetas mais jovens e regressaram em força as antologias da "novíssima" lírica portuguesa, para já não referir outros sinais exteriores igualmente sintomáticos, como a recente querela entre críticos ou o facto de a polémica em torno da antologia "Século de Ouro" ter chegado ao Parlamento, episódio porventura sem precedentes na história da cultura ocidental. 
Face às décadas anteriores, o que parece distinguir o momento actual é a emergência de uma genuína nova geração de poetas, algo que só seria possível encontrar, defendem alguns, remontando aos anos 70, se não à década anterior. O PÚBLICO quis saber o que pensam os críticos da hipótese de estarmos a assistir, sensivelmente desde meados dos anos 90, ao aparecimento de um conjunto de poetas que, com tudo que os distingue uns dos outros, corporizam uma geração, no sentido forte do termo. Ouvidos ensaístas de idades, percursos e registos diversos, boa parte deles também poetas, verifica-se que quase todos aceitam a tese, ainda que o consenso comece a esboroar-se quando se trata de discutir o mérito desta nova poesia, ou de lhe traçar as linhagens, ou ainda de assinalar quais serão os seus protagonistas mais revelantes. 
Entre os que defendem com maior empenho a vitalidade dos anos 90, por contraste com uma década de 80 alegadamente mais pobre e incaracterística, encontram-se dois críticos que integram, enquanto poetas, a geração em causa: Pedro Mexia e José Ricardo Nunes. Ao passo que Mexia defende que a poesia actual "sai directamente dos anos 70", saltando, "como um cavalo no xadrez", sobre a década seguinte, já o segundo, mesmo aceitando que há, nos poetas de hoje, "muita melancolia e muito hiper-realismo", defende que "os melhores são os que fogem um bocado a esses escolhos". 
Ainda assim, quando ambos apontam os poetas de revelação recente que mais apreciam, mostram-se sintonizados no comum apreço por dois autores: Rui Pires Cabral (n. 1967), que se estreou em 1994 com "Pensão Bellinzona & Outros Poemas" e cujo último livro, "Música Antológica & 11 Cidades" (Presença), data de 1997, e Carlos Luís Bessa (n. 1967), cujo primeiro título a solo é "Legenda", de 1995, e que publicou ainda "Termómetro. Diário" (1998) e "Lançam-se os Músculos em Brutal Oficina" (&etc., 2000). Ambos aparecem também na recém-lançada antologia "Poetas sem Qualidades" (Averno, 2002), organizada pelo poeta e crítico Manuel de Freitas. 
O nome de que Mexia se sente "mais próximo" é o de Luís Quintais (n. 1968), que ganhou o prémio Aula de Poesia de Barcelona com "A Imprecisa Melancolia" (1995), e que, desde então, publicou já mais quatro títulos, o último dos quais, "Angst" (Cotovia), saiu em 2002. Mas refere também os primeiros livros de José Tolentino Mendonça (n. 1965), embora ressalvando que a poesia do autor "tem alguns perigos à espreita", designadamente "um estilo amaneirado" que o crítico considera "tributário do lado mau de Eugénio de Andrade". Recorde-se que o prefácio do último livro de Tolentino Mendonça, "De Igual para Igual" (Assírio & Alvim, 2001), é assinado pelo poeta de "As Mãos e os Frutos". 
José Ricardo Nunes acrescenta à breve lista das suas afinidades electivas o próprio Pedro Mexia (n. 1973), autor de "Duplo Império" (1999), "Em Memória" (Gótica, 2000) e "Avalanche" (Quasi, 2001). E Mexia destaca também Jorge Gomes Miranda (n. 1965), que editou três títulos de poesia - "O que Nos Protege" (Pedra Formosa, 1995), "Portadas Abertas" (Presença, 1999) e "Curtas-Metragens" (Relógio d'Água, 2002) - e é ainda autor daquela que teria sido a primeira visão panorâmica da sua geração literária, "Tráfico: Antologia da Nova Literatura Portuguesa", realizada por encomenda da Porto 2001, que, inexplicavelmente, ainda não fez sair a obra. Além de se debruçar também sobre os novos ficcionistas, dramaturgos e ensaístas, o volume, com uma extensa introdução de cerca de uma centena de páginas, estuda e selecciona boa parte dos poetas aqui referidos, e ainda alguns que nenhum dos críticos ouvidos citou, como José Miguel Silva (n. 1969), autor de "O Sino de Areia" (Gilgamesh, 1999) e "Ulisses já não Mora aqui" (&etc., 2002). 
No que Mexia e José Ricardo Nunes estão mesmo de acordo é na convicção de que a poesia portuguesa atravessa um momento alto. "Há de facto uma nova geração", garante o segundo, "uma fornada com mais autores e mais qualidade do que a dos anos 80". Mexia confirma. Os poetas mais recentes, diz, revelam um tom comum, cujo "traço marcante tem a ver com a revalorização daquilo a que em Espanha se chamou 'poesia da experiência'" e que resulta numa "poesia de recuperação da banalidade, do quotidiano, da experiência urbana, de um certo pessimismo". 
Autor de um volume de ensaios dedicado a "9 Poetas para o Século XXI", onde aborda detalhadamente a poesia de vários dos autores aqui referidos, e ainda a de Paulo José Miranda (n. 1965), João Luís Barreto Guimarães (n. 1967) e do precocemente desaparecido Daniel Faria (1971-1999), José Ricardo Nunes reconhece que "a palavra 'realidade' é talvez a que mais continua a interpelar-nos, quando olhamos para este conjunto de poetas". No entanto, nota que, se alguns deles optam por "discursos melancólicos e crepusculares, nos quais se tem encenado o adeus e a perda", outros recorrem a "discursos mais combativos e desmistificadores". 
O poeta e ensaísta Gastão Cruz também acha que a poesia portuguesa mais recente aposta naquilo a que chama "um mergulho no real" e que é devedora do modo como alguns poetas dos anos 70 procuraram romper com a sua própria geração. Mas está longe de partilhar do entusiasmo crítico de Mexia e Nunes e receia que o programa da poesia dita da experiência esteja a resultar, em muitos casos, "numa tendência para a facilidade de escrita". Evitando apontar exemplos, por julgar que "é uma coisa um bocado generalizada", Gastão Cruz crê que se está a "descurar o esforço de transfiguração do quotidiano através da linguagem", em prol de uma abordagem "mais imediata, que não recua perante a pequena crónica do centro comercial, do bar ou do supermercado" e que não oferece a possibilidade de "uma leitura menos literal". 
Um juízo que a ensaísta Rosa Maria Martelo, responsável pelo capítulo relativo à poesia dos anos 90 na "História da Literatura Portuguesa" que a Alfa vem publicando, parece pôr em causa, quando sugere que este "tom menor" se articula "com a auto-apreensão de uma subjectividade que se diria procurar ainda nas pequenas coisas uma experiência de infinitude capaz de suspender a permanente disseminação de um mundo plural, sem centro e sem limites". 
Num ensaio que aborda um grande número de poetas e que procura demonstrar a coexistência de diversas linhas dominantes na poesia dos anos 90 - recusando a ideia de que a temática da melancolia funcionaria como uma espécie de mínimo denominador comum -, Rosa Maria Martelo vê como uma das prováveis "marcas distintivas da poesia portuguesa recente" aquilo a que, citando um artigo de Eduardo Prado Coelho sobre Pedro Mexia, chama "o olhar que precede o discurso". Será a passagem de uma poesia que "parecia esperar que a linguagem dotasse o sujeito de um novo olhar" (a frase vem a propósito de um poema de Luiza Neto Jorge) para uma nova relação entre estes mesmos termos, na qual se diria "ser da interacção olhar/mundo que se espera ver surgir uma nova linguagem". 
Também Gastão Cruz, de resto, embora sublinhe o que lhe parecem ser as fragilidades de muita da poesia actual, admite que o cenário comporta excepções. Nas "gerações mais jovens" destaca, além do já desaparecido Luís Miguel Nava, dois poetas dos anos 80, Paulo Teixeira (n. 1962) e Fernando Pinto do Amaral (n. 1960), e outros dois da década seguinte, Luís Quintais e Tolentino Mendonça. Recorda também a estreia tardia de Manuel Gusmão (n. 1945), que considera "uma das grandes revelações dos anos 90", e acrescenta: "Não podemos esquecer que alguns dos poetas que asseguraram a melhor produção desta década são de gerações anteriores, como Pedro Tamen, Fiama, Armando Silva Carvalho e Franco Alexandre, ou ainda Ramos Rosa e Eugénio de Andrade, que mantêm o seu alto nível." 
Olhar não menos céptico sobre a produção dos poetas mais recentes é o de Osvaldo Silvestre, ensaísta e co-organizador da já referida antologia "Século de Ouro", que vê na generalidade do que estes escrevem "alguma debilidade discursiva". O que estes últimos anos trouxeram, segundo Silvestre, "foi a força de alguma afirmação geracional, quase toda ela em torno da editora Quasi e com a novidade da sustentação crítica, sobretudo de Pedro Mexia, a que haveria que somar ultimamente Manuel de Freitas, enquanto poeta e crítico". 
Com estes dois nomes, e ainda com José Ricardo Nunes, "mas este menos publicamente empenhado", a geração actual, defende o ensaísta, "tem os tenores que as dos anos 80 ou 90 não tiveram, já que os candidatos a esse papel, e acima de todos Fernando Pinto do Amaral, rapidamente se deslocaram para um espaço crítico transgeracional". 
Se aprecia o que escreveram nos anos 90 autores como Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho, Manuel António Pina, António Franco Alexandre, Vasco Graça Moura, Fernando Guerreiro ou Adília Lopes, entre outros, já dos poetas que se estrearam nos anos 90, Silvestre destaca apenas um nome: Daniel Faria. Está em sintonia com o poeta e ensaísta Manuel Gusmão, que, "a partir da antologia da Quasi", afirma ter sido este um dos poetas que o surpreendeu. Refere-se ao volume "Anos 90 e Agora", de Jorge Reis-Sá, entre cujas "revelações mais interessantes" Rosa Maria Martelo aponta ainda Carlos Saraiva Pinto, que, nascido em 1952, só se deu a conhecer em 1997, com "Viajante Transitório" (Tema), a que se seguiu "Escrever Foi Um Engano" (O Correio dos Navios, 2000). 
Manuel Gusmão aproxima-se desta ensaísta e de José Ricardo Nunes na convicção de que nem todos os caminhos da nova poesia portuguesa passam pela melancolia. Notando que esta menção se tornou quase "um outro nome para o pós-modernismo", pensa que "a melancolia ou é um chapéu de chuva demasiado largo ou demasiado estreito, e alguns poetas ficam de fora dele". Não deixa de ser curioso que, a título de exemplo, aponte o autor de "A Imprecisa Melancolia", Luís Quintais. 
Admirador de Joaquim Manuel Magalhães não apenas enquanto crítico, mas também como poeta - qualidade em que o crê subestimado -, Gusmão encara com algumas reservas o modo como muitos têm procurado aproximar a sua obra da poesia dos autores mais novos. Lembrando que, desde "Os Dias Pequenos Charcos" (1981), a poesia de Magalhães associa a "um saber prosódico muito nítido" uma "vontade de violência"; e, sublinhando que o recente "Alta Noite em Alta Fraga" (2001) é "um livro que incomoda, um livro onde a experiência do mundo é uma experiência violenta", Gusmão sugere que podemos estar perante algo que é "um reverso do consenso em torno da generalizada qualidade média da poesia portuguesa". E é justamente essa "qualidade mediana" que lhe parece perigosa. "Não sei se é falta de exigência ou falta de pujança." 
Mais optimista mostra-se o ensaísta e tradutor João Barrento, que, no extenso texto com que respondeu ao pedido de um depoimento sobre a poesia portuguesa actual - espera-se que em breve o publique na íntegra -, detecta, além de vários outros nomes "significativos", seis autores cuja voz própria os torna "casos ímpares": Manuel Gusmão, Paulo Teixeira, Fernando Guerreiro, Daniel Faria, Adília Lopes e Manuel de Freitas. Este último, enquanto poeta, estreou-se já em 2000, com "Todos Contentes e Eu Também" (Campo das Letras). Desde então publicou mais seis títulos, sendo os últimos, todos de 2002, "Game Over" (&etc.), "[sic]" (Assírio & Alvim) e, em edição de autor, "Levadas". 
Numa inventariação das diversas linhagens onde "os novíssimos vão ainda beber", Barrento associa este poeta a Herberto Helder e ao "filão, fortíssimo, da 'vocação animal' do poema, omnívoro e violento", afirmando que Manuel de Freitas "soube, melhor do que nenhum outro, cruzar e superar a 'lição' de Herberto (socializando-lhe o essencialismo visceral) com a visão crua, quase apocalíptica, do real que vem dos inícios da década de 80 e de Joaquim Manuel Magalhães". 
Outros "filões" que o ensaísta vê ainda darem fruto são o elegíaco, que "no seu melhor surge em livros de Fernando Pinto do Amaral, José Tolentino Mendonça, ou Luís Quintais", a "melancolia culta", que, depois de Graça Moura, reconhece em Paulo Teixeira e "nalguma poesia de Pedro Mexia ou Fernando Guerreiro", a "tradição intimista", que "dá alguns bons livros de Ana Luísa Amaral, Maria do Rosário Pedreira ou Ana Marques Gastão", e ainda o "grande campo dos enredos banais de um tempo em ruínas", onde destaca Manuel de Freitas, mas encontra também lugar para Paulo José Miranda - autor de três livros editados pela Cotovia: "A Voz que Nos Trai" (1997), "A Arma do Rosto" (1998) e "Tabaco de Deus" (2002) -, Rui Pires Cabral, Jorge Gomes Miranda, Carlos Luís Bessa e Ana Paula Inácio (n. 1966), que publicou dois livros no ano 2000: "As Vinhas de Meu Pai" (Quasi) e "Vago Pressentimento Azul por Cima" (Ilhas). 
Paulo José Miranda, Manuel de Freitas e Daniel Faria são também nomes destacados por Bernardo Pinto de Almeida, embora este poeta e crítico de poesia e de artes plásticas suspeite um tanto das leituras geracionais. "O país de poetas está bem, obrigado, mas isso não quer dizer nada, porque a poesia é sempre apesar disso", afirma, aproximando-se talvez, em formulação irónica, dos receios que a celebrada "qualidade média" dos poetas portugueses actuais inspira a Manuel Gusmão. "Só há poetas bons e maus, não há intermédios", sustenta Bernardo Pinto de Almeida, lembrando que, de uma geração, ficam sempre poucos poetas e, destes, "fica um verso, às vezes um poema". 
Se assim for, parece razoável esperar que entre os autores desses exíguos vestígios que o futuro se dignará conservar venham a constar alguns dos nomes evocados neste texto, que se faz acompanhar de uma brevíssima escolha, que de todo não se pretende representativa, de alguns poemas do século XXI, todos eles de poetas revelados a partir dos anos 90. 

“Uma Nova Geração de Poetas”, Luís Miguel Queirós e Carlos Câmara Leme.
Público - suplemento Mil Folhas, 2003-03-29


Poderá também gostar de:



RELÂMPAGO N.º 12.  4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.

   


domingo, 2 de agosto de 2015

Escrevo do lado mais invisível das imagens (DANIEL FARIA)




Escrevo do lado mais invisível das imagens
Na parede de dentro da escrita e penso
Erguer à altura da visão o candeeiro
Branco da palavra com as mãos

Como a paveia atrás do segador
Vejo os pés descalços dos que correm
E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos

Correi. Como o segador seguindo o segador
Numa ceifa terrestre, tombando. Digo:
Imaginai

Daniel Faria, Dos Líquidos, 2000


Penso que talvez não deva acender outra luz para poder me fixar na que escoa dos onze versos que escolhi como guia da poesia de Daniel Faria. Tateio às escuras o primeiro deles: Escrevo do lado mais invisível das imagens. As imagens, portanto, são o lugar de inscrição ou de abrangência do que é escrito e não apenas parte de seu efeito. Ao mesmo tempo, a escrita dá-se no plano menos visível da imagem. Postula-se, pois, que a imagem é anterior e maior do que a escrita e que o ponto onde se cruzam é aquele em que a imagem não se vê. Os estranhamentos são vários. A primeira parte da premissa produz uma inversão da expectativa temporal de causa-efeito e da expectativa espacial de maior-menor (imagem anterior e maior do que a escrita). A segunda parte insinua o paradoxo: o ato da escrita do sujeito dá-se onde a imagem pode não ter imagem (lado invisível do que é visível por definição). A imagem anterior à escrita e que preexiste ao ato particular do sujeito reclama, assim, a sua resolução como imagem original, primeira - como Imagem. Aqui, em termos pertinentes, como platonismo católico: Imagem de Deus, Verbo. A hipótese teológica favorece igualmente a dissolução do paradoxo insinuado: o Verbo é a Imagem que efetivamente é e se mostra além dos sentidos, ou do que apenas se apresenta à miragem dos olhos. O valor do que o sujeito escreve parece estar, pois, na transmissão da imagem que está na sua origem, o que não significa que o corpo sensível da letra que escreve esteja excluído desse valor, mas tão somente que não o esgota.
O verso seguinte novamente confirma a hipótese teológica: (Escrevo) Na parede de dentro da escrita e penso. Trata-se de escrever dentro da escrita, no que está oculto no interior do que já se encontra escrito. Assim, antes de referir a impressão sensível, a escrita na parede interna solicita reminiscência, pensamento e meditação da palavra original. Escrever, nesses termos, não equivale a descrever o visto, ou a alimentar de imagens os sentidos, mas ao ato de quem toma por objeto de reflexão precisamente o que define a imagem como segunda imagem ou participação por analogia. Vale dizer, o que a entende como hipóstase do Verbo criador, e que não se revela senão como essência do homem, ele próprio entendido como imagem da Imagem. Olhar para a palavra, aqui, é análogo a olhar para dentro de si como espelho.
Ainda, a inexistência de coincidência entre a frase sintática e a quebra do verso introduz um equívoco, uma espécie de desdobramento inesperado e vertiginoso: o sujeito não escreve diretamente na parede de dentro, mas sobre ou dentro das imagens inscritas nela. No invisível ou oculto, que é também espaço de atualização da escrita, projeta-se, continuamente, a preexistência ou a atualidade de imagens anteriores às imagens. O movimento prolífico, abissal e reflexivo que se estabelece sugere que, assim como o que se escreve supõe uma imagem anterior, e toda imagem é participação em outra, assim também o que se escreve atualiza o misterioso e invisível de que participa. O invisível interior não é apenas o lugar ou condição da escrita do sujeito, mas a propriedade mais significativa que manifesta. A oração final do verso (E penso) é também a sua síntese, e pode ser lido como intransitiva: o que escrevo, como a imagem de que escrevo, é pensamento em ato.
O terceiro verso pode ser lido então como referindo o efeito desse ato: (Penso) Erguer à altura da visão o candeeiro. Ou seja, o escrever oculto que manifesta a primeira imagem ou enigma original da palavra divina é sobretudo meditação que busca a elevação, a ascese, o rapto místico para o ponto de visão ou de iluminação que está acima ou além da imagem obscurecida dos sentidos, mera sombra que os habita. Mas um novo equívoco se introduz pelo corte operado pelo verso na sintaxe: erguer é tanto o sentido ascético do ato da meditação, quanto o imperativo ético implícito na compreensão da escrita como imagem de outra, na crença do enigma na base da representação. Nesta leitura, não apenas se medita e deseja ardentemente a iluminação, mas se está obrigado a ela. Há um campo de deveres da imagem a elevar-se além do sensível, com implicações educacionais ou edificantes.
O fim do terceiro verso ainda uma vez não coincide com o fim da frase, que perfaz o terceiro enjambement sucessivo na estrofe. Dos três, o único menos sutil, mais abrupto, é também o que obtém o efeito menos ambíguo, isto é, justamente o que existe na passagem do terceiro para o quarto verso, quando se divide o termo candeeiro de sua qualidade ou cor: (Candeeiro) Branco da palavra com as mãos. A articulação inicial deste verso propõe que se eleve à luz a meditação da palavra, o que, como se viu, implica subtraí-la à autonomia dos sentidos. Quer-se produzir a luz e a inteligência dela pela manifestação ostensiva do que se mantém oculto na palavra refletida. Mas é ainda mais do que isso: o candeeiro branco, que ilumina a palavra, também a amadurece, pela imposição das mãos. Nesta imposição, evidencia-se o aspecto eficaz da cadeia de transmissão da representação imagética. O que se escreve e medita não é apenas símbolo, mas causa simbólica eficiente da iluminação pela palavra. Trata-se de transmitir a graça da luz pela escrita escura, que, por ser enigmática, define ostensivamente o mistério da origem, obrigando à leitura espiritual, alegórica, ascética, que se produz, então, como ato de ser. A primeira estrofe, pois, assinala o dever da imagem que se obscurece para evidenciar o mistério que a sustenta. Há um especial modo de especificação desse procedimento na estruturação rítmica da estrofe, com linhas que se ajustariam facilmente em versos regulares de 9 e 10 sílabas, mas deixam de fazê-lo. Isto porque os versos recebem acréscimos ou prolongamentos, predominantemente de pés espondeus e peônios, que impedem o arredondamento do ritmo poético, e postulam o oratório, o meditativo e, em todo caso, o que não se fecha na fruição do ritmo. Os versos oferecem deliberada resistência ao seu encaixe nos padrões tradicionais. Aliás, dos sucessivos enjambements pode-se dizer o mesmo: que assinalam a determinação poética, mas, ao mesmo tempo, pelo encadeamento acumulado e ostensivo, que promovem uma espécie de prolongamento do verso em oração pausada, que produz uma quebra ou dissolução do ritmo.
O primeiro verso da segunda estrofe, Como a paveia atrás do segador, já se introduz, ambiguamente, como comparação que anuncia o que se dirá a seguir, ou então como síntese do que se escreveu antes, ainda na primeira estrofe. Quer dizer, a comparação tende a ganhar certa autonomia, ou certa polivalência, que a torna capaz de ser aplicada em qualquer direção. Nela, está claro que a imagem do segador é a figuração bíblica usual dos que fazem o anúncio do Evangelho ou da Palavra de Deus, pois a semeadura propriamente dita já está feita pelo Verbo, que renova em Cristo a aliança com os homens. No tempo escatológico posterior à sua vinda, cabe apenas ceifar os campos já brancos de trigo. A Palavra, fértil por si mesma, amadurece e prepara o ato de quem a colhe, como a Imagem que dá lugar e ato de ser à escrita. Mas a posição de quem escreve ou colhe, aqui, é a de quem está atrás, como quem chega por último ao campo ou à vigília, para usar os termos do Eclesiástico (33, 16): «Quanto a mim, sou o último a ficar em vigília, como quem cata espigas (como o que ajunta as bagas) atrás dos vindimadores». Trata-se, pois, da posição última, por isso humilde, mas também a de afirmação da disposição de entregar-se sem mais demora à vindima e encher profusamente o lagar.
Vejo os pés descalços dos que correm. Do lugar humilde no campo terrestre dos homens, aquele que medita ou vê com o coração pode enxergar os que correm descalços nele, pobres em meio aos terrenos abundantes de colheita. Já no terceiro verso da segunda estrofe, após a apresentação das conhecidas imagens escriturais da colheita nos dois anteriores, recolhe-se enfim a imagem da escrita desenvolvida nos dois primeiros versos da primeira estrofe: E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão. Tais parecem ser tanto os que não possuem bens materiais, sentido reforçado pela referência aos pés descalços do verso anterior, quanto os que não colheram o pão espiritual da semeadura divina, segundo as linhas de ponderação admitidas nas imagens bíblicas tradicionais. O que se quer tornar visível pela escrita ostensiva do mistério tem a finalidade salvífica de falar ou mover aos que não possuem os bens da terra, nem os do céu. No primeiro caso, acentua-se a oração aos últimos e deserdados; no segundo, o tom de desolação profunda, própria da condição de exílio em que se encontram todos os que vivem fora da comunhão divina. No primeiro caso, o lugar humilde que é condição e grau da ascese tem conseqüências acentuadamente sociais; no segundo, sem exclusão da hipótese anterior, elas são genericamente missionárias, mas, sobretudo, escatológicas.
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos - o verso que fecha a estrofe eleva a freqüência de grito ou advertência dramática a voz correlata da escrita e meditação do mistério. A ordem é ainda a de produzir a imagem do que nunca foi visível, como a riqueza e o sabor do pão jamais experimentados. O instrumento dessa produção não é, mais uma vez, o que olha para o que é sensível apenas e se manifesta fora, mas o que se aplica a descobrir o que está na natureza criada do homem: a palavra plantada dentro dele, com suficiente força e carisma para salvá-lo. Descobrir o infuso, isto é, imaginar a Imagem: eis o anúncio no alto do grito. A meditação, tornada também predicação, solicita a imaginação e a lembrança da imagem já semeada, mas obscurecida.
Correi. Como o segador seguindo o segador - ou seja, a corrida dos descalços, antes cega, movida pela roda mortal, tem agora direção e sentido conduzidos pela imaginação de Deus no homem, por meio da palavra invisível que o figura. Assim meditada, descobre-se um dinamismo da palavra que tende para sua realização. Ela é eficaz quando religada ao mistério que conserva como imagem na sombra. A corrida perdida reorienta-se, aqui, como imitação do que colhe a semente madura do primeiro semeador. Numa ceifa terrestre, tombando. Digo: - e novamente, como nos enjambements sucessivos da primeira estrofe, dispõe-se o lugar da colheita no campo mortal da vida humana. O surpreendente não está aí, mas na estupenda revelação de que o trabalho do segador se faz tombando, de que é a sua queda que fertiliza o campo. Certamente, o tombar é análogo da semente que cai na terra boa e frutifica, mas é-o também da morte que interrompe os trabalhos e fadigas do homem indigente: «Não temas a sentença da morte: lembra-te dos que te precederam e dos que te seguirão» (Ecl. 41, 3). Sentença de morte que é beneplácito de Deus, por meio da morte expiatória e exemplar na Paixão.
Imaginai - eis aqui refigurada na morte do corpo fatigado, a força pura da palavra cuja melhor imagem é a da aniquilação. É sobretudo na imaginação da morte que repousa a escrita da palavra invisível. Deus é o Senhor da morte; Cristo, o primogênito entre os mortos. Segui-lo, como se prescreve na fórmula paulina aqui vigente, é morrer diariamente, como num noviciado da Paixão.

Alcir Pécora, Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX. Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.








O GIROSCÓPIO
Vítor Moura

Daniel Faria (1971-1999) coleccionava pedras. Trazia-as da praia ou dos montes e guardava-as em caixinhas sobre a estante. Também coleccionava palavras. Recolhia-as na Bíblia, em Dante, ou da obra de Luiza Neto Jorge e dispunha-as, meticulosamente, em poemas. A primeira leitura dos seus livros parece ser, assim, a visita de um mostruário e apela à memória e ao inevitável levantamento erudito das "referências ". Mas esta espécie de hermenêutica, por legítima que se apresente, não parece totalmente adequada à sobriedade deste escasso corpus. Porque esta é também a exposição de um trabalho paciente, insistente, metódico, de depuração formal, numa espécie de missão auto-imposta de angariação e fixação de uma gramática firme. A firmeza requerida para comunicar duas coisas: o que significa a construção da casa, e a crença num nome que, porque não é, em primeiro lugar, mais que um nome, tem que ser dito e repetido numa "palavra incessante": "Cresço na clareira de um homem que é uma palavra".
Duas bandejas a sopesar na balança, portanto. Em primeiro lugar - porque é o trabalho de um jovem poeta - , o fascínio pela colecção de influências que ia buscar a muitos lados e com as quais - diz-nos a sua biografia - o autor se envolvia de uma forma ávida, a única forma, enfim, através da qual se ganha a influência, a mais antiga das tarefas da poesia, i.e. , a de reconhecer que as ideias não têm dono nem origem e que é bem aquele que as sabe explorar e desenvolver, que as coloca na sua própria estante, por assim dizer, como se fosse pela primeira vez. Há muitos momentos na poesia de Daniel Faria que fazem acreditar no lustro de estreia de uma articulação nova. Entre temas que reconhecemos (o silêncio das casas e a "voz das telhas inclinadas" é um tema lido em Luiza Neto Jorge, por exemplo), vamo-nos apercebendo da recorrência de algo que se vai manifestando como esteio de um texto novo. É aqui que a sua reflexão poética sobre a "casa" cola ao aspecto estritamente existencial uma dimensão autobibliográfica. Aqui, a casa é, em primeiro lugar, texto, "verbo", para usar a sua expressão. Se o poeta constrói uma obra e se essa construção é realmente radical, i.e., se começa pelos alicerces, pode ler-se nela, quando jovem, a azáfama de várias empreitadas. A escolha dos materiais, a escolha do terreno, a orientação do plano, o trabalho de terraplanagem e o início da escavação. Tudo isso está aqui. Em segundo lugar - porque é o trabalho de um monge - , está a persistência de um nome que não se sabe onde se situa. Dentro de casa? Fora de casa? Será um dos materiais de construção? Será a clareira onde se erguem os andaimes ou o caminho que conduz a casa? Será aquilo em função do qual a casa, a janela da cozinha e a varanda se vão orientando? Em todo o caso, este nome deveria surgir como aquilo que não se constrói, como fundamento da própria construção. E é aí que as coisas se complicam.
O significado da poesia de Daniel Faria está na referência a estas duas construções, uma física, a casa - que também inclui a articulação dos sons e o aspecto das palavras sobre o papel -, a outra conceptual, o nome, e no modo como as duas se cruzam, se opõem ou se exigem uma à outra. Primeiro, a indagação sobre o que constitui uma casa, no sentido do sítio familiar, mas ao mesmo tempo no sentido de algo que se vai fazendo a partir de peças trazidas por outros. Trata-se da referência mais concreta da vida dos homens, aquela que circunscreve o nosso habitat prioritário e em relação ao qual tudo o resto é classificado por analogia (os outros sítios estão "mais ou menos perto de casa" ou sentimo-nos "mais ou menos em casa" em certos sítios). Para um poeta, em particular, a casa é o sítio onde primeiro se aprende o significado das palavras e onde se vão fazendo as primeiras experiências de apropriação / transformação verbal daquilo que nos vão ensinando.
Mas, simultaneamente, invoca-se, de dentro dessa mesma casa - como o pedreiro que olha para a obra feita - , o "centro" que parece sustentar todo o edifício, que garante que ele não se abata sobre as nossas cabeças: "Tu é que és o que edifica / Tu constróis mil vezes", como se a casa não se pudesse construir a si mesma. Este centro é o único interlocutor desta poesia e a sua invocação constante fornece-lhe a consistência de uma crença, à força, precisamente, de nomear a falta: "Sei que existes e multiplicarás / A tua falta, / Somarei a tua ausência à minha escuta / e tu redobrarás a minha vida."
Ou seja, na representação da casa situa-se a ordem do mais concreto, da presença plena, a primeira referência, aquela que quase não carece de invocação porque está sempre lá e à qual, no fim da jornada, podemos sempre regressar. Na invocação do centro construtor nomeia-se essa ausência e essa falta, isso que é preciso ser dito para que não desapareça. Quando sentimos que perdemos alguma coisa - embora, neste caso, seja antes a consciência de que se está a perder uma coisa - tendemos a procurá-la, a revolver gavetas, estantes e sofás, ou a parar para tentar perceber onde ela poderá estar. Nessas alturas, olhamos para a arrumação da casa como se nos colocássemos de fora e, se a busca se torna demorada, começamos a ficar desesperados pois o que outrora nos era tão familiar torna-se agora hostil, como se escondesse aquilo que buscamos. As chaves de casa que procuramos tornam-se mais importantes do que a própria casa e podem mesmo, num acesso de revolta contra as coisas, levar-nos a sair e a bater com a porta.
Na apresentação da dupla hélice da casa e do nome, Daniel Faria tem a consciência de estar a preparar o caminho para uma linguagem demiúrgica capaz de propor imagens inesperadas e, justamente porque inesperadas, de uma intensidade certeira: "Escrevo do lado mais invisível das imagens / Na parede de dentro da escrita e penso / Erguer à altura da visão o candeeiro / Branco da palavra com as mãos (...) Digo: / Imaginai". É aqui que assenta a invulgar desenvoltura desta escrita: os materiais plenamente legíveis, as referências bem demarcadas, a nomeação não adjectivada dos objectos, tudo é colocado em regime de aceleração pelo trabalho poético. A linguagem que nos é familiar, aquela que também é, em certo sentido, nossa casa, porque plenamente presente (nela já nem pensamos), é posta a girar. E com ela, à maneira de um dervixe dançante (a forma mais integral de "oração"), é o próprio poeta que se vê roda(n)do. A este "redemoinho", talvez como sua causa, junta-se, então, a palavra que faltava, "amor", definido, justamente, por Dante, como um "estado de locomoção": "vivo enclausurado na agilidade de um animal nascido / correndo ao lado dele, correndo para ele - era assim que eu queria que fosse a linguagem veloz (…) Sei que estou em viagem na palavra que se move"1; "Queria tanto amar, rodear-te, se soubesses como queria amar-te tanto"2; "Amo-te como um planeta em rotação difusa"3. A sugestão de rotação torna-se constante na obra. O filho é "o carrossel à volta da mãe" e ambos constituem uma "roleta em voltas sucessivas"4 como o tambor de um revólver. A cristologia discreta do autor invoca nesta roleta, evidentemente, a estreia da geração do divino pelo humano. O seu virtuosismo é extraordinariamente eficaz a desenhar a bizarra troca de papéis, pela qual o humano se volve tutor do divino. Para o tema concreto que nos ocupa aqui, recorda-se neste poema que todo o movimento circular gera forças centrífugas e que do revólver sairá um disparo: "O carrossel tem um cavalo que galopa / O menino tem as rédeas e espera / A idade da despedida", isto é, o abandono da casa porque, desta vez, a casa é a casa da mãe. Para regressar? A sequência de poemas "Para encontrar o golpe no sono" prossegue esta inversão de papéis e tem a força de uma pietà, e a ironia que advém de ser agora a vez de o humano assistir à morte do divino. A ligação entre o amor como impulso (aquilo também que nos faz regressar a casa), a casa e as palavras que a compõem, repetir-se-á. O amor pelo outro está no "íman que cria para nós um lugar junto dele / Um lugar dentro dele" e essa é a "placa giratória do amor".
Em Dos Líquidos, vai-se tornando cada vez mais claro que essa voluta desejada é um estado nómada, uma homelessness, ou seja, a alternativa da casa que ainda se encontra em projecto, a casa feita de palavras - a voz própria que se vai tecendo a partir de materiais alheios - mas também a casa como abrigo real: "mantém-me mendigo / desviando-me de mim (…) / Conduz-me / para a esquerda e para a direita, roda-me sempre / para a saída / Deixa-me ser a porta no eixo / Posta para trás pela mão de quem entra"5. O "redemoinho", o "amor", o "revólver" é pois identificado com o interlocutor da poesia e o seu "centro", com o nome: "És o sopro, o redemoinho no barro"6.
A casa é, então, progressivamente referida através da imagem do aquário, do "regaço aquático"7 que se dinamita8 para que se possa encontrar "um peso humano que não se afunda", de alguém "que parte o pão".
Deparamo-nos, portanto e no mínimo, com uma tensão a animar esta poesia. Sente-se a nostalgia da "casa" que se pretende recriar ou cujo caminho de regresso se procura, reencontrar os papéis com os recados da mãe, subir as persianas, regar as plantas9. Mas deseja-se, contemporaneamente, o disparo do "revólver" que acaba por lançar para fora de qualquer casa. A existência da tensão é consequente: se é de um motor que esta poesia trata, e se ela própria é um "trabalho de amor" – tantas vezes oferecido aos amigos em papelinhos passados por baixo da porta -, então, como qualquer corrente eléctrica, a locomoção, e o seu próprio movimento enquanto poesia, deve /resultar da aproximação entre polaridades contrárias: a "casa" e o "nome", por exemplo. Existirá algum ponto de equilíbrio? E se existir, onde o encontraremos?
Sair ou não de casa, eis a questão. E se sairmos, como haveremos de regressar? Seremos capazes de encontrar o caminho de regresso? Será que sentiremos, enfim, a necessidade de regressar? Onde está, afinal, o "centro"? Naquilo que construímos como nosso lugar para habitar ou naquilo que, em último caso, destrói qualquer morada?
Heraclito terá dito, certa vez, a forasteiros que o visitavam, espantados por ele os receber na cozinha, que" os deuses vivem entre os fogões" . Essa ligação entre a origem do sentido das coisas - nomeadamente, o sentido proposicional - e o cheiro da cozinha, da vinha, o estalar dos soalhos da casa no Verão, a magnólia que vemos da janela do quarto, é uma hipótese muito forte que atravessa toda a obra de Daniel Faria. A tal ponto que em Homens que são como lugares mal situados se pergunta: "Se o fogo destruir a casa / E apagar a cal que caia a casa / Onde irei escrever o teu nome?". A casa e o nome requerem-se então, pois, só há volteio onde antes havia estabilidade. Mas o nome de Daniel Faria não mora. Nem nele se pode morar. Se no nome- redemoinho encontrássemos refúgio - santuário – faríamos dele uma outra casa quando, no fundo, ele também é o "caminho desconhecido para casa". Da próxima vez que, nele, perdêssemos as chaves, veríamos, de novo, que novas fendas se abrem sempre naquilo que nos é próprio. Se o centro se tornasse familiar, desapareceria a necessidade de criar poesia desta maneira. Se dispensássemos a exterioridade permanente daquilo que nos vê de fora, "apagando a luz do quarto cada noite", deixaríamos de compreender a importância da magnólia como um "abrigo fora de casa".
Esta é, portanto, uma poesia da partida mas também do regresso, pois esses são os dois acontecimentos que marcam, fenomenologicamente, a nossa consciência do "dentro" e do "fora", da consciência da casa, e da insistência do nome-nómada. Tal nunca é tão claro como no poema dedicado a Charles de Foucauld, o monge anacoreta que esperou à entrada da sua tenda a morte trazida pelos tuaregues: "Pensa que morrerás / No chão / À tua porta. / E nunca mais acabarás / De regressar". Correndo o risco da redundância, sublinhe-se o facto de a "morte" constituir o outro nome do centro, a outra face do interlocutor, e que também ela é responsável pela edificação da casa pois é, em parte, em função dela que o abrigo é alçado: para que nos proteja daquilo que nos pode matar. Esta é a mais ousada declinação da imagem recorrente do "redemoinho", o "redemoinho" colocado à entrada-saída de casa, no portal, na ombreira, à soleira da porta. Para "regressar" (tal como, evidentemente, para partir) é preciso que esteja desenhada, em algum lugar, a sombra dessa fronteira, pois regressar é, justamente, aspirar a essa transição. Mas a imagem de quem morre à porta de casa, a cabeça por terra e sob o limiar, o corpo meio dentro meio fora, oferece-nos uma variação significativa do "regresso", numa daquelas transições tão densas e inesperadas que podem mesmo alterar para sempre a nossa compreensão de um conceito. E aqui repete-se a própria natureza da poesia, a palavra como autopoiésis, como se fosse possível remontar à vitalidade primitiva e muda a partir da qual toda uma linguagem pode ser (re)composta: "Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio / Restauro-a / Dou-lhe um som para que ela fale por dentro / Ilumino-a".
Como ilumina então Daniel Faria o som da palavra "regresso"? Que se pede a Charles de Foucauld com este "nunca mais parar de regressar"? Para recolher aquilo que se vai propondo, neste como noutros poemas, agrada-me a sugestão de uma daquelas portas giratórias de hotel, que vai rodando, ora mais lenta ora mais rápida, para tornar, ao mesmo tempo, estanques e permeáveis os espaços que separa / une. Porque é exactamente esse movimento de voluta que Daniel Faria imprime ao inquérito aberto sobre a relação entre a casa e o centro excêntrico do sentido, e que se condensa nesta reflexão poética obsessiva sobre o regresso. O que significa regressar a algo que lembramos como o mesmo que nós, a nossa casa? Experiência de pensamento: imagina morrer à porta de casa. Imagina que ficarás para sempre na transição, nem a sensação dos ventos do deserto nem o aconchego das almofadas e das lonas que protegem. Agora imagina que é exactamente isso que te basta. Nem a ausência nem o conforto mas tão só o próprio culminar do regresso, o momento em que se mete a chave à porta. Ou o momento em que se rodasse para sempre o primeiro compartimento da porta giratória. A transição permanente. A revolução permanente.
Outro poema refere aquela espécie de homens que "se sentam à saída" e a quem é inútil pedir para entrar "porque a sua força é para fora". Também esses se encontram sobre a passagem pois, ainda que se encontrem de saída, deverão acabar por acreditar "no mistério que inclina / os homens para dentro". Este mistério materializa-se, mais tarde, na imagem do "homem que nos levava por um caminho desconhecido para casa / E que partia o pão". O tema do regresso assume, assim, uma ressonância cristológica. Regressar a casa pela mão daquele que conhece o caminho mas que é, também, aquele que nos rodou para a saída. Será essa a sua única declinação? A suite "Para o instrumento difícil do silêncio" acaba por descrever esse caminhante como "a chuva sobre as casas / A inclinação dos telhados". Em suma, é aquilo que cria em nós a consciência da própria casa - a que resulta da iminência do perigo de morte, por exemplo - mas que, exactamente por ser essa condição de consciência, não deve ser, ele mesmo, tomado como abrigo, ou como casa. Segui-lo, seguir esse indicar é o mesmo que um "nunca mais parar de regressar". Se justapusermos esta imagem à imagem da detenção sobre o próprio momento da chegada (Foucauld), começamos a ver tornar-se mais nítido o projecto de Daniel Faria: marcar o momento de uma terceira dimensão entre o "estar fora" e o "situar-se dentro", assinalar,  por assim dizer, um "momento agnóstico" em cada percurso de regresso a casa.
Na verdade, será difícil separar a reflexão poética sobre o regresso a casa por Daniel Faria da sua contingência biográfica, isto é, da sua opção pela vida religiosa. Nesse sentido, seria mais provável a descrição de duas "casas": a da origem e aquela que se procura, a mais bem situada, com trepadeiras, rumor de águas livres e a sombra não podada da magnólia, a casa que se identifica com o próprio centro. Contudo, a casa é só uma. E o centro, a certa altura, é mesmo descrito como "Verbo / tão inteiro que se fez espelho", mediação, o apelo ao regresso a nós mesmos. Foi para ouvir esse apelo que, afinal, saímos de casa. Talvez mais ainda: o apelo ao regresso é, afinal, aquilo que procuramos quando sentimos a falta de algo. É o redemoinho.

Os textos fundadores do ocidente desenrolam-se, precisamente, sob a esperança de um regresso. Ulisses a caminho de Ítaca, o de Homero e o de Joyce. Antígona, Medeia, Ifigénia, Elektra, os ícones da reflexão ocidental sobre a justiça, são mulheres lançadas para fora de casa e que lutarão, até ao fim, pelo regresso. Édipo, cujo regresso transforma a própria casa em algo de inacessível para sempre. Israel depois da queda do templo, estruturando-se como nação num estado de regresso permanente, e já antes, Moisés, que codifica uma religião a partir dessa mesma terceira dimensão, no meio caminho, sabendo que jamais alcançará aquilo para que encaminha o seu povo (será próprio dos profetas o "nunca mais parar de regressar"). Cristo em Emaús, revisto como um peregrino em apoteose cansada, regressando a casa depois de muitos anos de ausência. Os desorientados heróis de Shakespeare, à procura do trilho perdido, Hamlet, Lear, Coriolano. O cinema de Nicholas Ray e o trenó de Orson Welles. Será talvez genético o nosso interesse por este movimento de retorno. Ao insistir sobre ele, Daniel Faria está próximo, ele próprio, de uma espécie de regresso a "casa".

A sensação de regresso é inerente à experiência da leitura da poesia de Daniel Faria. Reconhecemos as referências, sabemos o quanto elas marcam a origem do nosso discurso sobre as coisas. Guiados por elas, na articulação que delas faz este autor improvável, somos também postos numa soleira para repetirmos, uma e outra vez, a experiência de estar a chegar. Por detrás desta porta giratória está algo que recordamos como familiar mas que já não chegaremos a ver. É aqui, neste instante preciso, que melhor entenderemos o que significa o conceito de "casa". É também neste passo que melhor entendemos o que poderia ser o centro do sentido. Entretanto, recorda-se o conceito de "sagrado" como vestígio de algo antigo mas também como desassossego, isto é, como segundo pólo suposto para podermos entender o que significa esta situação de estar, incessantemente, a regressar.

Ensaio de Vítor Moura sobre NOVA POESIA PORTUGUESA para a revista RELÂMPAGO n.º 12.  4|2003

_______________
1. Homens que são como lugares mal situados, V. N. Gaia: Fundação Manuel Leão, 2002, p.20.
2. Dos Líquidos, V. N. Gaia: Fundação Manuel Leão, 2000, p .57.
3. Dos Líquidos, p .49.
4. Homens..., p.11.
5. Dos Líquidos, p .54.
6. Homens…, p.73.
7. Dos Líquidos, p.43.
8. Cf. Homens..., p.25.
9. Cf. Dos Líquidos, p.119



RELÂMPAGO N.º 12.  4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.