No 11 de Setembro da sua morte.
in memoriam
para o antero de quental
Para
os lados do campo de s. francisco
Pelo entardecer em que tudo está quedo
Acontece ocorrer-me ao pensamento
Ideias vagas e longínquas de suicídio
(é bem certo que tudo na vida é literário
e não o sendo de pouco vale)
Há lugares em que o destino
Espera pacientemente pela hora
Derradeiros gestos e solitários assombros
Confusas ideias sobre o que na vida se reservou
Amigos d’além mar e amores de mais para lá
Sonhos de mudar tudo
E o que mais não se verá
Sonhos vãos e anseios de nada
Encantamentos d’infância
Em azuis d’olhar
Esfria o dia e num banco de jardim
A que só em pensamento ouso sentar
Aconchego-me em sonetos de meditar
E um arrepio de vento trespassa a folhagem
De árvores com olhos de tempo
Uma âncora sustém-me o pensamento
E como folha que o outono faz sua
Deixo-me levar como coisa sem rumo
Num sonho de esperança que não finda jamais
Nem dos anjos se diz tal coisa
É que soçobrar assim é real como
Coisa a que não falta nada
Nem da vida nem da morte
Que tudo sendo pouco é
Já a noite se aproxima
Num sopro frio que tudo invade
Uma tristeza sem fim Uma agrura
Uma dor de ser Um lamento
Uma impossibilidade Uma vertigem
Uma anulação e Um nada querer ser
Subtilíssimos deuses agrilhoados
Irrompem pelas raízes das árvores
Todos
Confluem para aquele banco de jardim
“Antero de Quental - in memoriam, por Fernando Martinho
Guimarães” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 11-09-2019.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/no-11-de-setembro-da-sua-morte.html
Peregrinatio ad Loca Infecta (1969), incluído em Poesia III (1978)
Sobre “quem muito viu…”
Inscrito na seção “Brasil” de
Peregrinatio ad loca infecta (1969), livro dividido em 4 partes mais um epílogo
(respectivamente “Portugal (1950-59)”, “Brasil (1959-65)”, “Estados Unidos da
América (1965-69)”, “Notas de um regresso à Europa (1968-69)” e o poema
“Ganimedes”), o soneto “Quem muito viu…” talvez seja um dos poemas que melhor
dê expressão ao título do livro e seu sentido de peregrinação. Talvez até
possamos pensar que o sujeito deste poema é o próprio movimento, o próprio
peregrinar, numa busca incessante.
Seguindo o trajeto de um
sujeito – singular ou coletivo? – apenas designado pelo pronome “quem”, que
mais oculta do que revela a sua identidade (ou mais revela que oculta, se
pensarmos numa dimensão autobiográfica…), o soneto assinala um movimento contínuo,
materializado no discurso pela enumeração e pela sucessão de orações
coordenadas (“Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,/ mágoas, humilhações,
tristes surpresas;/ e foi traído, e foi roubado, e foi/ privado em extremo da
justiça justa”). Esta acumulação de acontecimentos nem sempre correlatos, mas
todos ligados ao mesmo sujeito, vai como que arrastando o leitor e tira-lhe o
fôlego até poder respirar novamente, no décimo verso, diante do ponto que
finaliza o longo período. Percebe então que este se fecha com uma sentença
radical: o ser que tanto experimentou, ou que, camoniamente, “errou todo o
discurso dos [s]eus anos”, afinal “não sabe nada, nem triunfar lhe cabe/ em
sorte como a todos os que vivem.” Tal declaração (que nos recorda “Tabacaria”,
de Álvaro de Campos, cuja primeira estrofe enfatiza o não ser nada, o não saber
nada) cria enorme surpresa por sugerir a inconsistência ou futilidade daquele
somatório de experiências que o sujeito incorporou ao longo dos tempos. Mesmo o
ter conhecido “mundos e submundos”, mesmo o ter sido tudo, ainda não foi
suficiente e, por isso, em que pese o contraditório, “Apenas não viver lhe dava
tudo.”
No entanto, o poema
prossegue, semelhante a uma profecia, cujo tom não é menos radical que a
afirmação anterior: “Inquieto e franco, altivo e carinhoso, será sempre sem
pátria”. Surge aí o termo historicamente ancorado – pátria – que tudo
esclarece: esse sujeito indefinido será sempre marcado pelos tempos e espaços
do desterro, da condição ex-cêntrica, da condição de exilado, ou seja, do “não
viver”. E, ao fim do poema, em outra afirmação voltada para o futuro, lemos, “E
a própria morte,/ quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.”, a sugerir uma
espécie de sujeito (“altivo”), que, graças à sua trajetória de exílio, de não-vida,
é capaz de ultrapassar a própria morte. Antecipando-se a ela, recusa o
território que ela lhe poderia oferecer – uma espécie de “pátria” da morte – e,
portanto, por ser apátrida acima de tudo, consegue derrotá-la.
“Quem muito viu...,
de Jorge de Sena” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 24-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/quem-muito-viu-jorge-de-sena.html
Jorge de Sena, Poesia 2, edição de
Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa, Guimarães, 2015, pp. 726-727.
QUESTIONÁRIO:
1. Refira
dois dos traços que caracterizam a figura de viajante representada no poema.
2. Indique
o sentido da expressão «vã melancolia» (verso 6).
3. Neste
texto, o sujeito poético realça a diferença entre a sua experiência e a
experiência de outros.
Justifique
esta afirmação, tendo em conta os versos 12 a 19.
4. Explicite
dois aspetos do tema do regresso, tal como é tratado neste poema.
CENÁRIOS DE
RESPOSTA:
1.Na
resposta, referem-se, adequadamente, dois dos traços que caracterizam a figura
de viajante representada no poema, pelo que devem ser desenvolvidos dois dos
tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.
A
figura de viajante representada no poema:
−
sente uma atração irresistível pela descoberta de «vários mundos» (v.
13);
−
conhece bem, por experiência própria, o que é partir e regressar;
− considera
que o facto de muito viajar marca a sua personalidade.
2. Na resposta, indica-se
o sentido da expressão, desenvolvendo, adequadamente, dois dos tópicos seguintes,
ou outros igualmente relevantes:
A
expressão «vã melancolia» (v. 6) remete para:
−
a tristeza absurda de uma despedida em que não se diz adeus a ninguém;
−
a inutilidade de se despedir de um lugar a que se é por completo
estranho;
−
o sentimento de partir de uma cidade onde ninguém lembrará aquele que
parte.
3.Na
resposta, justifica-se a afirmação, desenvolvendo, adequadamente, dois dos tópicos
seguintes, ou outros igualmente relevantes:
O
sujeito poético realça a diferença entre a sua experiência e a experiência de
outros:
−
sugerindo que faz parte de um grupo restrito («Não muitos» – v. 12), com
características próprias;
−
considerando que quem não integra o grupo restrito a que ele pertence
não poderá entender a experiência de «tanto haver partido para longe» (v. 17) e
de regressar, pois não o faz com a mesma frequência nem o sente com a mesma
intensidade;
− supondo
que a sua propensão para a viagem não será partilhada por muitos.
4.Na
resposta, explicitam-se dois aspetos do tema do regresso, desenvolvendo,
adequadamente, dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
Tal
como é tratado neste poema, o tema do regresso convoca os seguintes aspetos:
−
o regresso revela toda a mudança que ocorreu durante a ausência;
−
o pleno regresso é impossível, pois, ao voltar, o lugar que se deixou
encontra-se sempre diferente;
− mesmo
os que aguardam fielmente o regresso de quem partiu já não são os mesmos.
Fonte:
Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa, 11.º Ano de
Escolaridade. Prova 734 (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho; Decreto-Lei
n.º 55/2018, de 6 de julho). Instituto de
Avaliação Educativa, I.P. (IAVE), 2019, 2ª fase.
“Quem fala de partir,
de despedidas, Jorge de Sena” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 20-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/quem-fala-de-partir-de-despedidas-jorge.html
Herberto Helder em Vale de Figueira, Santarém, anos 1960 (José Carlos Lucas/Casa Museu Frederico de Freitas)
Herberto Helder como nunca
viu (ou ouviu)
A mais completa exposição sobre o autor madeirense faz
casa no Funchal até meio de Setembro. Oportunidade para (re)visitar Herberto
Helder: a obra e a vida.
Márcio Berenguer PÚBLICO, 18 de Julho de 2019,
12:13
Herberto
Helder – por sobre as águas. A exposição biobibliográfica sobre o poeta madeirense, que
abre as portas esta quinta-feira no Funchal, reúne todas as primeiras edições
do conjunto de cerca de quatro dezenas de títulos em poesia e em prosa da obra
de Herberto, publicadas entre 1958 e 2018.
A mostra, que estará
patente até 18 de Setembro na Casa Museu Frederico de Freitas, revela também
fotografias inéditas de Herberto Helder (1930-2015), e
correspondência particular entre o poeta e alguns nomes maiores da cultura
nacional como Sophia de Mello Breyner, Eduardo Prado Coelho ou Eduardo Lourenço.
Pela primeira vez, destaca
ao PÚBLICO Diana Pimentel, curadora da exposição, estará acessível o conjunto
das cinco entrevistas dadas entre 1959 e 1968 e uma auto-entrevista feita em
1987. “Revelam, de certa forma, como Herberto Helder foi lido e interpelado à época,
dando a possibilidade aos seus leitores de poderem — pela sua própria voz —
compreender a lucidez, o desassombro e a ironia que Herberto Helder sempre teve
no contexto da poesia portuguesa contemporânea.”
Ao longo da exposição
sobre a vida e obra do autor de Os Passos em Voltaou Photomaton
& Vox, são documentadas factos “pouco conhecidos do público em
geral”, como a apreensão, em 1968, do livro Apresentação do
rosto.
“Autobiografia do autor,
que é de índole esquerdista, escrita em linguagem surreal e hermética que como
obra literária não mereceria qualquer reparo se não apresentasse passagens de
grandes obscenidades (…) Nestas condições entendo que é de propor a proibição
de Circular no País para este livro”, lê-se num
relatório da PIDE em Junho de 1968, que integra o acervo da exposição.
Em Herberto Helder – por sobre as águas é “visível
e legível” a forma “activa e dedicada” com que colaborou com inúmeras edições
de antologias, cadernos e revistas literárias entre os anos
50 e 70 do século passado no Funchal, em Lisboa, em Coimbra e em Paris. “É a
travessia, também por sobre as águas, da sua poesia pelas artes plásticas
(pintura, escultura, fotografia) ou pelo cinema, num diálogo tão antigo quanto
actual”, assinala Diana Pimentel, coordenadora do Núcleo de Estudos Herberto
Helder, da Universidade da Madeira, explicando que os visitantes podem aceder a
materiais multimédia: registos áudio de poemas lidos pelo próprio,
documentários, reportagens e adaptações digitais do trabalho do autor.
A exposição, a mais
completa sobre o autor, que cultivou “a ética de um rigoroso silêncio” sobre o
ofício de escrever, é promovida pela Secretaria Regional do Turismo e Cultura,
integrada nas comemorações dos 600 anos do descobrimento da Madeira e do Porto Santo,
e constituiu uma oportunidade de contactar com o projecto artístico inédito de
Filipa Cruz (Até Os Tempos Não Mais Serem
Interditos), que procura pensar a poesia de Herberto Helder
enquanto comentário à materialidade e à imaterialidade.
“O propósito maior desta
exposição talvez seja o de acompanhar os leitores (iniciais ou experientes) da
prosa e da poesia de Herberto Helder pelas inúmeras águas por e sobre as quais
a sua obra se abre, continuamente, e se expande — e expandirá”, resume Diana
Pimentel, admitindo o espanto contínuo ao montar a exposição. “Mesmo que já estudando a sua obra há algum
tempo, ainda me continua a surpreender a intensidade e a potência do seu
trabalho de escrita, o extremo rigor do seu ofício poético (e editorial) e o
modo como a obra de Herberto Helder, em interacção com os seus contemporâneos e
com gerações anteriores e posteriores à sua, se não acomodou — nem está, ainda,
acomodada — a um tempo.”
Herberto Helder e o pintor Carlos Fernandes. Corimba - Luanda, 1971 (Fotografia de Júlio de Saint-Maurice)
Herberto Helder em Vale de Figueira, Santarém, anos 1960 (José Carlos Lucas)
"Canção" parece recuperar, nos primeiros
versos, uma imagem mental onírica, arquetípica assente em palavras como
“navio”, “mar”, “ondas” - o sonho posto no navio, o navio posto no mar, o mar
aberto com as mãos.
A
evocação lírica inicial precipita, obsessivamente, na vontade de o sujeito lírico sepultar o seu próprio sonho
ou algo que leva no seu interior e precisa que
seja esquecido, que desapareça. O elemento água é utilizado
para realizar a transição do eu lírico, sendo o navio o instrumento dessa difícil travessia.
O poema ilustra a condição negativa do eu poético, já
que nasce do naufrágio (ou do sufocamento) de um sonho, na tentativa de
superação da angústia.
Pode-se
apontar a renúncia como tema do poema, pois o sujeito poético é responsável
pelo naufrágio do seu próprio sonho ("... abri o mar com as mãos / para o
meu sonho naufragar"), renunciando-o ("e o meu sonho
desapareça"). Sem o sonho, o "eu" chega à perfeição, que seria
um estado de quietude, paz, ausência de sofrimento ("... tudo estará
perfeito; / ... meus olhos secos..."). Portanto, infere-se que o sonho, de
alguma forma, provoca a dor e, para evitá-la, é preciso abrir mão dele.
As terceira
e quarta estrofes constituem o centro do poema, onde há uma tensão entre a expansiva
vontade de chorar e o movimento centrípeto de obliterar o desejo dentro de si.
No final
do poema há o estabelecimento da ordem (“praia lisa, águas ordenadas”), mesmo que
haja paralelamente danos no eu (“mãos quebradas”). No universo do poema, o
ciclo está completo, visto que está atingida a meta proposta na primeira
estrofe.
Essa ordem
procurada está assente em “areias desertas”, onde os olhos se tornam “secos
como pedras”. Visto de fora, matar o sonho parece representar uma dura
resignação diante da vida.
Tendo por base a Filosofia Perene, Camila Marchioro apresenta a seguinte interpretação do poema: “primeiro o eu
lírico livra-se dos desejos que, representados pelo sonho, podem referir-se aos
desejos da mente, vontades abstratas. O eu lírico os coloca no navio e os afoga
no mar. O mar, aqui, pode representar a própria mente, ainda turbulenta, cheia
de pensamentos. Depois, os desejos são simbolizados pelas mãos. Nesse caso
pode-se pensar nas mãos como representação dos desejos materiais. As mãos
abriram o mar para afogar o sonho, mas se sujaram com o azul das ondas. [...]
Nesse caso pode-se entender que a turbulência dos pensamentos, dos desejos, das
ondas, contaminou as mãos, que agora pingam colorindo as areias antes desertas,
ou seja, o azul seria mais representativo da ilusão que predomina na mente que
se pretende esvaziar. (MARCHIORO, 2014, p. 107).
Cecília
Meireles, apesar de fazer parte da chamada “Poesia de 30”, não seguiu
rigidamente nenhuma corrente do Modernismo Brasileiro, produzindo uma poesia
lírica, mística e musical. Esta poetisa recorre a versos melódicos, explorando
as possibilidades sensórias num misto de agonia e beleza, para revelar uma dor
profunda, causada pela renúncia de um desejo.
JC
Bibliografia didatizada:
A análise literária, Massaud Moisés. São Paulo, Cultrix,
2007 (16.ª reimpressão da 1.ª ed. de 1969)
"Irmã de um
Fernando Pessoa, de um Rilke, de um Yeats, como eles filha moderna do
simbolismo antigo, é Cecília Meireles daqueles poetas para quem o lirismo é
simultaneamente um cântico e um sortilégio: um cântico em louvor dos deuses
mortos, um sortilégio pelo qual os mesmos deuses ressuscitam. A poesia de
Cecília Meireles é daquelas que invertem, pois, as relações temporais: todo o
efémero se fixa em momentânea eternidade, e todo o perene flui na música que o sustenta
e cria."
Jorge de Sena, 1988, p. 24
* * *
BEIRA-MAR
Sou moradora das areias,
de altas espumas: os navios
passam pelas minhas janelas
como o sangue das minhas veias,
como os peixinhos nos rios...
Não têm velas e têm velas;
e o mar tem e não tem sereias;
e eu navego e estou parada,
vejo mundos e estou cega,
porque isto é mal de família,
ser de areia, de água, de ilha...
E até sem barco navega
quem para o mar foi fadada.
Deus te proteja, Cecília,
que tudo é mar – e mais nada.
Cecília Meireles, Mar Absoluto. Porto Alegre, ed. Globo, 1948
* * *
CECÍLIA
MEIRELES E OS SÍMBOLOS DO ABSOLUTO
"Deus te proteja,
Cecília,/ Que tudo é mar – e mais nada." ("Beira Mar"). O verso
exprime uma característica central da poesia ceciliana: o simbolismo do mar e a
relação deste com Deus. "Tudo é mar e mais nada", em Cecília
Meireles, é referência às suas crenças e filosofias e, ao se colocar como eu lírico
do poema, a autora não deixa margens para dúvidas, afastamentos e elucubrações
críticas, é a própria Cecília, nesse caso, que entende que tudo é mar e mais
nada. […]
A poesia de Cecília Meireles é
contemplativa. O caminho da renúncia, a consciência de que tudo é ilusão fazem
parte do processo de identificação do Absoluto (divino) na obra de Cecília
Meireles. […]
Não satisfeita com o tempo linear do
cristianismo, Cecília encontra nas religiões orientais o sentido de libertação,
pela interioridade, alcançada nesta existência e neste mundo
("this-worldliness"). […]
A propósito disto, Cecília Meireles em
carta para Mário de Andrade diz: "Espero que a sua saúde já esteja
excelente. Pensei em mandar-lhe um "ata-yoga" [hata
yoga], para V. se curar. - respirando
como nós, os faquires... Mas V. podia
rir, e, em magia, o riso é coisa muito perigosa, Mário" (Cecília
e Mário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996,
p. 307). […]
Outra face do hinduísmo presente em
Cecília Meireles é o Advaita Vedanta. […] O Vedanta em si define a natureza da
existência ensinando que o self (Atman)
é da mesma natureza que brahman,
o Absoluto. A percepção desta realidade é obscurecida no homem pela falsa
ideia(vikalpa)
que ele faz de si mesmo e do mundo, impedindo-o de viver a plenitude da
unidade. Nos Upanishads,
a consciência pura, chamada brahman (o
Absoluto) é apresentado como o substrato do universo, a partir do qual aparece
o mundo e também a consciência individual (ahamkara).
Mas todas estas formas, de acordo com o Vedanta, são ilusórias. O mundo inteiro
é a manifestação da realidade última, todavia não é ainda o Absoluto (brahman,
portanto o homem, segundo esta corrente, não deve se perder buscando a verdade
nas coisas aparentes, pois elas são a manifestação do Absoluto, mas não são o
Absoluto em si. Nesse sentido, aquele que busca o Absoluto deve livrar-se dos
invólucros do Eu a
fim de desiludir-se para poder chegar ao Absoluto. Entretanto, esta substância
"que é", sem predicados, subjaz a tudo, é a essência última de tudo,
mas não pode ser apreendida materialmente. […]
A proposta mística de Cecília foi
enriquecida por meio de leituras sistemáticas, tanto de textos tradicionais
hindus, quanto de escritores indianos. Segundo Dillip Loundo (que teve acesso à
sua biblioteca) a autora leu desde a literatura sânscrita, clássica e antiga:
os épicos Ramayana e
Mahabharata; os textos
dos Vedas e Upanishads,
os Sutras, fábulas
e sagas históricas. Passando pelo teatro e poesia, traduziu poetas místicos como
Kabir, Mirabai e Tulsidas, clássicos como o livro de Simbad
e As
Mil e Uma Noites. Além disso, leu muitos orientalistas
franceses e também se deteve no folclore regional de algumas regiões da Índia.
Leu escritos como os de Ramakrishna, Vivekananda, Aurobindo Gosh, Sarojíni
Naidu, Abhay Khatau, entre outros. Dessas influências, as mais marcantes foram a
do poeta ganhador do prêmio Nobel de 1913, Rabindranath Tagore, e a de Mahatma Gandhi
[…].
A autora diz no livro O
que se diz e o que se entende, em
"Meus orientes":
O Oriente tem sido
uma paixão constante na minha vida: não, porém, pelo seu chamado
"exotismo" - que é atração e curiosidade de turistas - mas pela sua
profundidade poética, que é uma outra maneira de ser da sabedoria. Como se
cristalizou em mim esse sentimento de admiração emocionada por esses povos
distantes, não é fácil de explicar em poucas linhas. Mas foi uma cristalização
muito lenta, dos primeiros tempos da infância. E lembro-me nitidamente desses
antigos encontros, que me deixavam tão pensativa e interessada, antes que eu
pudesse adivinhar, sequer, a sua significação. (MEIRELES, 1980, p. 36).
[…]
Neste trabalho utilizaremos para denominar esse algo
imaterial e universal, o termo Absoluto,
pois é o mesmo termo utilizado por Cecília Meireles, foco das análises desta
dissertação. […]
A partir de Viagem
(1939), o Absoluto passa a ser buscado
e identificado no mesmo universo do eu-lírico, sendo simbolizado pela música,
mar, e encontrado no confronto do eu-lírico consigo mesmo. Nesse sentido, a
segunda fase da obra da autora pode ser mais bem analisada tendo como base a
outra interpretação de Platão, a "thisworldliness", aquela na qual
não há dualismo separando o mundo real de um ideal. […]
Como, então, evidenciar as articulações
de sentido do Absoluto através da multiplicidade dos símbolos? Tem-se em
Cecília, como veremos, construções como a que segue: "bateu-me a palavra
na boca,/ e depois no teu ouvido./ Levou somente a palavra,/ deixou ficar o sentido".
Esse "sentido" pode se referir ao Absoluto, e está relacionado à
outra interpretação de Platão, aquela a que Lovejoy denomina de "thisworldliness".
Essa segunda linha de interpretação de Platão compreende um único
mundo.("Canção", In Viagem).
Lovejoy defende que a correta
interpretação de Platão é a "thisworldliness". Segundo Lovejoy, o
mundo sensível nunca foi, para Platão, mera ilusão. Nada na diversidade da
natureza é deixado de fora, tudo é simplesmente projetado em outro reino do ser
onde cada elemento pode ser mais bem apreciado esteticamente, essa é a noção de
"cadeia do ser". O que aparece é. Significa dizer também que não há
nada a ser alcançado além do que já aparece, nada a ser feito (diferentemente
da corrente que pretende encontrar algo para ser contemplado), portanto só se
pode ser, ou, no máximo, e onde reside toda a dificuldade, relembrar que é. Nas
palavras de Cecília Meireles: "só resta renunciar", renunciar para
ser, ou ainda: "sem noção do mal nem do bem/ — jogo de pura geometria/ que
eu pensei que se jogaria/ mas não se joga com ninguém"
("Despedida", In Viagem).
Daí deriva a ideia de "plenitude", pois, com base nessa interpretação
das ideias de Platão, o universo é completo (pleno), porque se constitui de uma
diversidade máxima de formas, em que todas as formas possíveis tornam-se
atuais.
Esse modo de ler Platão auxilia nas
análises e interpretações dos poemas de Cecília compreendidos nos livros Viagem,
Vaga Música e Mar
Absoluto. Torna-se profícuo o suporte na
interpretação "thisworldliness" de Lovejoy sobre Platão uma vez que,
nos livros supracitados, não havendo uma identificação total do eu-lírico com o
Absoluto, este pode ser apreendido nas formas do mundo natural, principalmente.
Aqui, também, pode-se compreender um pouco a preferência de Cecília Meireles
por temas desvinculados do quotidiano da cidade, pode-se vislumbrar uma leve
explicação para o fato de a autora não se atrelar aos temas urbanos da poesia
modernista que se consolidava contemporaneamente à sua obra: o urbano do
modernista era já criação humana, não estando nem o eu-lírico ceciliano
(representação do humano)identificado com o Absoluto, quem dirá as suas
criações urbanísticas. O eu lírico da poesia de Cecília vê, portanto, na
natureza a possibilidade de encontro com o divino Absoluto e, por isso talvez,
a opção de não trabalhar com os temas urbanos. Nesse sentido, a ideia de
"Cadeia do Ser" cabe para analisar os três primeiros livros da fase
madura da autora, ou seja, é possível encontrar nos poemas desse período a
presença no mundo natural de algo que reporta ao divino. […]
O termo "realidade
transcendente" pode vir a causar enganos, dado o que se vem tentando
formular aqui para as análises da poesia ceciliana na sua fase madura. Esse termo
pode sugerir a ideia da existência de um mundo separado, portanto aqui se tenta
demonstrar que, na segunda fase da poesia de Cecília Meireles, não há mais a
ideia de um outro mundo a ser alcançado pelo eu lírico, mas o Absoluto pode ser
identificado nos elementos deste mundo, como pela música, por exemplo. […]
A poesia de Cecília é, nesse sentido,
predominantemente simbolista. Um dos modos de falar poeticamente do Absoluto
(além do casamento místico) é utilizando-se de símbolos. A predominância
mística exige que o referente dos símbolos utilizados na poesia de Cecília Meireles
esteja nas religiões e filosofias. É calcando-se nisso que esta dissertação propõe
como base teórica a Filosofia Perene no lugar de basear-se somente na própria crítica
literária e nos símbolos utilizados por poetas anteriores. […]
Leodegário A. de Azevedo Filho mostra
que temas como o amor desencontrado, solidão, desencanto, renúncia e
indiferença são elementos estéticos constantes nesse livro (AZEVEDO FILHO,
Leodegário A. Poesia e Estilo de Cecília Meireles.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1970, p.62). Esse caminho, da desilusão à
renúncia, da solidão à indiferença, é bem aquele constatado pela Filosofia
Perene nas práticas que visam a preparar o sujeito para o encontro com o
Absoluto. Nesse sentido, Vaga Música abre
o caminho para que o navegador peregrino (serena desesperada) possa de facto,
após eliminar seus desejos e completamente desiludido, mergulhar em Mar
Absoluto e Outros Poemas. A fim de exemplificar
a busca pela eliminação dos desejos em Vaga Música segue
a análise:
Canção
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
(Vaga Música, 2001, p. 237-239).
Note-se que todos os versos são
octassílabos regulares. Leodegário A. de Azevedo Filho entende que na primeira
estrofe há "nota inicial de desencanto" (AZEVEDO FILHO, 1970, p. 45).
Todavia, apesar do aparente tom de desencanto, é o próprio eu-lírico que afunda
o sonho no mar com
as próprias mãos.
Nesse sentido, e o que se comprova com o verso "Chorarei quanto for
preciso", é ele mesmo que deseja afundar seu sonho, o ato é proposital.
O sonho, na primeira estrofe, pode ser
lido como representação dos desejos. Ao colocá-lo em um navio e afundá-lo com
as próprias mãos, o eu-lírico está se desvencilhando de seus desejos. Segundo o
Vedantasara, a união
amorosa do coração com o Absoluto (o casamento místico que vinha sendo
representado na primeira fase) não é suficiente para que se chegue a Ele.
Para chegar ao Absoluto é necessário
livrar-se do aspecto individual de nossa ignorância. Para realmente se chegar
ao Absoluto é necessário passar por várias disciplinas, sendo algumas delas as
seguintes (segundo Heirich Zimmer): aparigraha:
renúncia a todas as posses que prendem ao mundo e ao ego, as quais constituem
um obstáculo no caminho da meditação; santosa:
contentamento com o que lhe acontece, equanimidade ante o conforto e o
desconforto e a toda espécie de acontecimentos ; e tapas:
indiferença com respeito aos extremos de calor e frio, dor e prazer, fome e
sede, etc. As necessidades e desejos do corpo devem ser dominados, para que não
distraiam a mente na sua busca pelo Absoluto (ZIMMER, Heinrich. Filosofias
da Índia. Trad. Nilton Almeida Silva, Cláudia
Giovani Bozza e participação de Adriana Facchini de Cesare. São Paulo: Palas
Athena, 2008, p. 305).
Ainda se deve passar por mais
obstáculos, sendo o terceiro deles chamado kasaya,
que se refere ao apego aos objetos mundanos, paixão, emoção. Essa palavra é
usada no Vedanta para expressar um estado de ânimo
que impede aquele que quer alcançar o Absoluto de fazê-lo, porque a atividade
de sua mente está voltada e perdida em suas paixões, gostos e desgostos. Assim,
podemos entender o poema de Cecília Meireles como uma metáfora para o esvaziamento
da própria mente.
Primeiro o eu-lírico
livra-se dos desejos que, representados pelo sonho, podem referir-se aos
desejos da mente, vontades abstratas. O eu-lírico os coloca no navio e os afoga
no mar. O mar, aqui, pode representar a própria mente, ainda turbulenta, cheia
de pensamentos. Depois, os desejos são simbolizados pelas mãos. Nesse caso
pode-se pensar nas mãos como representação dos desejos materiais. As mãos
abriram o mar para afogar o sonho, mas se sujaram com o azul das ondas.
Leodegário A. de Azevedo Filho assinala que o azul, neste poema, pode ser lido
como símbolo de inocência, ilusão e esperança. Nesse caso pode-se entender que
a turbulência dos pensamentos, dos desejos, das ondas, contaminou as mãos, que
agora pingam colorindo as areias antes desertas, ou seja, o azul seria mais
representativo da ilusão que predomina na mente que se pretende esvaziar. Entretanto,
enquanto isso, o sonho se afoga, no extremo esforço do eu-lírico para aniquilá-lo:
"Chorarei quanto for preciso,/ para fazer com que o mar cresça,/ e o meu
navio chegue ao fundo/ e o meu sonho desapareça". Fazer crescer o mar
significa desapegar-se de pensamentos mundanos que devem ser deixados para traz
a fim de não obstruir o caminho em direção ao Absoluto. O mar, que remete ao
próprio pensamento, deve estar só e calmo.
Tendo desaparecido o sonho,
tudo estará perfeito. Mas como o azul da ilusão contaminou as mãos é necessário
quebrá-las. De mãos quebradas e olhos secos o eu-lírico finalmente estará
pronto para ir a caminho do Absoluto. "Olhos secos" remete à morte,
os vivos têm sempre olhos húmidos. Sob esse aspecto, retomamos a ideia de morte
já presente nos escritos de Festa, ou seja, a morte como metáfora para o aniquilamento do ego.
Este poema pode ser lido
como uma metáfora para a meditação, e pode ser comparado ao poema de Bashô,
traduzido pela própria Cecília Meireles:
Velho tanque.
Uma rã mergulha.
Barulho da água.
(In. Escolha o seu sonho, 1974, p. 13).
No poema de Bashô, apesar
da simplicidade, a ideia é bastante complexa. A água tem como caraterística ser
velha e está há muito parada, contida em um recipiente com forma de réptil.
Lembra-nos, então, que a Kundalini é representada pela figura da cobra.
Bashô, sendo praticante de
Zen Budismo, provavelmente conhecia esse simbolismo. É a ascensão da Kundalini através dos
chakras que
leva à libertação, encontro com o Absoluto. Talvez a rã, em Bashô, represente a
movimentação da Kundalini. O movimento ruidoso da rã permite reconhecer o transitório e o
eterno, que não se antagonizam, e se unem num instante único.
São esses elementos que
estão postos na poesia de Cecília Meireles. A consciência do eterno e o
entendimento da multiplicidade: "Múltipla, venço/ este tormento/ do mundo eterno/
que em mim carrego:/ e, una, contemplo/ o jogo inquieto/ em que padeço."
("Auto Retrato", In Mar
Absoluto e Outros Poemas).
Outro elemento que
corrobora para que a água seja, neste poema, representativa do próprio
pensamento é o fato de isto ter sido usado de modo mais explícito na poesia de
Cecília Meireles, em "Medida da Significação", de Viagem. Ocorre no primeiro verso:
"Procurei-me nesta água da minha memória/ que povoa todas as instâncias da
vida". Aqui a memória é tratada como água e a água permeia tudo, como o
Absoluto. Portanto, podemos entender que dentro de si mesmo o eu lírico procura
a si própria na água que tudo permeia. É o entendimento de que o Absoluto, como
a água, é a essência de tudo e de que, de algum modo, o eu-lírico está contido
nisso, podendo encontrar-se ao encontrar o Absoluto.
Tanto o poema de Bashô
quanto o de Cecília Meireles representam a meditação, mas em estágios
diferentes. No de Bashô a água já está calma e os desejos superados. No poema
de Cecília Meireles esse estado é alcançado apenas na última estrofe. O olho, caracterizado
como pedra, representa a ausência de sofrimento e sentimento, a morte do
próprio ego. As "mãos quebradas" são símbolo da eliminação dos
desejos. As mãos quebradas não podem pegar nada, alguém de "mãos
quebradas" não pode agarrar-se a nada. Assim, o eu-lírico vai em busca da
perfeição "das águas calmas" Nesse sentido, a perfeição da mente está
simbolizada pelo mar calmo, mãos quebradas e olhos de pedra, que significam a
mente aquietada e vazia, a meditação profunda que permite chegar ao Absoluto
num mergulho para dentro de si mesmo.
“Pus o meu sonho num
navio - Canção de Cecília Meireles” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 17-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/pus-o-meu-sonho-num-navio-cecilia.html