Tal como a poesia que escreve, Daniel Jonas é esquivo, difícil, não mendiga reconhecimento, nem leitores. "Canícula", o seu novo livro confirma-o como o mais velho poeta português da actualidade.
Nasceu com a incrível sorte de ter já nome de profeta bíblico, um nome feito para a poesia. Tem 43 anos e é o maior poeta português da atualidade; mede 1,91 cm de altura. Diz que isto foi só porque levou à letra o verso de Florbela Espanca “ser poeta é ser mais alto” e ficou assim com umas pernas tão magras e compridas que obrigam quase toda a gente a ter que dobrar o pescoço para lhe alcançar os olhos, os caracóis e o ar rebelde a lembrar o Bob Dylan em versão revista e aumentada. Lá no alto onde vive (no Porto) também não se esforça para descer ao circo dos eventos literários, não procura os media, não gosta de falar ao telefone. De resto, a sua vida quotidiana como professor, tradutor e pai de dois filhos não lhe deixa grande espaço “nem vontade” para pertencer a grupos ou famílias, cultivar discípulos, andar a ler poesia em eventos. Esta entrevista ao Observador, a propósito do seu novo livro Canícula(Língua Morta), feita por email, telefone e terminada num café de Lisboa, testemunha que, tal como a sua poesia, Daniel Jonas não se deixa facilmente apanhar.
O facto de ter traduzido poetas antigos como Milton, que trabalham com outras formas de linguagem e com outras abordagens dos mundos físicos e metafísicos, outra constelação de ligações, alterou a poesia que escreve?
Todas as leituras contagiam os seus leitores. Não tenho é a certeza se fui eu que as procurei, se foram elas que me encontraram. Nesse sentido, elas poderão apenas acusar uma familiaridade estética, na esteira de um discípulo que busca os seus mestres. O discípulo será prévio ao seu mestre, neste caso. Com Milton aprendi a cultivar o soneto, por exemplo. Por outro lado, a tradução obriga-te a uma imersão na linguagem de uma forma muito mais exigente do que aquela que fazemos no dia-a-dia. A atenção às palavras torna-se mais aguçada. O tradutor faz uma espécie de peregrinação interior dentro do texto e essa peregrinação deve resultar num aperfeiçoamento interior também.
Diz, numa entrevista a António Guerreiro, no jornal Público, que “tudo é convidado a entrar” na sua poesia. Mas este “tudo” que o torna um poeta impossível de classificar e mapear não poderá ser-lhe fatal? Ou seja a sua poesia não pode acabar por se tornar “um lugar facilmente reconhecível apenas por ser ectópico”?
Habituei-me a uma certa tradição que vindimava certos vocábulos com acérrima insistência. Não havia, aliás, poeta que não fosse costumeiro no uso de vocábulos como meses do ano, a ‘cal’, o ‘rumor’, e seus primos. Julgo que, mais recentemente, se assistiu à feira franca de um algoritmo de tendência, digamos, neo-neo-realista que frequentava as mesmas tendências e chamava ao jovial poema os seus sucedâneos ‘táxi’, ‘cigarro’, ‘bar’, qualquer coisa deste género. Ora o que eu digo é que sigo um sistema evangélico, um compelle intrare poético que, não obstante, tende a ser rigoroso naquilo que admite. Mas esse critério não é simples.
Num dos poemas de Canícula diz-se o contrário de São Tomé: não tocar para ver. Como resiste à tentação de dizer apenas o que vê? Como se escapa dessa ditadura de apenas nomear o que é visível que tem dominado a poesia portuguesa dos últimos anos quando, como sabemos, o que se vê jamais reside no que se diz?
A minha imaginação tem de ser forte o suficiente para gerar uma espécie de potência de criação. Nesse sentido, quando num poema digo ‘eu’ refiro-me a uma personagem que criei para esse poema, uma personagem, digamos, romanesca. Aliás, neste último livro, há uma personagem (aliás, duas: o peregrino chorão e uma rua, a Duarte Belo à Bica) que é uma construção de um anti-turista que se desdobra num intenso monólogo dramático sobre as suas explosões interiores, intensamente ficcionais. É um psicodrama interior de alguém que se passeia como uma câmara pela cidade.
Isso de viver fora do centro ajudou-o a criar uma voz dissonante, ou mesmo “anacrónica” como lhe chama?
O centro é local? Eu digo isto porque é normal em Portugal, um país realmente pequeno que chuta pessoas que não pertencem à sua cidade-estado, assistir-se a um ostracismo absolutamente incompreensível num país civilizado, coisa que Portugal certamente não é. Entendendo a pergunta como referindo-se a uma escola, diria que não me matriculei em nenhuma escola de gosto. E talvez daí resulte, desse facto de cultivar gostos algo quaint, uma dificuldade em localizar geo-esteticamente a minha poesia.
Disse na mesma entrevista a António Guerreiro que “os chamados leitores de poesia são, não poucas vezes, leitores rancorosos, senão reacionários, que alienam preventivamente aqueles por quem julgam poderem vir a ser alienados “. Não crê que os poetas se limitam a si mesmos pelo encontro com esses leitores ou mesmo porque acreditam que a sua função é expressarem o “Zeitgeist” (espírito do tempo) quando, pelo contrário, a poesia deveria ser suficientemente subversiva para destruir sempre esse “Zeitgeist”?
É exatamente isso o que penso, não por uma questão necessariamente de programa, mas porque quero falar e escrever aquilo que bem entendo, independentemente de uma política de recepção. Se estiver a pensar nisso, serei mais um e teria pouco a dizer, de qualquer maneira. Não sou propriamente um almocreve da palavra nem vejo vantagens em sê-lo. Já escrever, em si mesmo, me parece uma atividade cada vez mais inconsequente.
Porquê?
Porque pouco se recolhe da poesia. Porque há cada vez menos pessoas a frequentá-la, mas antes em atividades diletantes da poesia como evasão. A poesia não é evasão.
Publica livros há vinte anos, já recebeu vários prémios mas diz como o poeta americano John Ashbery: “Por um lado sou um dos escritores mais conceituados e lidos da atualidade, por outro ninguém me compreende”.
John Ashbery procurava dar conta de uma estupefação que eu compreendo. Ele procurava entender este nó górdio que fazia com que um poeta largamente cifrado acabasse por ser, paradoxalmente, tão acarinhado por um certo público. Talvez as pessoas gostem de enigmas e de quebra-cabeças. Nesse sentido, Canícula é idêntico a si próprio. É uma voz única de um tempo único que assim fica registado e é tão plural quanto as nossas disposições para o receber. Ouvir “Visions of Johanna” [Bob Dylan] é certamente diferente de cada vez que a ouço, na medida em que a minha experiência de mim é irrepetível e irrepetível o canal da apreciação estética que é cumulativo com o da experiência pessoal e pontual. É como um canal que dá para duas funções ao mesmo tempo. E assim se passa com quem produz uma obra de arte. A sua intimidade é uma no momento da sua criação e outra nos vários momentos subsequentes. Tal como as minhas visões de Johanna são umas no momento em que as tenho e as escrevo e outras quando a Johanna e eu somos mais velhos. De todas as vezes que eu volto à Johanna a minha apreciação de Johanna se modifica, digamos assim.
Essas figuras longínquas que evoca nos seus livros, não só em Canícula, mas em todos eles, esses desertos, pastores, cabras, esse tempo anterior à fundação das civilizações, onde a palavra e o corpo não estavam separadas, gastas, sem qualquer força ética que ligue os Homens… essas gentes, essas paisagens, onde as vai buscar?
Há aquela piada do dinossauro-filho que pergunta ao dinossauro-pai se Deus existe. O pai responde-lhe “Ainda não”. Eu procuro de certa maneira um tempo anterior a certas experiência e palavras, procuro ser criador, aliás um desiderato comum a todos os criadores, não é nada de novo. Esse movimento deve ser à uma revolucionário e primordial. A natureza é muito cruel mas, por outro lado, oferece a busca pelo não humanizado. A minha linguagem procura humanizar o sublime, por assim dizer, sem que o torne necessariamente prosaico. A minha teoria, a existir, assenta em, como Yeats, querer ir a Innisfree, ver-me livre da ganga do que há e fazer mel e criar uma melodia nova. Mas não é preciso ir para o campo para se viver nele.
Este livro está cheio de subtis evocações de lugares, poetas, músicas, palavras que juntam o que parecia impossível juntar, limpo de sentimentalismo, de nomes. Não precisa de nomear Fernando Pessoa ou Cesário Verde para o leitor os encontrar algures por aquela Lisboa tornada cidade sem tempo cronológico e sem espaço geográfico. É um lugar onde todos os tempos se fundem abolindo o próprio tempo.
Quis fazer um livro verdadeiramente lisboeta, toponimicamente preciso. A rua Duarte Belo é uma personagem, como disse (rua recentemente votada, e muito justamente, uma das mais bonitas ruas do mundo), mas procurei que aquele anti-turista não autóctone passasse por uma espécie de novo heterónimo de Pessoa. Que nova personagem seria essa? Não segui isso até à loucura, mas entendi que podia ser um bom mote para o que estava a fazer. Com uma palavra de cautela: esse programa é totalmente posterior. Só pensei nisso depois de fazer o que fiz. Provavelmente essa personagem é uma infusão de vários estados ficcionais. Uma presença muito forte e várias vezes aludida é a história de Isaque e Abraão, concretamente o episódio que mais me dececiona em toda a Bíblia, quando aquele patriarca severo leva o seu pobre filho monte acima para ser sacrificado. Ainda por cima, para cúmulo, obriga-o a transportar a lenha que servirá de escabelo para o seu próprio auto de fé! Essa história está, aliás, admiravelmente reconfigurada na Story of Isaac de Leonard Cohen. Especialmente nas observações miúdas do pequeno Isaque, ao observar a dimensão assustadora das árvores e da geografia em geral.
Canícula é uma obra de uma enorme solidão. Sísifo em Lisboa subindo e descendo as colinas em plena canícula sem encontrar nenhuma estoica felicidade. E tantas vezes ele sobe à Bica e tantas vezes ele faz o gesto de vergar o corpo para a frente, seja numa numa varanda, numa vénia, numa dor, seja sob um peso qualquer da alma. Um Sisifo que poderia ser mais um heterónimo de Pessoa tendo por única companhia um cão e muitas figuras que não chegam a ser gente, apenas contornos difusos, que não podemos fixar numa imagem reconhecível…
Ainda bem que tal solidão ressalta do quadro geral. Ela é necessária para o meu programa de um homem só, desse Sísifo em Lisboa. O não-diálogo com a realidade, ou a estranheza da realidade circundante é absolutamente crucial para o meu ponto. Quer dizer que a linguagem disponível não comunica com esta minha personagem. Ela precisa de desenvolver uma linguagem nova, ou pelo menos a que encontra ao seu alcance não reverbera na caixa de ressonância material da realidade. E nessa circunstância vê-se na pele de turista, ainda que um turista natural. O cão, que aqui é uma espécie de animal de companhia que acompanha um herói (todo o Tintim tem o seu Milu), é a projeção mutilada da estrela Cão (Canícula) e do cio discursivo que perpassa todo o livro. A palavra ‘Canícula’, para além de cachorro, designa também uma pequena cana, por extensão o cálamo, a caneta… Esta polissemia alude, entretanto, às pernas delgadas e convalescentes do seu autor…
Quero a fanfarra dos simples, o augusto coreto das sombras!
Onde estou que não me encontro?
Eu tenho uma fome assassina, de descarnar os cabos
das costelas, de estraçalhar milagres biológicos,
a existência miserável de seres que antes eram vivos
e agora enfeitam o cemitério do meu prato.
Esta afluência ao restaurante põe-me doido!
Este querer comer como eu quero este querer cuspir como eu
quero”(Canícula, pag.48)
“Canícula”: habitar poeticamente a cidade
Depois de ter estado na capital no verão passado numa residência artística promovida pelo Festival Silêncio, Jonas, regressou para apresentar o livro que resultou dessas duas semanas: Canícula ou, nas palavras do seu editor Diogo Vaz Pinto, “um salto imprescindível na poesia portuguesa”.
Mas esse “salto”, que quem vem acompanhando os livros que Jonas publicou nos últimos anos já pressentia, quer pela teimosia com que escreve sabendo que é o poema que escolhe os seus leitores, pela construção de um universo que não é figurativo, que rejeita corajosamente a prerrogativas do discurso lógico, realista, as fórmulas gastas da meta-poesia, a luta por ter uma identidade reconhecível que mais não é do que uma mendicância por reconhecimento. aqui usam-se palavras caídas em desuso, criam-se pontes sonoras dentro para dar uma continuidade musical ao poema como fazia Camões ou os poetas trovadorescos. Uma musicalidade que só se pode saborear convenientemente lendo alto e que está assinalada nas paginas do livro por dois símbolos hebraicos, o “selah” que significa: respiremos ou pausa. Isto diz-nos também que Canícula é um poema continuo, um canto longo onde se volta como Daniel volta a Dylan e às “Visions of Johanna”.
Bisonte publicado em 2016 depois de o autor ter ganho o prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes |
Canícula não é uma habitação fácil de entrar, não é um lugar de acolhimento mas de agonismo, não se oferece como espetáculo ao flaneur. Tal como o habitante da casa, no poema que abre o livro, temos sentimentos frios, sentimos a omnipresença de uma ameaça que vem das paredes, ou da própria cidade. As portas não são fáceis de abrir nesta poesia que exige confronto e superação, quer pelos anacronismos, quer pela forma como anula o Tempo e destrói a geometria do Espaço. Para entrar neste livro não basta nomear Lisboa para se achar num espaço familiar, porque aqui nada é familiar mas sim “uncanny”, de uma inquietante estranheza que nos coloca dentro de uma cidade atual e milenar, anterior a tudo, uma cidade que recusa o romantismo melancólico de Baudelaire e prefere, como Hölderlin, “habitar poeticamente o mundo” apesar das contingências urbanas, da resistência dos materiais e dos corpos e da própria linguagem.
Há muito para não dizer sobre as cidades no tanto que já foi dito sobre elas. A originalidade de Daniel Jonas consiste em abandonar o lugar de espectador para Ser a própria cidade aqui transfigurada numa espécie de Sísifo constantemente vergada sob o calor, o peso. Cidade onde confluem eras, vestígios de glória e impotência humanas, de profetas e desertos e pastores de cabras, de pegadas deixadas num chão um dia mole, de caçadores antropófagos escondidos na esquina de um prédio. Idades extintas, experiências perdidas, visões imperecíveis que a modernidade e as suas máquinas não destroem, ligações que as perceções superficiais do quotidiano não identificam e que constituem uma outra linguagem no interior da linguagem. Daniel Jonas faz essa arqueologia dentro da linguagem para encontrar não as palavras mais transparentes mas as mais densas. As que estão, como a vida, opacificadas por conterem cadeias de significado, reminiscências, semelhanças, analogias. Cada palavra tem uma história etimológica que explode no poema, que resgata mundos perdidos, induz a regressões ou a saltos futuristas. A cidade de Canícula é um caleidoscópio que se pode girar infinitamente para nunca se sair do mistério da poesia.
Esta casa sarcófago, lápide, avalanche,
erosão de vida, buraco branco na explosão de coisa nenhuma,
corrosão infecta, enfermaria, anestésica
do que eu fosse e me curasse,
choque estelar e cósmica comédia de silêncio.
O grito! O grito! O grotto! O grotto!
A brancura hesitando na cama de rede do delírio,
escorrendo pelos ângulos da tarde
como uma marioneta ganhando vida de loucura,
térmites que eu vejo e não disseco, lacraus pulmonares
que me brotam das ideias e eu trem
e eu amo sem parceiro que invada
numa paragem de autocarro que eu passeio
na minha espera lenta de anteontem!”(Canícula, pag.11)
Joana Emídio
Marques, "Daniel Jonas, o antiquado que é o mais alto da poesia portuguesa" in Observador, 2017-04-20,
http://observador.pt/2017/04/20/daniel-jonas-o-antiquado-que-e-o-mais-alto-da-poesia-portuguesa/
http://observador.pt/2017/04/20/daniel-jonas-o-antiquado-que-e-o-mais-alto-da-poesia-portuguesa/