sábado, 9 de novembro de 2019

Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Mapas o Assombro a Sombra, de Manuel Gusmão


por Eduardo Prado Coelho



NÓS NESTA PRAIA EM QUE O SÉCULO FINDA TEMOS SEDE

1. O segundo livro de poesia de Manuel Gusmão prova o que já sabíamos: estamos diante de um dos grandes nomes da nossa poesia contemporânea; e podemos encontrar aqui alguns dos poemas indiscutivelmente imprescindíveis em qualquer panorama da poesia portuguesa do século XX. Só certos aspetos da personalidade do autor (enorme discrição mediática, incansável empenhamento político, atitude exemplar de pedagogia universitária e imagem de crítico que ensaia passar para a criação) impediram até agora o reconhecimento plenamente adequado do seu trabalho poético. Mas a leitura de "Mapas o Assombro a Sombra" (Ed. Caminho) desfaz quaisquer dúvidas ou reticências.


Numa primeira aproximação somos sensíveis à complexidade de uma sintaxe que não hesita em mobilizar os mais diversos recursos: o jogo entre maiúsculas e minúsculas, a utilização dos dois pontos e do ponto e virgula (às vezes em situação de transporte), criando modalidades sempre desconcertantes de articulação ou sobreposição; um permanente deslizar de múltiplos planos que se relançam incessantemente ("É talvez que beleza seja / uma palavra que esconde uma outra"); o não hesitar em utilizar construções de aparência defeituosa (como nos versos anteriormente citados); o uso premeditado de ruturas tipográficas ("sagrad/ a fúria"); o diálogo permanente com interlocutores que se desdobram mas que convergem invariavelmente para um “tu" que se propõe como suporte da própria arquitetura poética ("Quem o quê tu?"); a utilização de vários idiomas ("Laura é a minha Beatrice, he said./ Ma io non sapeva"); a quase invisível mas incessante intertextualidade (de Camões a Sá de Miranda, de Ovídio e Lucrécio a Leopardi, de Ezra Pound a Dickson); a espantosa capacidade para integrar no fluxo poético as expressões mais polemicamente prosaicas (“Contra a enorme cegueira do ódio, contra o opressivo barulho e/ estúpido da ‘economia de mercado', canta").
Estamos assim diante de uma poesia de grande densidade de referências culturais, de imensa capacidade aulo-reflexiva, mas, ao mesmo tempo, pura, desinibida, frugal, cantante, fluente, contagiante e mágica. De um pudor extremo, cercada de palavras por todos os lados, mas também intensamente física, quase obscena ("fratura exposta ao assombro").
2. Mapas. No título e na capa: Theatrum orbis terrarum, Abraham Ortelius, 1570. Está certo: partindo muitas vezes das situações mais quotidianas (um quarto, um jardim, uma casa), esta poesia percorre, como botas que ela fosse de sete léguas cósmicas (e lembro aqui os admiráveis poemas sobre a infância: "as letras da noite, a mão do pai.// Ou então é o candeeiro sobre a mesa:/ aquecida a lâmpada, os peixes de cores/ começam o seu canto eletrificado. Começam/ a ondular à volta e sobre a flora colorida do fundo/ do mar, que roda em sentido contrário./ A velocidade crescente. Todas as cores.// Não é um aquário./ Não é um filme, Não é o fundo do mar.// Não é um sonho. É a noite do candeeiro / Como uma árvore que expande a folhagem/ o fósforo o néon o halogéneo aqui"), esta poesia percorre, repito, o mundo inteiro, a orbe terrestre: é “a forma expansiva da manhã".


Recordo que a pulsão cartográfica exige um olhar que se faça de cima, a distância da realidade, mas suficientemente perto para a poder reconhecer e reproduzir. Estamos num entredois, que impõe a experiência do voo. De Ovídio, nas "Metamorfoses", aqui presente e convocado, poder-se-á evocar Dédalo encerrado no labirinto do seu palácio de Minos (o tema do labirinto aqui também produtivo, embora por vezes na conotação positiva da (con)fusão amorosa: "Com as mãos/ perdidas desfazes a imagem à espera// que a parede se abra. Será a última/ parede do labirinto?"), mas também seu filho, Ícaro, a quem se recomenda que voe entre as ondas do mar e o Sol, mas não tão perto do Sol que a cera das asas se derreta. De igual modo o livro de Manuel Gusmão se equilibra entre a sombra e o assombro, investindo-se no tema do voo ou do salto (reminiscência possível de Carlos de Oliveira): "as mãos dançam no teatro da água/ sobem ao encontro da queda que voa".

EX06 (untitled). Artist:  Tomasz Alen Kopera. Movement:  magical realism. Type:  oil on canvas. Dimensions:  100x120cm / 39x47in. Year:  2021


3. Da compacta temática amorosa desta poesia, concentrada na teia de cumplicidades entre as mãos, os corpos e o mundo, acelerada pela cumplicidade das artes (a música, a literatura, o cinema, a pintura de um nome, o filme da música, o trabalho da mão mental: "a mão escreve na mente"), apurada na consciência de uma "alegria mortal", emerge o tema da construção do Terceiro, já introduzido desde o título no livro anterior: dois sóis, a rosa. Ou por outras palavras: "o brilho inapagável de um gesto suspenso/ e depois a bruma no lugar do rosto que lá não está/ não sabemos nunca como repetir tal brilho// nem como pedir-te essa metamorfose do terceiro corpo/ que voa oblíquo sobressalto destes dois nossos/ e incandesce no passado que toda a morte não promete."
Amor, ou poesia, ou o corpo pianista, ou o quadro, ou o filme, ou a luta pela liberdade. Em todas estas práticas – e o intransigente materialismo do autor, amante da manhã terrestre ("Não é o sagrado. É o fragmento de uma paisagem terrestre./ Há na música o modo da utopia que reconheces: é que// é aqui e agora") reconhecer-se-á na palavra "prática" – se constrói a arquitetura do mundo, isto é, as figuras do fogo, a praia, a manhã ("de repente a noite rasga-se e surge uma praia"). E "o que é esta praia Uma pausa na dança/ A anca no sono o espanto da dança" – "amigos não sabemos o que esta praia desata".
São estas "as manhãs da noite". Admiravelmente descritas na sua fragilidade e evidência, a evidência da alegria, mas sobretudo na sua contingência (à maneira de Althusser, um materialismo do aleatório, uma afirmação tanto mais (im)provável quanto mais contingente, uma prática do clinamen: "canta a contingência do comunismo que vem"). Porque nunca o Terceiro é o lugar da síntese. Se alguma coisa suporta esta tragicidade eufórica e partilhável, e partilhada, é o sentimento da incoincidência que legitima o prazer da repetição: "Mas há um intervalo e uma mudança de voz: aqui e agora não coincidem. E depois repetem-se noutra figura." Porque, como se diz admiravelmente no mais deleuziano dos versos humanos, "o atraso é/ uma diferença de velocidade nos mundos do mundo", e o homem é, ou está, estruturalmente em atraso: "Nunca chegarás à hora de nascer e contudo/ nasces. Nunca chegarás e isso dança. Isso chama por um nome/ qualquer, sem nome." E assim o assombro – um lugar precário onde se celebra a "ardente perfeição das coisas: "E/ cada coisa usa em seu redor a sombra/ como uma aura própria." E, portanto, quando a surpresa se declina, e sobre nós se inclina, a surpresa "não parece real: Esse é/ um dos espantos com o real. É que não se parece." Daí que as comparações possam ser simples paragens na alegria do aparecimento: “um avião belo como um avião".
4. Estes poemas foram escritos entre 1989 ("nós nesta praia em que o século finda temos sede") e 1993 ("à espera da manhã terrestre"). Segundo leio, a tiragem do livro é de 600 exemplares. Amigos da Caminho, ponham seis mil. E será pouco.

Nós nesta praia em que o século finda temos sede”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras & Sons do jornal Público. Sábado, 23 de março de 1996, p. 12.


Nota:

Clinâmen: Do latim clināmen, «inlinação; pendor». Nome masculino. 1. FILOSOFIA teoria desenvolvida por Lucrécio a partir da doutrina de Epicuro, que consiste num desvio imprevisível dos átomos, causado por um pequeno movimento aleatório lateral 2. tendência de um escritor para se afastar da influência dos seus antecessores literários. (Fonte: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/clin%C3%A2men)





CARREIRO, José. “Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Mapas o Assombro a Sombra, de Manuel Gusmão”. Portugal, Folha de Poesia, 09-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/mapas-o-assombro-sombra-de-manuel-gusmao.html



sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Jacinto do Prado Coelho, por Eduardo Prado Coelho



TU

1. O recém-criado Instituto de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa realizou na semana passada, nas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian, um colóquio sobre "Os Sentidos e o Sentido", que constituiu simultaneamente uma homenagem a Jacinto do Prado Coelho. Deve-se a iniciativa a Ana Hatherly, apoiada por Silvina Rodrigues Lopes e Artur Anselmo. Na sessão inaugural, em que estiveram presentes o prof. Ferrer Correia, pela Fundação Calouste Gulbenkian, o dr. Ruy Vieira Néry, em representação do Ministério da Cultura, e responsáveis da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, ouviu-se uma mensagem de Manuel Maria Carrilho, atual ministro da Cultura, e houve intervenções de Ana Hatherly, Ferrer Correia, Ruy Néry, Eduardo Lourenço, Luciana Stegagno Picchio, Robert Bréchon, Maria Alzira Seixo e Onésimo [Teotónio] Almeida. Pediram-me também que falasse. Tentei falar -assim.
2. A primeira palavra é: obrigado. É a mais fácil, é a mais justa, é a mais espontânea.
Depois, as coisas complicam-se: como falar de Jacinoo do Prado Coelho – pai. Como Jacinto do Prado Coelho? Isto é, como um nome que se estabilizou, que se autonomizou, que se classicizou no âmbito dos estudos literários, dos estudos da literatura comparada, dos estudos de literatura portuguesa. Ou como pai? Como Jacinto do Prado Coelho, é possível um discurso sereno, reconhecido, de admiração e gratidão, de análise dos textos e do percurso. Um discurso que, imprescindível, parte no entanto do pressuposto de que alguém, ele, desapareceu.
No entanto, desde algumas semanas que uma frase se me impõe, obsessiva, dessas que se não apagam, sempre que penso escrever esta intervenção. A frase não é minha, disse-ma um amigo recentemente, um amigo abatido pela morte da mulher, que em Paris me contava como às vezes, diante da uma montra, ou ao olhar um livro, se esquecia de que ela tinha desaparecido, e começava a conversar. E ele dizia-me: ''É muito difícil fazer desaparecer uma pessoa."
É. É muito difícil fazer desaparecer uma pessoa. É preciso muito trabalho, e nunca se está certo de ter conseguido. Eu, por exemplo, se falar de Jacinto do Prado Coelho como pai estou certo de que ele não desapareceu. Que persiste como aquele resiste a ser apenas um nome estável de quem os outros falam. Ele, apenas.
Talvez contando seja mais fácil. Na memória mais antiga recordo o silêncio. "Não se pode fazer barulho", diziam-me, "o pai está a trabalhar". "Para a tese ", acrescentavam. Devia ser ainda Camilo, devia ser já Pessoa, mas foi sempre assim, pela vida fora. Eu brincava, lia imaginava batalhas, jogos de futebol, emissões radiofónicas, e à minha volta o silêncio do pai a escrever -nunca, ou raramente, à secretária, em sofás, com montes de papéis em redor, e livros pelas cadeiras. Aliás, os livros iam ficando em cima das cadeiras, disponíveis, e a minha mãe dizia -esta é talvez a segunda recordação –: “nesta casa ninguém se pode sentar". Todos os dias chegavam livros, a casa era invadida pelos livros, os livros devoravam os espaços e eu começava a ler os livros que devoravam os espaços, e lia ao acaso das cadeiras. Posso assim contar duas coisas mais: que o meu pai nunca impunha a leitura de um livro, lê este em vez daquele, e nunca desaconselhava a leitura de um livro. Deixava que as cadeiras decidissem – e eu lia. Lembro-me também dos alunos do pai, aqueles que o iam regularmente visitar e com quem eu ia falar às vezes à sala, e desses alunos, assistentes, amigos, havias dois que eram para mim os alunos do Pai: o David e o Urbano.
Lembro-me de que chegavam no correio uns cadernos de uma associação de amigos de Romain Rolland. E que chegavam livros da Galiza, que me irritavam, porque não os entendia bem. E que o meu pai com frequência falava de Montaigne. Mais tarde percebi que tudo isto traçava o retrato de um racionalista, de um humanista, de um cético, de um voluntarista Cético, sim, e ele explicava: “só sei que nada sei". Mas depois aderia a causas com uma quase ingenuidade, acreditando nos homens para além daquilo que me parecia razoável. Lembro-me de ele me levar ao futebol, mas ele só ia a jogos internacionais no Estádio do Jamor. E um dia, perante os gritos de ódio a que eu assisti, tinha dez anos, por causa de um árbitro que amplas massas qualificavam de "gatuno", eu perguntei a mim mesmo se os homens em quem ele, o pai, acreditava, eram os mesmos que vociferavam com os olhos em chamas. E sentia-o frágil, como se os livros fossem um lugar de fragilidade. E tinha vontade de o proteger no seu humanismo – para que ele não ficasse desiludido.
Lembro-me ainda de ele me dizer que desde os oito anos que não conhecia nenhum outro regime senão o de Salazar. Lembro-me do modo como apoiou as greves de 62, como ficou num carro durante a noitada [na] Cantina à espera que eu estivesse disponível para regressar a casa já de madrugada. Lembro-me ainda como, quando eu ficava encarregado de distribuir comunicados da RIA ou panfletos da Associação de Letras, ele queria acompanhar-me de carro, e ficava na esquina de faróis apagados, no escuro e no frio. Lembro-me de como aceitou sem qualquer reserva que o jornal AGORA dissesse que "o filho de Jacinto do Prado Coelho esconde panfletos no gabinete do pai na Faculdade" – o que era verdade, aliás. E eu tinha medo de que os estudantes fossem longe demais, e que um dia ele me dissesse: isto já não! Que aquele humanismo tivesse limites. Mas aparentemente não. Foi assim no 25 de Abril. Muitas vezes receei que episódios absurdos, como a ocupação dos gabinetes dos professores, lhe provocassem um "basta" indignado, mas isso nunca aconteceu. Cético, racionalista, humanista, tinha uma enorme capacidade de aceitar a diferença e a novidade. Um dia tremi, quando numa Assembleia Geral da Escola, um aluno (aliás, um amigo meu) se levantou e disse: "Ó Jacinto, tu..." Ele sorriu, e estranhamente ficou feliz.
Tu. Se refletir um pouco sobre o que se passava à minha volta em relação a ele, posso verificar que quase ninguém o tratava por tu. Nem eu. Só mais tarde a Alexandra, a neta. E que ele produzia uma espécie de distância, que vinha de ser pai para todos em todas as circunstâncias, mas eles, os que não eram filhos por não terem ido ao futebol com ele nem jogado ao berlinde no corredor da casa, sentiam o pai na distância absoluta de um Pai. Diziam: “vou falar ao teu pai, estou cheia de medo". Contudo, o meu pai tinha uma enorme nostalgia do tu, de uma fraternidade calorosa que o meio e a educação lhe tinham subtraído um pouco. Lembro-me de um dia, depois de uma crítica minha num jornal em que eu usara um tom extremamente feroz, me disse: "mais importante de que um livro ser bom ou mau é não magoarmos as pessoas. É tentarmos perceber o que elas pretendiam fazer". Daí que o título do livro que lhe foi oferecido (belissimamente inventado, dizem-me, por Margarida Barahona) – com um rosto na capa em que a doença criava, de ele a nós e de nós a ele, um sentimento de desamparo e aflição – estivesse certo: afeto às letras. Era um professor com a nostalgia do afeto, sempre me falou de Sebastião da Gama, sempre admirou o modo como a certa altura Lindley Cintra convivia com os alunos.
Poderia continuar indefinidamente, e contar, a partir dos contos que se desprendem da memória do meu pai nunca desaparecido, a minha história, a história de duas gerações e a história do mundo. Contar contando com os atropelos e as contradições de uma narrativa sonâmbula. Escolhendo a "via do conto", para seguir o conselho que um dia recebi do poeta Jacques Roubaud, quando ele escreveu: "se os mundos fossem contos, e os seus habitantes contadores, e não apenas os seus seres mas tudo, todas as coisas, todas a contar as suas histórias, contadas haveria lugar para mundos em que os contraditórios seriam verdadeiros, em que eu diria 'tu estás vivo, tu morreste', e rindo tu responderias".
Tu. Tu, pela primeira vez.


Tu”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 27 de janeiro de 1996, p. 12.



CARREIRO, José. “Jacinto do Prado Coelho, por Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 08-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/jacinto-do-prado-coelho-por-eduardo.html


quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre David Mourão-Ferreira, um admirável leitor de poesia

por Eduardo Prado Coelho


UM ADMIRÁVEL LEITOR DE POESIA

1. Os primeiros versos eram assim: "Esse baixel nas praias derrotado / foi nas ondas Narciso presumido". Era um famoso soneto da Fénix Renascida, sobre a fragilidade da vida humana. Para nós, estudantes universitários de literatura, seria apenas mais um desses bordados barrocos em que o sentido se evaporava na acumulação das palavras. Foi então que o professor leu. Não leu apenas as palavras, leu verdadeiramente o poema. Melhor: não leu apenas um poema; disse-nos, através das palavras do poeta, toda a fragilidade da vida humana. Pouco a pouco, o texto poético transformava-se num quadro cheio de lugares vazios, que as palavras, inevitáveis, certeiras, absolutas, vinham preencher. Começámos a perceber que ler um poema não é envolvê-lo numa toada maís ou menos arfante e indiferenciada, mas um percurso inteligentemente preciso, em que a voz explicita as camadas de sentido, as suas flutuações, os pontos de equívoco e desequilíbrio. Começávamos a aprender a ler poesia – a ler verdadeiramente a poesia, isto é, essa linguagem de todos os dias subitamente intensificada para melhor se tornar cúmplice da intensidade que inconscientemente existe em nós próprios.
Depois, o professor começou a analisar o poema. Alguns, incuravelmente românticos, no sentido mais pejorativo da palavra, pensavam que um poema só existia como joia sagrada, flor selvagem, que se não pode tocar sem risco de destruição. É verdade que sendo a poesia o mais alto dizer, nas imediações do sublime (como o mesmo professor nos explicaria a propósito do Pseudo-Longino), nenhum dizer vai mais longe do que o do próprio poema. Mas essa altura e essa distância não nos são dadas à partida; pelo contrário, ganham-se no trabalho da leitura, constroem-se, adquirem-se.
O que o professor nos ensinava era precisamente o modo de construir em nós o poema que já existia antes de nós. Ensinava lendo, e ensinava pela análise do poema: a leitura oral do poema, na nitidez solar da voz, era apenas o resultado da leitura analítica do poema. Uma não ia sem a outra, leituras de uma só leitura.
O nome desse meu professor na Faculdade de Letras de Lisboa era David Mourão-Ferreira. Dos anos 60 até hoje, David continua a ser um admirável leitor de poesia.


2. Querem uma prova? É simples. Comprem um disco recente: poemas de David Mourão-Ferreira ditos pelo próprio, sob o título de Um monumento de palavras. São 35 poemas, traçando uma espécie de arco autobiográfico, escolhidos e "montados" com extrema inteligência, porque permitem a hábil dosagem de todas as dimensões essenciais da obra de David Mourão-Ferreira, segundo uma espécie de pulsação profunda que transforma estes textos numa espécie de poema único. Quase todos as poesias foram escolhidas na Obra Poética (1948/1988), na edição da Presença (curiosamente, o texto lido nem sempre corresponde à versão do texto escrito: é o caso do final da ''Xácara dos campos deElvas").
Uma nota de David Ferreira, filho do autor, e responsável por esta edição, esta "gravação doméstica", como ele próprio diz, explica-nos que o trabalho se realizou em casa do poeta, e por isso tem imperfeições. "Podem ouvir-se, aqui e além, uma folha de papel, o movimento na cadeira, um carro a passar lá fora ou o vento a entrar pelas frinchas da janela". Os leitores de David vão talvez lembrar-se: "Eram, na rua, passos de mulher. / Era o meu coração que os soletrava / Era na jarra, além do malmequer, / espectral o espinho de uma rosa brava… // … // Era o ladrar dos cães na vizinhança. Era, na sombra, um choro de criança.". Por isso, a cadeira, o carro, o papel e o vento, como no poema da Fénix Renascida, dizem apenas, e uma vez mais, a fragilidade da vida humana. Estão certos na gravação, como as palavras no texto. São o incessante ruído de fundo da nossa existência: "as cigarras de Cnossos", “este canto rouco rouco / das cigarras de Cnossos".
3. Os meus pais levavam-me a ouvir recitais de João Villaret. Era uma maneira de dizer que reconduzia o poema ao espaço do teatro, tornando-o dolorosamente palavroso e incomodativamente dramático. Veio depois o modo austero, a prática jansenista de inscrever o texto na voz, deixando todos os efeitos ao cuidado de quem escuta. É claro que há textos e textos, e nós percebemos que é mais fácil ler em voz alta Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro (mais fácil, mas mais arriscado) do que ler Ricardo Reis. Luís Miguel Cintra, em múltiplas e modelares leituras de poetas clássicos e contemporâneos, tem escolhido a via intermédia entre a histeria e o recalcamento. No caso de David Mourão-Ferreira, o paradigma é o mesmo: essencial é que as palavras existam, uma a uma, sem falhas, sem esmagamentos; e depois é preciso que o som das palavras, o corpo sonoro das palavras, seja ele próprio significante e que isso passe através daquilo que se convencionou chamar "o grão da voz". Os grandes leitores são aqueles que sustentam na sua própria voz as configurações desse granulado semântico. Isso exige que se comece a aceitar a ideia de que uma poesia é habitada por vozes. Há poetas inteiramente áfonos, incapazes de dizerem os seus próprios poemas (ou massacrando-os horrivelmente). Com David Mourão-Ferreira, passe-se exatamente o contrário. A poesia circula entre o texto e a voz, entre a voz e o texto – é um escrever-dizer, é um dizer-viver (daí que o texto incorpore, como se fossem palavras, a cadeira e o papel, o carro e o vento).
Se David Mourão-Ferreira nos “explicava" tão bem o poema da Fénix Renascida, é porque tinha um visível prazer em encontrar uma espécie de geometria oculta, que se baseava no jogo dos quatro elementos (a água, o ar, a terra, o fogo). Qualquer leitor de David sabe que a sua poesia se constrói segundo figuras geométricas muito rigorosas, e que nesse trabalho repousa a grande sageza de saber encontrar a harmonia do mundo. Mas “nós temos cinco sentidos: / são dois pares e meio d'asas. // - Como quereis o equilíbrio?" Uma das extraordinárias lições da leitura que David Mourão-Ferreira faz dos seus próprios poemas é esta capacidade de desenhar na voz os diversos planos, criando perspetivas, estratos, patamares, simetrias, e, depois, de permitir que a voz transborde para o lado do excesso até se deixar sufocar numa espécie de crepitação noturna. Tomemos o exemplo a que já aludi do "Romance de Cnossos". O importante é que as seis vezes em que se dizem os versos “este canto rouco rouco / das cigarras de Cnossos" nunca sejam idênticas, e que pela voz se diga a diferença na repetição. O mesmo se poderia afirmar do magnífico poema que é "As últimas vontades". Aqui a expressão reiterada é "deixa ficar a flor". É o tipo de expressão que facilmente poderia convidar à "teatralização". David evita-a cuidadosamente. A leitura é uma oscilação extramente cautelosa entre uma certa coloquialidade e um retraimento da emoção mais óbvia. Um último exemplo: quando se escreve "que as espadas / de amor se cravem no teu ventre", há uma vacilação entre a metáfora mais pregnante, "as espadas de amor", e o efeito de transporte (“as espadas / de amor"), que permite ler "de amor" como um advérbio (que as espadas se cravem amorosamente no teu ventre). A leitura de David Mourão-Ferreira consegue com subtileza manter esta indecisão.
É por isso que este disco não é apenas a melhor iniciação à obra de um grande poeta. É também uma lição de ler e uma prova provada de que é preciso analisar primeiro para ler bem depois. A análise implica rigor, pudor, reserva, distância – tudo formas de intensificar as emoções. Porque "é quando o poeta menos grita / que mais se crê nas suas lágrimas". E fica isto, que já não é mau: a vida toda num monumento de palavras. Será que alguns julgam que as palavras são pouco, muito pouco, quase nada? Que importa? "Há de vir um Natal e será o primeiro / em que o Nada retome a cor do Infinito".

Um admirável leitor de poesia”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 30 de dezembro de 1995, p. 12.




CD-ÁUDIO

Título: Um monumento de palavras
Publicação: Portugal : EMI-Valentim de Carvalho, p1995
ISRC: EMI: 7243 8 36922 2 4
Descrição Física: 1 disco (CD) (58 min.) : stereo; 12 cm + folheto (30 p.)
Notas: Gravado por David Ferreira em Setembro e Outubro de 1995 em Cascais; No do Serviço de Aquisições e Tratamento Técnico
Cota: 690.FER.05805

FAIXAS / ÁUDIO
  1. Certidão de nascimento
  2. Dos anos 30
  3. Natal à beira-rio
  4. Casas caiadas
  5. Teoria das marés
  6. Prelúdio
  7. Encontro
  8. Aviso de mobilização
  9. Xácara dos campos de Elvas
  10. Grito
  11. Ternura
  12. Casa
  13. Retrato de rapariga
  14. Legenda
  15. Pervigilium Veneris
  16. Ilha
  17. Capital
  18. E por vezes
  19. Voto de Natal
  20. Preâmbulo
  21. Música de cama
  22. Momento
  23. Deriva
  24. Romance de Cnossos
  25. Axis mundi
  26. Bicho da terra
  27. Os ramos
  28. Segunda elegia de Natal
  29. As últimas vontades
  30. Entre a sombra e o corpo
  31. Crepúsculo
  32. Interior
  33. A meio da noite
  34. Ladaínha dos póstumos Natais
  35. Testamento




CARREIRO, José. “Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre David Mourão-Ferreira, um admirável leitor de poesia”. Portugal, Folha de Poesia, 06-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/david-mourao-ferreira-um-admiravel.html


segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Se a morte fosse uma rosa obscura – Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Roberto Juarroz




SE A MORTE FOSSE UMA ROSA OBSCURA

1. Foi tarde, por volta de 89, a partir de uma antologia de Roger Munier, um dos seus tradutores franceses, que descobri a poesia de Roberto Juarroz. Anteriormente, este nome designava alguém que me aparecia vinculado ao amplo círculo de amizades e cumplicidades de António Ramos Rosa. Era já uma excelente referência. Mas as primeiras leituras de Juarroz são absolutamente decisivas quanto ao desenrolar do processo de informação: ou há uma rejeição, e isso sucede frequentemente, por motivos a que tentarei voltar com mais cuidado e demora, ou há uma fascinação, que faz que durante meses e meses esta poesia passe a intervir abusivamente em tudo o que escrevemos ou lemos, como uma espécie de horizonte silencioso e voraz. No meu caso, reconheço-o com prazer, foi a fascinação que prevaleceu.
Nunca cheguei a ver Juarroz ao vivo. Sei que passou pelo Centro Pompidou, onde leu alguns dos seus poemas, sei também que era um leitor espetacular, com uma elocução apaixonada e dramática. Tomo agora conhecimento pelos jornais que morreu há semanas, em Buenos Aires, com setenta anos de idade. Numa obra que obstinadamente se chamou desde o princípio Poesia Vertical, e de que pude ler até ao décimo terceiro volume, pergunto-me em que termos se concluiu: com poemas disseminadamente verticais, ou com novos volumes prolongando a academia implacável da numeração?
Num belo volume de pensamentos e aforismos, também eles designadamente como "verticais", para o qual o meu amigo Albano Martins me chamara a atenção, pode-se ler a dada altura: "Cada coisa traz em si a sua própria antítese. Não poderia existir sem ela. A condição da realidade é a sua própria contradição. Imaginar uma realidade sem contradição é uma outra contradição". Isto explica um pouco o mecanismo que move os textos de Juarroz – uma espécie de vocação exacerbada para a dialética. Noutros termos, podemos até recear que o comando das operações não pertença às palavras (o que geralmente acontece, mas nem sempre), mas, sim, a uma lógica abstrata e exangue do pensamento. Porque Juarroz não aposta nem numa metaforicidade expansiva, nem numa relação privilegiada com a realidade. As metáforas, quando existem, constroem-se quase sempre no próprio poema, à vista do leitor, e parecem encaixilhadas. O real, esse, é convocado sempre como um tipo de "exemplo" ou como um "motor de arranque". Os textos são essencialmente silogismos alargados, em que o leitor sente as linhas de recorte, os pontos em que as colagens se fizeram, o peso das dobradiças que rangem.
No entanto, funciona. E de que modo! Porque esta poesia em que o pensamento parece sobrepor-se à linguagem tem a extraordinária coragem de nos propor um pensamento em incessante derrota, continuamente confrontado com tudo o que lhe falta, e nos falta, com tudo o que nos escapa, com tudo o que é invisível, pela razão muito simples de ser excessivamente visível, próximo, fraternal: "Y aprender la transparência es el comienzo/ de aprender el invisible".
Àqueles que poderiam censurar Juarroz pela construção ostensivamente geométrica dos seus poemas, ele poderá responder que a poesia é em si mesma "uma outra ordem do espaço: uma geometria do aberto": "Hay ángulos que no pueden cerrarse / y que ninguna linea convertirá en figura. / ElIos resumen el destino. / Tampoco el destino puede cerrarse. // EI amor conoce esos ángulos / y con frecuencia acude a ellos. / También el pensamiento y la palabra. / También los párrafos deI viento. // Pero no hay instrumento que puede medirlos, / no hay geometria que los abarque. / ElIos resumen a otro orden deI espacio: / la geometría deI abierto."


2. Leia-se esse brevíssimo poema de Juarroz: "Rostros que van, / rastros ue vuelven. // Hay una sola diferencia: la lluvia, en el camino, / moja más a los que vuelven." De certo modo, grande parte da poética de Roberto Juarroz pode ser deduzida a partir destes versos. O esquema fundamental é o do quiasmo, figura que designa uma espécie de simetria cruzada. No entanto, o termo final nunca é idêntico ao termo inicial. Precisamente pelo caminho há rastro de uma diferença quase invisível, mas que vem desequilibrar o todo, desconjuntá-lo, barrar de impossibilidade qualquer ideia de sistema ou clausura, esvaziar o pensamento até à nudez do mundo, ao deserto imenso das palavras.
A ideia de verticalidade responde a este efeito siderante da diferença, "este defeito fundamental que o acaso distribui": “El errar que comete una cosa / aI caer de tus manos, la absurda equivocación de una hoja / al no caer sobre la tierra, / la confusíon de un aroma / que emigra de una flor / y se va perfurmar un pensamíento / no deben atribuirse / a sus modales inexpertos / sino al defecto fundamental que el azar distribuye / como una noche quebrada / por el apocalipsis encubierto de los dias." E daí a ideia obsessiva de que, no jogo dos extremos aparentemente simétricos, há um que sempre falta: "El misterio no tiene dos extremos: / tiene uno. / El unico extremo del mistério está en el centro / de nuestro proprio corazón. // sin embargo, / no dejaremos nunca de buscar otro extremo, / el extremo que no existe".
3. É por isso que a energia de pensamento que move esta poesia não deve assustar-nos. Ela propõe-se como a linha rasa da humildade mais obstinada perante o imenso desafio que é o das palavras e o da realidade. Este pensamento não forma conceito, é evanescente e biodegradável, desfaz-se numa lógica de fumo, no tecido mais ralo da matéria: "Habrá partículas tan finas, / tan leves, tan discretas, / que duren siempre en suspensíon?".
Roberto Juarroz sabe que tudo é sempre começo ("Hasta dios no es más que un comienzo") e afloramento ("Vivir parece sólo un roce con el ser"). Esta poesia confronta-se permanentemente com a ausência e com a fuga incoativa das formas. Combate permanente que encontra o seu espelho de metáforas da morte: "La muerte no tiene forma. / La vida dona sus formas a la muerte. / No sabemos si ésta a veces las adopta / porque las formas no regresan. // Si la muerte fuese una rosa oscura / y el hombre tivera ojos para verla, / sabríamos que sucede con las formas. // Pero entonces y no sería necessário / conocer el destino de las formas: / basteria con aspirar profundamente / el oscuro perfume de esa rosa.”

Se a morte fosse uma rosa obscura”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 29 de abril de 1995, p. 12.




CARREIRO, José. “Se a morte fosse uma rosa obscura – Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Roberto Juarroz”. Portugal, Folha de Poesia, 04-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/se-morte-fosse-uma-rosa-obscura.html