Endechas a uma cativa com
quem andava de amores na Índia,
chamada Bárbara
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
Ũa graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.
Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.
Luís de Camões
TÓPICOS DE ANÁLISE
• Retrato feminino singular, diferente do retrato ideal
renascentista, imagem mais diretamente ligada ao real.
• Retrato valorativo apreciativo, hiperbolizado e realizado do
geral para o particular.
• Figura bela, formosa, graciosa, serena, mais humana que
divina.
• Sentimentos despertados no sujeito poético: a paixão (cf.
primeira e última estrofes, por exemplo); esta figura feminina que desperta a
paixão do poeta permite-lhe, igualmente, descansar a sua dor – nela enfim
descansa / toda a minha pena.
• Referências cromáticas: permitem acentuar a beleza feminina,
bem como o seu exotismo.
• Poesia lírica tradicional (medida velha – redondilha menor,
versos de cinco sílabas métricas).
• Poema composto por cinco oitavas (estrofes de oito versos).
• Esquema rimático: abbacddc (rimas interpoladas e
emparelhadas).
• Principais recursos expressivos utilizados: jogos
antitéticos e trocadilhos (cativa / cativo– em que se joga com os sentidos
literal e metafórico do termo – porque nela vivo / já não quer que viva, pera
ser senhora/de quem é cativa, bem parece estranha / mas bárbara não – em que se
joga com o sentido duplo de «estranha» (não usual, diferente, estrangeira) e
com o nome «Bárbara» e o adjetivo «bárbara» –, e pois nela vivo, / é força que
viva.
José
Fanha nasceu em Lisboa e licenciou-se em arquitetura. Porém, é muito mais
conhecido como inspirado poeta e declamador, animador cultural por excelência,
criativo por vocação, interventivo até dizer basta. É autor de contos e de
poesias para crianças, dramaturgo e ator. Foi professor do ensino secundário, é
mestre em Educação e Leitura e doutorando na área da História da Educação e da
Cultura Escrita.
Tendo
como modelo e inspiração o Manifesto Anti-Dantas, célebre texto de
Almada Negreiros onde, pela mordaz ironia, este zurze o academismo e o
tradicionalismo instalados, sobretudo na pessoa e na obra do escritor Júlio
Dantas, José Fanha construiu o Manifesto Anti-Leitura, igualmente corrosivo
e irreverente, sobretudo nestes tempos em que a crise serve de desculpa para
oficialmente a cultura ser posta em causa.
Este
texto foi publicamente apresentado sob o patrocínio da Rede de Bibliotecas
Municipais de Lisboa, durante a II Arruada da Leitura, que teve lugar no dia 21
de abril de 2012. Na tarde desse dia, ao fundo da Rua do Carmo, em Lisboa, o ator
Manuel Coelho, do Teatro Nacional D. Maria II, declamou o Manifesto
Anti-Leitura.
Pelo seu
óbvio interesse e oportunidade, e com a justa e devida vénia para com o seu
autor, aqui se partilha esta magnífica criação de José Fanha.
ABAIXO A LEITURA, PIM! Andam por aí elementos suspeitos que se escondem nas sombras
das bibliotecas e chegam a ir às escolas para espalhar um vício terrível e
abominável especialmente junto dos mais novos! Dos mais tenros! Dos mais
ingénuos! Um vício que se chama LEITURA! Os passadores dessa droga dura, os dealers da leitura
transformam simples cidadãos em leitores! Em mortos vivos! Em gente que entrega
a sua vida aos livros, às histórias, aos romances, aos poemas, gente que se
esquece de tudo o mais! Abaixo a leitura, pim! Abaixo os leitores, pum! O leitor é um doente! O leitor é um viciado! O leitor se esquece de tudo mais só para ler! Cuidado com eles! Porque o pior de tudo é que a leitura
pega-se! Cuidado com os leitores! Afastai-os de vós! Protegei os vossos filhos!
Morra a leitura, morra! EPim!
Uma geração que lê é uma
geração que pensa! Uma geração que lê é uma geração que duvida! Uma geração que lê é uma geração que questiona! Uma geração que lê é uma geração que critica! Uma geração que pensa e duvida e questiona e critica não engole
qualquer patranha que lhe queiram enfiar! Não obedece! Não se baixa! Não se
cala! Uma geração que lê e pensa é um perigo para a civilização ocidental e
para o país!
Abaixo os leitores! Morra a
literatura! Morra! Pum!
Esta gentinha põe-se a ler em
vez de trabalhar, de verter o seu suor a bem da nação, de aceitar paciente e
responsavelmente que lhe retirem a assistência médica, o subsídio de doença, a
reforma, o teatro, a música! As cuecas, se for preciso! Esta gentinha que lê perde-se a interrogar as medidas
necessárias e urgentes para o bem do mercado, dos bancos, dos acionistas que
são quem faz andar o país! Quem lê ainda por cima diverte-se! Entretém-se! A ler, os leitores viajam! E aprendem! E refletem! E riem!
Choram! E sonham!
Morra a leitura, pim! Pam! Pum!
A leitura faz conhecer
personagens imorais como o débil Carlos da Maia e a desavergonhada Eduarda da
Maia,
e bruxas repelentes como a Dama de Pé de Cabra do Alexandre Herculano ou a
Blimunda do “Memorial do Convento” Seres inúteis e irreais como o Gato Zorbas da “Gaivota e do
Gato que a Ensinou a Voar”. Criaturas atrevidas, desobedientes e revolucionárias como o
João-Sem-Medo, o Pinóquio, o Tom Sawyer, o Oliver Twist!
E loucos como o cigano
Melquíades e o coronel Buendía dos “Cem anos de Solidão”.
A leitura faz-nos viajar por
lugares mal frequentados como a Ilha do Tesouro, o Beco das Sardinheiras do
Mário de Carvalho, os Mares do “Mobby Dick”, a Buenos Aires de Borges, a Paris
de Marcel Proust, a Londres de Oscar Wilde, a Moscovo de Tolstoi!
A leitura faz-nos rir de
pessoas sérias como o Conde de Abranhos, o Sancho Pança ou o Escriturário
Barthleby.
Já para não falar dos autores,
meu Deus! Esses seres abjetos! Os escritores que escrevem livros e livros sem
um pingo de vergonha! Deviam ser presos! Encerrados num jardim zoológico!
Condenados aos trabalhos forçados! À morte! À cadeira elétrica!
Camões, por exemplo, era um
marginal que andava sempre à espadeirada. E se fosse só isso, ainda podíamos
perdoar. A luta, a pancadaria, a guerra não são reprováveis. Podem até ter uma
função muito positiva na nossa sociedade! Mas esse tal Camões escrevia entre espadeiradas!!!
Escrevia estrofes e mais estrofes! Sonetos que enchem livros e que continuam a
gastar papel que podia ser poupado para fazer pacotes de castanhas ou
relatórios anuais da administração das empresas. E o Bocage? Dizia impropérios! Palavrões! E até na
poesia deixava a marca da sua pouca vergonha! Se escrevesse pornografia nós
aceitávamos esses palavrões! Tinham uma função social! Mas poesia…! E não esqueçamos essa histérica e louca Florbela Espanca,
essa desavergonhada, essa grande doida, que queria amar! Deixai-nos rir! Se
amasse o seu marido uma vez por semana cumpria a sua obrigação! Se fosse amante
do chefe lá do escritório, estava a contribuir para uma gestão equilibrada do
produto interno bruto! Mas não! Ela vertia nos versos o seu desejo de amar
este, aquele, e mais o outro! E lembremos Álvaro de Campos que é uma invenção torpe,
um sujeito que nunca existiu de facto! Puro delírio! Personagem frágil e
contraditória! E Ricardo Reis que também não existia! Nem Alberto
Caeiro! Nem Bernardo Soares! O Sr. Fernando Pessoa que escrevia cartas de amor
devia ter tido vergonha e dedicar-se à sua profissão pobre mas honrada de
escriturário! E de muitos mais escritores poderíamos falar! Gente horrível, que
só gosta de mexer na miséria e na lama, gente carregada de maldade que nos fala
da Queda dos Anjos e de Amores de Perdição, de Barrancos de Cegos, de Lobos que
Uivam, de Versículos Satânicos! E até quando escrevem sobre gente feliz, tem de ser gente
feliz com lágrimas!
E há quem os leia! Quem sofra
com eles! Quem os desfolhe carinhosamente sem saber que o veneno entra pelos
olhos que leem e pelos dedos que folheiam! E depois da leitura de uma página,
por vezes depois da leitura de um só parágrafo já não há remédio! Eles já são
leitores! Estão apanhados irremediavelmente pelo canto de sereia da leitura! A
possibilidade de salvação é extremamente diminuta! Os livros deviam ser reciclados e transformados em lenços de
papel! Em solas de sapatos! Em bolas de futebol! Mas livrai-vos de os ler! Ou
melhor! Queimem-nos! Lembrem-se daqueles que ao longo da história tentaram
salvar-nos queimando pilhas e pilhas de livros!
Abaixo os livros! Morra a
leitura! Morra, E pim!
Os livros fazem-nos afastar da
realidade, da economia! Do mercado! Do futuro! Uma ponte é feita com ferro e cimento e não com livros! No tribunal, o advogado não defende um criminoso com poesia! Na sala de operações o cirurgião não abre os órgãos de um
doente com um romance! Ninguém se deixa corromper por um soneto!
Abaixo a prosa! E a poesia! E o
ensaio!
Morra a leitura, morra! E Pim!
E temos de falar das
bibliotecas, essas casas sombrias onde o vício é permitido! Pais! Protegei os
vossos filhos! As bibliotecas são autênticas salas de chuto de porta aberta ao
público! E estão carregadas e alto abaixo de livros! E os livros estão à vista!
Pior ainda, os livros estão à mão de qualquer criança ingénua! E alguns até têm
ilustrações, bonecos que tornam a leitura mais fácil e a perdição mais próxima!
E o pior é que podem ser requisitados e levados para a casa, para o seio da
família onde vão espalhar a sua ação desagregadora e malfazeja!
Morra a leitura! Abaixo as
bibliotecas! Pum!
Mas há esperanças para o futuro!
Por alguma razão muitos dos
nossos melhores e mais impolutos dirigentes só leem resumos! Ou extratos da
conta bancária! Quanto ao resto, nada! Nem uma palavra! Nem uma linha! E quando lhes perguntam o que andam a ler, muito
perspicazmente, eles inventam títulos de livros que não existem para lançar o
engano e, quiçá, salvar alguém dos terríveis vícios da leitura!
Sigamos o exemplo que muitos
dos nossos dirigentes e gerentes e gestores nos apontam! Há que ter a coragem
de dizer bem alto:
A leitura prejudica
gravemente a ignorância!
E sem ignorância o país não
progride! Não crescem os juros! Não se investe nas offshores! O estado não
vende empresas abaixo do preço aos particulares! O preço da gasolina não sobe!
Acabemos de vez com a leitura!
Abaixo a leitura! E Pim!
Se puserem um livro à vossa
frente, caros amigos, cuidado! Desviem o olhar! Não abram nem uma página! Pode
bastar um verso para vos contaminar! Um homem que lê pode desejar viver num
mundo melhor! Pode de repente sentir as lágrimas correrem-lhe pela cara abaixo!
Pode querer subitamente ajudar os aflitos! Pode abraçar estupidamente um amigo
ou beijar os lábios de uma rapariga bela como um raio de sol a iluminar a mais
bela rosa do jardim!
Por isso é preciso fechar as
portas aos antros de leitura! Sabemos que pode parecer doloroso mas é
fundamental arrancar de vez os livros das mãos dos viciados e impedi-los de ler
uma linha sequer! Se for preciso tapai-lhes os olhos! É preciso preparar o
futuro dos nossos filhos! Não lhes dar ilusões, nem sonhos, nem alegrias! Nem
dúvidas, nem sabedoria, nem nada!
Abaixo as bibliotecas! Abaixo
os livros! Morra a leitura! Morra! Fim!
CARREIRO, José. “Manifesto Anti-Leitura, de José Fanha”.
Portugal, Folha de Poesia, 05-02-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/02/manifesto-anti-leitura-de-jose-fanha.html
Grandes Portugueses: Catarina Eufémia, símbolo da revolução
Ver, na íntegra, o programa apresentando na RTP, em 1974-05-18, por João Martins, comemorativo do vigésimo aniversário da morte da trabalhadora rural Catarina Eufémia, símbolo da resistência antifascista, a 19 de maio de 1954, em Baleizão, no Alentejo:
Gravura de José Dias Coelho, sobre o assassinato de Catarina Eufémia, em Baleizão, em 1954, quando lutava com os operário agrícolas por melhores salários.
LAIVOS DE AQUENTEJO | Luísa
Vilão Palma
O panal era branco em rendas de suor, como a cal que a Ti
Liberta fervia no azado, ao fundo da rua do monte. O ervaçal no empedrado. O
monte era o rumo dos dias nas tardes calmosas. Deixava a tarimba ao luzir do
buraco, enquanto o cão ansiava a bôla de farelo, impaciente. A cauda do animal
agitava-se na cadência dos passos da mulher.
O patrão podia aparecer a qualquer hora. O cereal amassado a
crescer. O forno em labaredas de coração apaixonado na metáfora do escritor.
— Bom dia, Ti Liberta, já soube da desgraça?
-Oh! home, o que dizes tu?
O olhar da mulher fraquejou, começou a toldar-se, fundindo-se
na sombra da azinheira solitária que o artista empresta à tela camponesa as
tuas mãos em gesto ritmado no movimento da foice as paveias soam a queixume de
quem implora o pão
..hás de fazer do teu lenço vermelho a única bandeira viva
sobre a terra...
Sim, a desgraça, ti Liberta. Ela caiu. Ali mesmo.
Entre a terra e o céu. Lá. Pelo Maio calmoso das aceifas
escureceu o sol tardiamente, beijando-lhe a face pela última vez. Lá. Onde a
imensidão. Vagueiam gestos ousados em lágrimas de sangue da mulher.
O cereal amassado a crescer. O forno em labaredas de ódio no
retrato da tirania.
Ti Liberta, abra os olhos.
Já faz tempo que a ceifeira, na voz de todas as ceifeiras,
deixou rolar a foice entre o trigal, desesperada. Foi por mor do acrescento de
uns tostões à jorna.
Ficou tamanho eco no infinito da gente que lutou até à
exaustão.
A tua foice, Catarina.
Alentejo, vestimos os teus panos. Tu matas-nos a sede
Retrato de Catarina Eufémia. Edição [Lisboa : s.n., s.d.] Texto do cartaz: [Poema] "Retrato de Catarina Eufémia" de José C. Ary dos Santos URL http://sinbad.ua.pt/cartazes/CT-ML-II-887
Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos
Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro
Porque eras a mulher e não somente a fêmea
Eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que
morreste
E a busca da justiça continua
Sophia de Mello Breyner Andresen,
Dual, 1972
ANTÍGONA E CATARINA EUFÉMIA: FIGURAÇÕES DA JUSTIÇA EM SOPHIA DE
MELLO BREYNER ANDRESEN
[…]
Se
observarmos o poema “Carta aos amigos mortos” encontraremos, por sinal, uma imagem
que é notável síntese do enfrentamento realizado nessa poética, a de fazer
frente: “Aqui me resta apenas fazer frente/ Ao rosto sujo de ódio e de
injustiça” (Andresen, 2003 [1962]: 46). O mesmo sintagma, fazer frente, também
está mencionado precisamente no poema “Catarina Eufémia”, que integra a última
parte, intitulada “Em memória”, do volume dual. Trata -se de uma conhecida
personagem histórica que, após ter sido morta em 19 de maio de 1954 por um
membro da Guarda Nacional Republicana, foi consagrada como símbolo de luta do
proletariado rural português durante o regime salazarista. Podemos, inicialmente,
dizer que seu fazer frente resulta em um dos poemas mais explicitamente políticos
do conjunto da obra poética andreseniana. Mas não somente. As noções de justiça
que ali são articuladas talvez sejam as que mais esclarecem que tipos de
reivindicações e protestos Sophia Andresen faz quando demanda justiça em seus
poemas. Primeiramente, podemos apontar, sim, o cunho político, potencializado
pela personagem identificada com uma vítima factual, além da inclusão de várias
informações sobre aquele crime, detalhes perceptivelmente retirados da
imprensa. Devemos apontar também a literal busca de justiça que o último verso
preconiza: “E a busca da justiça continua” (Andresen, 2004 [1972]:74).
Alguns
exemplos confirmam-nos que tal episódio do assassinato daquela trabalhadora transformou-se numa alegoria da luta desigual e da conduta ilibada por parte do lado mais
fraco. Isso é encontrado nos versos de Francisco Miguel, de um poema intitulado
“Catarina Eufémia”, que relata uma exemplaridade em desvantagem: “Tu serena
caminhas para os soldados/com a ideia, para todos um farol” (Miguel, apud PCP).
Nos versos de vicente Campinas, em “Cantar alentejano”, depois musicado por
José Afonso, é sublinhada uma busca de justiça semelhante à referida por
Sophia, mas claramente transferida às mãos de outros trabalhadores, que, por terem
testemunhado o crime, mantêm a mesma luta: “Acalma o furor campina/Que o teu
pranto não findou/Quem viu morrer Catarina/Não perdoa a quem matou” (Campinas,
apud PCP).
Também
nos versos de Ary dos Santos, de “Retrato de Catarina Eufémia”, “Catarina morrendo
alpendurada/do alto de uma foice” é uma imagem da integridade, do
posicionamento político, da atitude de resistência e da dura punição recebida,
“de corpo inteiro como ninguém foi/de pedra e alma como ninguém quer” (Santos,
apud PCP). “Ao retrato de Catarina”, de Carlos Aboin Inglez, aponta um embate e
a ameaça a uma lei ditada pelo poder, conflitos rigorosamente reprimidos:
“Quando o teu altivo porte/Fazia sombra ao patrão/Sua lei ditou-te a
sorte/Negra bala foi teu pão” (Inglez, apud PCP). Se essas leis tortuosas, do
patrão e da guarda, remetem-nos à peça de Sófocles e aos desmandos de Creonte diante
da postura moral de Antígona, percebemos no poema de Sophia uma justiça humana igualmente
corrompida. Já que Díkē já foi exilada, vivemos nós o exílio de sua ausência.
[…]
Temos já
na primeira estrofe [do poema de Sophia Andresen] a informação de que Catarina
ficou exposta e de que estava grávida. A edição de maio -junho de 1954 do
jornal o camponês, “órgão dos Camponeses de Portugal”, portanto, dos próprios
trabalhadores e da época daquela ocorrência, com o título “Uma camponesa”,
afirma que “o ódio dos fascistas pelos camponeses teve a sua mais infame
expressão”, ao que complementa ao relatar que um “grupo de camponeses” foi
recebido a “rajada de metralhadora”, quando “à frente iam camponesas com os
filhos ao colo”. A reportagem menciona Catarina Eufémia ainda como uma dessas
mulheres, das quais se destacou ao dizer “Nós temos fome e queremos é falar com
os de Penedo Gordo”, frase que, segundo esse relato, resultou em uma agressão
que a derrubou: “grávida, caída no chão e segurando um filho que trazia ao
colo, gritou -lhe «nós temos fome e queremos paz»”. De acordo com a publicação,
“o tenente assassino metralhou friamente a camponesa dando-lhe morte imediata e
ao filho que trazia no ventre” (o camponês, apud PCP).
No Diário
do Alentejo, de 21 de maio de 1954, também do mesmo mês do facto ocorrido, é
relatado que “a morte foi provocada pela pistola-metralhadora do sr. Tenente
Carrajola, que comandava a força da G.N.R” e confirma as informações trazidas
no jornal camponês: “No momento em que foi atingida, a infeliz mulher tinha ao
colo um filhinho, que ficou ferido, em resultado da queda. A Catarina Efigénia
[assim aparece o seu nome naquela publicação] tinha mais dois filhos de tenra
idade e estava em vésperas de ser novamente mãe” (Diário do Alentejo,
apud PCP).
O jornal Avante!,
órgão Central do Partido Comunista Português, de abril de 1955, ano seguinte ao
ocorrido, com um subtítulo “Catarina Eufémia não morreu!”, além de mencionar diversas
homenagens realizadas àquela camponesa, narra que essa reportagem de o camponês
foi lida em voz alta a muitos trabalhadores em reuniões em todo o país, do que podemos
deduzir que foi daquele primeiro jornal a versão que a mitificou. No Avante!
de 24 de maio de 1974, sob o título de “Grande jornada popular em memória de
Catarina”, aparece resumido que “Catarina Eufémia, militante do Partido
Comunista Português, caiu, na flor da vida, em Baleizão, à frente de uma greve.
Depois, o seu nome tornou -se bandeira e chegou aos confins do mundo, a toda a
parte onde o proletariado trava a sua luta pela instauração do socialismo” (Avante!,
n. 198, abril de 1955, apud PCP), sublinhando, desse modo, o caráter político e
partidário do fato. Dentre os jornais que compõem o dossiê organizado pelo PCP,
disponível em rede, o periódico Militante, de 1989, confirma tal versão: “grávida
e com o pequenito José Adolfo, de 8 meses, ao colo, esta avança decidida, confiante
e sem temor, para o diálogo” (Militante, apud PCP).
Desse
modo, com base nas informações da imprensa, vemos que os versos de Sophia de
Mello Breyner Andresen exaltam esse fazer frente de Catarina, que ao contrário
da maioria das mulheres de seu tempo, não ficou “em casa a cozinhar intrigas”,
pois “era preciso que alguém não recuasse”, e “Porque eras a mulher e não
somente a fêmea” (Andresen, 2004 [1972]: 74). Chamamos a atenção também para o
contraste entre a frontalidade e a obliquidade, valores estendidos a uma
postura. Fica-nos claro o apoio do poema à posição de reivindicação, à greve,
ao pedido de melhorias do pagamento, ao comprometimento partidário e à
resistência daquela trabalhadora, assim como à denúncia e condenação daquela
morte. Contudo, além de uma leitura político-partidária, encontramos na menção a
Antígona um ponto chave, fundamental para que possamos elucidar a proposta de
justiça desse poema, uma possibilidade de sanar a caótica injustiça
circundante: “Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que
morreste” (Andresen, 2004 [1972]: 74).
Ora,
encontramos na tragédia de antígona a encenação ao extremo do embate entre duas
leis, de um lado, a do soberano, promulgada por um humano, que rege as relações
interfamiliares da cidade, priorizada pela personagem de Creonte, e, do outro,
a lei eterna, de origem divina, prescrições que regem as relações dentro das
famílias, o comportamento na casa, os ritos, defendida pela personagem de
Antígona. Lembremos que essa filha de édipo foi condenada dentro da lei humana
exatamente por ter colocado a lei familiar e sagrada acima dos decretos do
soberano e que a thémis que ela optou por respeitar dizia respeito ao
funeral de um de seus irmãos, a cumprir essa obrigação sagrada, primeira,
ritual. Ao lermos o fim da célebre reportagem de o camponês, n. 44, maio -junho
de 1954, sobre a morte de Catarina Eufémia encontramos uma informação relevante
sobre o desfecho daquele assassinato: “O corpo da camponesa foi levado para
Beja [...]. Depois os fascistas fugiram com o corpo da desventurada camponesa
não deixando que os trabalhadores lhe fizessem o funeral” (o camponês, apud
PCP). Notemos que somente no dia 21 o Diário do Alentejo noticiava seu
enterro: “O funeral realizou -se ontem, saindo do hospital de Beja para o
cemitério de Quintos. Centenas de pessoas vieram de Baleizão para acompanharem o
préstito” (Diário do Alentejo, apud PCP).
Se o rito
funeral de Polinices e o de Catarina Eufémia foram ambos interditados7
por decretos que feriam uma lei primeira e eterna, vemos que Sophia coloca,
indiretamente, como irmãos daquela camponesa todos os trabalhadores que a pretenderam
enterrar com honras, assim como condiciona o próprio poema na função de uma
Antígona, de prestar reverência ritual a um familiar morto, em uma espécie de
epitáfio.
Se
Antígona é o enfrentamento em torno de uma justiça, nos versos andresenianos percebemos
ser essa justiça defendida como prioridade. Portanto, mesmo a justiça que
deveria ser a terrestre, de díkē, com seu mostrar com autoridade como
deve ser (cf. Benveniste, 1995: 110 -111), jamais poderia sobrepujar a de thémis,
um direito fundamental humano. Quando isso ocorre, há um indício de que, de
fato, a personificada díkē foi mesmo exilada da cidade dos homens, da
sociedade, do país, do mundo, como na Idade de Ferro do poema de Hesíodo, o que
nos leva a concordar com Paula Alves (cf. Alves, 2000), com algum acréscimo nosso
no que diz respeito à identificação de uma esperança na obra poética de Sophia.
O que
sobretudo pretendemos apontar com a leitura desse poema, “Catarina Eufémia”, de
maneira central, como uma síntese mesmo do que acontece nessa poesia, é que, ao
exigir justiça, em meio a todo um tempo da enunciação referido como caótico,
ameaçador, injusto, Sophia de Mello Breyner Andresen, acima da questão
política, exige uma ordem hierárquica entre díkē e thémis, de
modo que, à lei do direito, da política e jurídica, jamais possa ser dado o
privilégio de ferir uma lei primeira, eterna, sagrada, dos laços basilares do
homem. Nesse ponto há uma esperança em seus versos.
7 A noção
dessa proibição permanece sobretudo se nos lembrarmos que a reportagem de o
camponês foi largamente divulgada entre os camponeses e proletariado, assim
como entre os membros da esquerda de variadas classes sociais e seus
conhecidos, tendo sido, sem dúvida, a que predominou no imaginário da
população.
POEMAS AOS HOMENS
DE NOSSO TEMPO: A POESIA DE GRADES E O ESTADO NOVO PORTUGUÊS
Além da
ameaça e da opressão, o tema da justiça é trazido a Grades também pelo seu viés
oposto: a injustiça unida à violência. O poema “Catarina Eufémia”, publicado
em 1970 na coletânea e posteriormente em Dual, de 1973, tem seu nome em homenagem
à mulher cuja morte tornou-se símbolo de resistência e contestação do Estado
Novo. Catarina Eufémia Baleizão era uma assalariada rural da cidade de Baleizão,
região alentejana, mãe de três filhos. Nascida em 1928, era muito pobre e assim
viveu, trabalhando em empregos sazonais nos latifúndios do Alentejo, onde, desde
meados da década de 1940, era comum o “clima de agitação social entre os trabalhadores
rurais”.274
Em maio
de 1954, os trabalhadores de Baleizão organizam uma greve e “Catarina integra
uma marcha de resistência até a residência do patrão. Pretendiam aumentar de 16
escudos para 23 escudos a jornada das mulheres na campanha da ceifa”.275
Nesse trajeto, a mulher é morta a tiros pelo Tenente Carranjola, da Guarda Nacional
Republicana. Ela tinha o filho de oito meses no colo quando foi atingida. Alguns
relatos da época, inclusive a notícia que é dada no periódico Diário do
Alentejo, afirmam que a ceifeira estava grávida, mas essa informação não
foi confirmada.
Catarina
é vista como símbolo da mulher forte, mãe e militante, e sua morte tornou-se
tema ligado à justiça, à busca pela igualdade social e ao combate do poder violento
do regime do Estado Novo. É por meio dessa temática que Sophia Andresen apresenta
Catarina […]
É
evidente logo na primeira estrofe que Catarina Eufémia é a mulher que luta pela
justiça, “porque tua lição é esta: fazer frente”. O primeiro tema a que a voz
poética se refere é a justiça, e podemos pensar na reflexão que influencia a
autora, o que a leva a inserir o adjetivo “grega” no poema qualificando a
palavra “reflexão” quando o poema é publicado em Dual, aparecendo desta
maneira: “O primeiro tema da reflexão grega é a justiça”.277
Catarina,
segundo a voz poética, é uma mulher que rompe a condição comum para a época da
mulher que fica em casa, que não tem sua autonomia em relação ao marido: “Pois
não deste homem por ti / E não ficaste em casa a cozinhar intrigas / [...] E não
serviste apenas para chorar os mortos”. Além de ser vista como uma mulher mais independente,
a voz poética também a insere como uma pessoa que não hesitou diante da força
do poder, como sugere a terceira estrofe: “Tinha chegado o tempo / Em que era preciso
que alguém não recuasse”. Mas esse combate teve a morte como preço, e a terra “bebeu
um sangue duas vezes puro”, pois ela estava grávida e era inocente, lutava pela
igualdade.
A voz
poética separa Catarina da condição de fêmea, dizendo “porque eras mulher e não
somente a fémea”, isto é, a trabalhadora foi além da sua condição animal e do
seu instinto, buscando algo que é fundamental para o humano, sobretudo para as mulheres:
sua igualdade. É Importante considerar que a voz poética marca o posicionamento
de Catarina como uma mulher que foi além do seu papel feminino instituído por
uma sociedade pautada na figura do homem. A busca pela justiça e pela igualdade
da ceifeira aproxima-a de Antígona, que não recua diante da decisão de Creonte,
o governador de Tebas, de deixar seu irmão morto Polinices sem os ritos de passagem.
Na tragédia de Sófocles, a mulher tem uma postura de embate ideológico, pois
contesta o valor das ordens terrenas do governador Creonte diante das ordens
dos deuses. Ela também morre por suas crenças e por sua ação desafiadora de
buscar a todo custo aquilo que seria justo, isto é, sepultar seu irmão sob os
ritos da religião.
O poema
se encerra com um único verso, “A busca pela justiça continua”, que pode ser
lido pela busca de justiça em relação à morte de Catarina e aos abusos de poder
em geral cometidos pelo governo que assassina a ceifeira. A morte dessa mulher,
para a voz poética, é um símbolo da justiça e do combate contra as mazelas que
atingem a todos e por isso dá voz ao imaginário daqueles que se opunham ao
regime salazarista.