1.
É importante a relação entre o sujeito poético e o cenário físico na construção
do sentido do soneto. Assim, o «Sol encoberto» (v. 1) e a «luz quieta e
duvidosa» (v. 2) criam um ambiente propício ao devaneio e à rememoração,
naquela «praia» (v. 3) que se torna «deleitosa» (v. 3) por ser o espaço em que
o «eu» se move, «imaginando» a sua «inimiga» (v. 4).
2.
A repetição de «aqui», «ali» e «agora» (vv. 5-9 e 11-12) tem, entre outros, os
seguintes valores expressivos:
− criar uma atmosfera de grande tensão
subjetiva, uma vez que está associada ao processo de rememoração, de
reconstrução mental das imagens da sua «inimiga» (v. 4) por parte do sujeito
poético;
− acentuar a diversidade das imagens que
representam a figura feminina;
− realçar o modo de composição do retrato
por traços contrastados par a par (vv. 5 e 6; vv. 6 e7; v. 8; vv. 9 e 11; v.
12);
− imprimir aos versos um ritmo cadenciado.
3.
Traços do retrato que no poema é feito da «minha inimiga» (v. 4): a beleza
(«face tão fermosa», v. 6); a alegria («alegre», v. 7); a melancolia
(«cuidosa», v. 7); a candura («olhos tão isentos», v. 10); a instabilidade (quer
«movida», ou inquieta, quer «segura», ou calma, v. 11; ora triste, ora risonha,
v. 12). De notar também os gestos graciosos, vivos e espontâneos («os cabelos
concertando» – v. 5; «a mão na face» – v. 6).
4.
Os dois versos finais constituem uma meditação sobre a distância intransponível
entre a ilusão que a memória é capaz de criar e a realidade da vida presente –
sem perspetiva de mudança, porque «sempre dura» (v. 14) – do sujeito solitário,
reduzido às suas imagens ou «pensamentos» (v. 13).
CARREIRO, José. “Quando o Sol encoberto vai mostrando,
Camões”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento
de si, 28-03-2023.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/quando-o-sol-encoberto-vai-mostrando.html
1.1.
De
acordo com a primeira estrofe, «a gente toda» (v. 1) vê o sujeito poético como
um indivíduo:
–
«perdido» (v. 1), ou louco;
–
ensimesmado («tão entregue a meu cuidado» – v. 2);
– sempre
à margem, evitando deliberadamente a convivência com as outras pessoas (v. 3);
–
desprendido de todas as regras do convívio em sociedade (v. 4).
1.2.
A
adversativa «Mas» instaura uma contraposição de sentido entre as duas quadras.
Assim:
– à
representação, na primeira estrofe, da aparência do «eu», tal como é visto pela
«gente toda», sucede-se, na segunda, a expressão de uma profunda
autoconsciência do «eu», que lhe permite classificar como errada a visão dos
outros sobre si e sobre o mundo (vv. 7-8);
– na
segunda quadra, o que parece aos outros loucura é apresentado como uma opção
consciente e deliberada do «eu» que, conhecendo (vv. 5-6) e desprezando (v. 7)
o «mundo», afirma a vivência interior do seu «mal» como o único modo válido de
engrandecimento pessoal (v. 8).
2.
A
enumeração, incidindo na busca dos outros, produz diversos efeitos expressivos,
tais como:
–
assinala o carácter global dessa busca (convocando três dos elementos, Terra,
Água e Ar);
– define
tal busca como incessante e sem limite que a detenha;
– atribui
à referida busca um carácter insaciável e insano, pois pretende sair do espaço
humanamente mais controlável (a Terra) para o mar;
– cria
uma impressão de movimento, num crescendo de dinâmica ascensional (da Terra-Mar
para o Vento);
– sugere
uma grande agitação, um desmesurado dispêndio de energia;
– …
3.
O
verso «que eu só em humilde estado me contento» apresenta, na relação com o
primeiro terceto, entre outros, os seguintes sentidos:
–
constitui a afirmação, por parte do sujeito poético, de uma opção de vida
simples («em humilde estado me contento»), oposta à daqueles que buscam, por
todo o lado, «riquezas»;
– marca o
desinteresse do «eu» pelos bens materiais, colocando-se acima dos que são
movidos por tais objetivos;
– ...
Na
articulação com os versos finais do soneto, o verso 12 apresenta, entre outros,
os seguintes sentidos:
– produz
uma clarificação do significado de «humilde estado», revelando-o como o
sentimento de dedicação amorosa que domina o sujeito lírico;
– é
expressão da autoconsciência do sujeito relativamente à grandiosidade do
sentimento que o domina, de entrega total ao ser amado e à contemplação da
beleza deste, inscrita para sempre dentro de si («me contento, / de trazer
esculpido eternamente / vosso fermoso gesto dentro n’alma» – vv. 12-14);
–
constitui a afirmação da vivência interior da beleza e do amor como os valores
da vida do «eu»;
–
contribui para a enfatização do desprendimento do «eu» face aos bens materiais
e da sua opção por um bem simbólico perene;
– …
Nota – Para a atribuição do máximo da cotação referente aos aspetos
de conteúdo, considera-se suficiente a explicitação de duas articulações de
sentido do verso indicado, sendo obrigatoriamente uma delas relativa ao
primeiro terceto e a outra aos versos finais do soneto.
Fonte: Exame
Nacional do Ensino Secundário n.º 734.
Prova Escrita de Literatura Portuguesa. 10.º/11.º anos ou 11.º/12.º anos de
Escolaridade (Decreto-Lei n.º
74/2004, de 26 de março). Lisboa, GAVE-Gabinete de Avaliação
Educacional, 2007, 2.ª Fase
CARREIRO, José. “Julga-me a gente toda por perdido,
Camões”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento
de si, 27-03-2023.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/julga-me-gente-toda-por-perdido-camoes.html
Tanto de meu
estado me acho incerto,
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando,
nũ’ hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar ũ' hora.
Se me pergunta alguém porque assi ando,
respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora.
Luís de Camões, Rimas,
texto estabelecido, revisto e prefaciado por Álvaro J. da Costa Pimpão,
Coimbra, Almedina, 1994
Apresente, de forma estruturada, as suas
respostas ao questionário.
1.Explique a relação de sentido que se pode
estabelecer entre as expressões «em vivo ardor» (v. 2) e «da alma um fogo me
sai» (v. 6), fundamentando a sua resposta.
2.Identifique três versos das duas quadras em
que seja concretizada a ideia que está expressa no verso «É tudo quanto sinto,
um desconcerto» (v. 5). Justifique a escolha de cada um desses três versos.
3.Muitos poemas de Camões desenvolvem um
antagonismo de ideias e de sentimentos concretizado em pares de opostos. Da
lista a seguir apresentada, escolha um par e explicite a sua relevância para a
análise deste soneto. Fundamente a sua opção em elementos textuais.
Esperança /Desespero
Harmonia/Desarmonia
Certeza /Incerteza
4.Num soneto, os versos finais exprimem,
frequentemente, uma ideia fundamental para se perceber o sentido global do
poema. Comente a importância deste facto no caso particular deste soneto.
5.Tendo em conta o tema, relacione este
soneto com outro poema de Camões que tenha lido. Redija um texto de sessenta a
cem palavras.
1. Na
resposta pode, além de outras possibilidades, dar conta da:
- coincidência do elemento «fogo» nas duas
expressões;
- contribuição da segunda expressão para o
reforço da hipérbole;
- …
2. Na
resposta, pode referir três dos seguintes versos: 2, 3, 4, 6, 7, 8. Na
justificação, deve referir o modo como a ideia contida nos versos exprime o
«desconcerto».
Por exemplo:
Cada verso do soneto de Camões é expressivo da ideia
de “desconcerto” que o sujeito poético sente.
- Verso
2: "que em vivo ardor tremendo estou de frio" - Este verso expressa
uma contradição, um paradoxo, já que o sujeito poético sente um ardor vivo, que
é um sinal de calor, mas, ao mesmo tempo, sente frio. Essa contradição é um
exemplo do desequilíbrio e desconforto que o sujeito poético está a sentir, ou
seja, o desconcerto.
- Verso
3: "sem causa, juntamente choro e rio" - O sujeito poético ri e chora
ao mesmo tempo, sem uma causa específica. Esse comportamento errático é mais
uma expressão do desconcerto e desequilíbrio emocional que ele está a sentir.
- Verso
4: “o mundo todo abarco e nada aperto” - A contradição entre abraçar o mundo
inteiro, mas não conseguir agarrar nada demonstra a sensação de impotência do sujeito
poético. O uso das palavras “abarco” e “aperto” reforça a ideia de que as
emoções são conflituantes e ocorrem simultaneamente. Novamente, a falta de
harmonia entre a perceção e a realidade é um exemplo do desequilíbrio que o sujeito
poético está a experimentar.
- Verso
6: "da alma um fogo me sai, da vista um rio" - Este verso expressa
uma sensação intensa de paixão e emoção do sujeito poético, como um fogo que
arde dentro dele. Ao mesmo tempo, ele também sente que as suas lágrimas são
como um rio, fluindo dos seus olhos. Essa imagem é mais uma expressão da
intensidade emocional que contribui para o seu desconcerto.
- Verso
7: "agora espero, agora desconfio”. Este verso demonstra a instabilidade
mental do poeta. A sucessão rápida de diferentes estados mentais é reforçada
pelo uso das palavras “agora” que indicam uma mudança constante de estado
mental. O poeta passa de um estado de esperança para um estado de desconfiança
rapidamente, revelando a sua confusão mental. Essa ambivalência emocional é uma
característica do desconcerto que o poeta está a experimentar. Note-se que essa
ambivalência é uma das características do amor passional, que muitas vezes é
marcado pela incerteza e pela indecisão.
- Verso
8: "agora desvario, agora acerto" - O "desvario" é a
confusão, a desorientação, o estado de espírito descontrolado e caótico, que pode
alternar com momentos de lucidez, de "acerto". A sucessão rápida de
diferentes estados mentais é reforçada pelo uso das palavras “agora” que
indicam uma mudança constante de estado mental. Esse vaivém emocional expressa
o desconcerto e a angústia que o poeta sente diante da sua condição incerta e
inconstante. Note-se que o poema é uma declaração de amor, e a instabilidade
emocional do sujeito poético pode refletir a intensidade e a ambivalência do
amor, que muitas vezes é marcado pela incerteza e pela indecisão.
3. Na
resposta, deve ser considerado qualquer um dos pares de palavras apresentados,
desde que a opção seja sustentada numa leitura adequada e em elementos do
soneto.
Exemplo 1:
O par de opostos Esperança/Desespero é
fundamental para a análise desse soneto de Camões, pois é através dele que
podemos compreender a natureza do conflito interno do eu lírico.
O sujeito poético constrói uma imagem espiritualizada
da mulher, que ele trata por “Senhora” e que só viu uma vez, mas que provoca
nele uma forte reação emocional.
Assim, ele experimenta um intenso conflito emocional,
expresso na contraposição entre o "vivo ardor" e o "tremendo
frio", no choro e riso simultâneos, e na sensação de abarcar o mundo
inteiro, mas não conseguir agarrar nada.
Nesse contexto, a esperança e o desespero são
apresentados como estados emocionais opostos e mutáveis. O eu lírico oscila
entre a esperança, o desespero, o delírio e a lucidez. Num momento ele voa para
o céu, mas noutro está perdido num rio de lágrimas.
O poeta tem consciência do seu drama e tenta
raciocinar sobre as suas desencontradas reações, mas não encontra uma resposta
satisfatória. Ele só sabe que tudo se deve ao facto de ter visto a sua Senhora.
Dessa forma, a presença da amada é a fonte da
esperança para o eu lírico, que é capaz de superar os momentos de desespero e
confusão
Exemplo 2:
O par de opostos Harmonia/Desarmonia é
fundamental para a análise do soneto de Camões, pois é através dele que podemos
compreender a natureza do conflito interno do eu lírico.
O eu lírico encontra-se num estado de desarmonia
consigo mesmo e com o mundo ao seu redor, e a causa principal desse conflito é
a influência da senhora na sua vida.
A senhora é a causa tanto do sofrimento quanto da
felicidade do eu lírico. Ele experimenta um intenso conflito emocional em
relação à sua amada, expresso na contraposição entre o "vivo ardor" e
o "tremendo frio", no choro e riso simultâneos, e na sensação de
abarcar o mundo inteiro, mas não conseguir agarrar nada. A presença da senhora
desperta emoções contraditórias e intensas no eu lírico, que experimenta
momentos de clareza e lucidez, como quando afirma "agora acerto", mas
também momentos de desvario e confusão, como quando diz "agora
desvario".
Nesse contexto, a harmonia e a desarmonia são
apresentadas como estados opostos e mutáveis. O eu lírico oscila entre a
harmonia e a desarmonia em relação aos seus sentimentos e pensamentos em
relação à senhora. Ele experimenta momentos de paixão e entrega, mas também de
angústia e dor, como quando afirma que o seu estado é incerto e que tudo que
sente é um desconcerto.
No final do soneto, o eu lírico atribui a sua condição a
uma única causa: a presença da sua amada. Essa revelação sugere que a harmonia
é encontrada na relação amorosa, que é capaz de equilibrar os conflitos
internos do eu lírico e trazer uma sensação de harmonia para a sua vida, mesmo
que a presença da senhora seja a causa do conflito.
Note-se, ainda, que o soneto segue uma estrutura
formal clássica cuja harmonia contrasta com a desarmonia do conteúdo, que
expressa o conflito interno do eu lírico.
Exemplo 3:
O par de opostos Certeza/Incerteza é relevante
para a análise do soneto de Camões porque mostra o dilema existencial do eu
lírico, que não consegue compreender nem explicar os seus sentimentos
contraditórios em relação à sua amada.
A alternância entre certeza e incerteza é expressa,
por exemplo, nos versos 7 e 8 (“agora espero, agora desconfio / agora desvario,
agora acerto”), que mostram a oscilação entre a confiança e a dúvida, entre o
erro e o acerto do sujeito poético.
Outro exemplo é o verso "Se me pergunta alguém
porque assi ando, respondo que não sei", que mostra a incerteza do sujeito
em relação a si mesmo, indicando que ele não tem respostas para as suas
próprias perguntas internas.
Ele está incerto sobre a sua condição, sentindo um
misto de frio e ardor, choro e riso, esperança e desconfiança, desvario e
acerto. A incerteza manifesta-se no desconcerto que sente e no fogo que sai da
sua alma e no rio que sai da sua vista.
Por fim, o verso "porém suspeito que só porque
vos vi, minha Senhora" destaca como a presença da amada pode ser uma causa
para a incerteza do sujeito, já que ela mexe com os seus sentimentos e pensamentos
de uma forma que ele não consegue entender ou controlar.
4. Na
resposta, explica que, também no caso particular do soneto transcrito, o último
terceto é fundamental para a construção do sentido global, porque nele se dá
conta do que provocou o «desconcerto» descrito nas quadras e no primeiro
terceto: a visão da beleza da Senhora.
5. Na
resposta, deve ser considerada a relação com qualquer outro poema, desde que
cumpra a instrução do item.
Por exemplo:
Este soneto apresenta uma expressão de conflito
interior do eu lírico, que se encontra em constante oscilação emocional e sem
um ponto de equilíbrio. A incerteza e a dualidade de sentimentos são também
exploradas no poema “Amor é fogo que arde sem se ver”, que também usa antíteses
e oxímoros para descrever o amor como uma força irracional e contrária à razão.
Em ambos os poemas, o eu lírico usa figuras de
linguagem como antíteses e oxímoros para expressar os paradoxos do amor, que o
faz chorar e rir, esperar e desconfiar, viver e morrer, entre outras
contradições.
Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 734. Prova Escrita de Literatura Portuguesa. 11.º
Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Curso Científico-Humanístico
de Línguas e Literaturas. Lisboa, GAVE-Gabinete de Avaliação
Educacional, 2006, 2.ª Fase (Adaptado: enriquecido com exemplos de resposta)
CARREIRO, José. “Tanto de meu estado me acho incerto,
Camões”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento
de si, 26-03-2023.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/tanto-de-meu-estado-me-acho-incerto.html