HUMANISMO CÍVICO EM OS LUSÍADAS
Por: José Maria de Aguiar Carreiro
DIMENSÃO EXEMPLAR DA HISTÓRIA NARRADA
A história narrada em Os Lusíadas tem uma dimensão exemplar, por apresentar factos e figuras como modelos a seguir, bem como atitudes a evitar (estas em menor número).
Quem são as personagens agentes de feitos ilustres notáveis?
São muitas. São os heróis da navegação, da conquista, os reis portugueses que dilataram a Fé e o Império, que difundiram a civilização nas terras de África e Ásia; são também aqueles cujo nome ficou na História por actos de excepção… (cf. Canto I, 1-2)
Em Os Lusíadas, especialmente a partir do Canto V, no final de cada Canto, há partes que não são narrativas, porque o poeta aproveita para tecer os seus comentários e críticas. Contudo, segundo os cânones da epopeia, o Poema de Camões deveria ser alheio à pessoa do poeta. É neste sentido que Luís António Verney, no séc. XVIII, faz as seguintes críticas:
“Errou o Camões em não sustentar sempre o carácter e grandeza do seu herói, que abaixa sensivelmente no canto VIII, do meio para diante. Errou nas enfadonhas digressões que introduz por toda a parte. Errou em acabar quase todos os Cantos com exclamações mui fora de propósito e muito contra o estilo da epopeia.” (in Carta VII do Verdadeiro Método de Estudar, Editorial Presença, p. 168).
De opinião oposta à anterior, Eduardo Lourenço, dois séculos mais tarde, diz o seguinte:
“Os Lusíadas não são a primeira epopeia realista dos tempos modernos, mas a primeira que nada perdeu da sua força, graças ao fulgor da sua forma, quer dizer, graças à sua autonomia de poema humanista, de realidade escrita” (“Camões e o tempo ou a razão oscilante” in Poesia e Metafísica, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1983, p. 34)
Um dos propósitos de tais intromissões do poeta é o de doutrinar e construir, por cima do tradicional herói guerreiro, um novo tipo de herói, o humanista.
O HERÓI POSSÍVEL
Camões, em Os Lusíadas, apresenta o heroísmo em termos teóricos, programáticos, havendo uma distância entre a perfeição idealizada e o plano da realidade.
Primeiro, Camões anuncia as formas de comportamento que o herói deve evitar (Canto VI, 95-96): não descansar à sombra dos louros conquistados pelos seus antecessores e evitar a ociosidade, inércia e comodismo.
Depois, anuncia o programa em forma afirmativa (Canto VI, 97-99): necessidade de exercício, esforço da coragem e capacidade de enfrentar todo o tipo de sofrimento.
Assim, advêm-lhe não só honras próprias, isto é, do seu próprio mérito, como também coragem para enfrentar os perigos de guerra e para dominar o medo e a comoção – manifestações exteriores que se forem moldadas dão-lhe uma superioridade moral e uma serenidade intelectual.
Numa sociedade justa e bem organizada, um homem destes será chamado ao desempenho de cargos de responsabilidade: será chamado “contra vontade sua, e não rogando” (Canto VI, 99). Requer-se um homem desprendido do poder, que aceite exercer cargos mesmo sem o desejar, apenas movido por uma consciência cívica de servir a pátria.
O bom herói, ou bom português, deve renunciar a tirania, a ociosidade, a cobiça, as “honras vãs”, o “ouro puro” (cf. Canto IX, 92-95) – pois,
Melhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.
Cumpridos estes preceitos,
Sereis entre Heróis esclarecidos
E nesta Ilha de Vénus recebidos
(Canto IX, 95)
Apesar de tal prémio, este tipo de herói ainda não corresponde, por completo, ao ideal ético do poeta dos tempos novos.
O PODER DO POETA
Em última análise, quem premeia os nautas com uma ilha mitológica é o próprio vate ao resgatá-los do esquecimento (da lei leteia), dispensando-lhes a fama e imortalidade no e atravésdo seu canto.
O rudo canto meu, que ressuscita
as honras sepultadas,
as palmas já passadas
dos belicosos nossos Lusitanos,
para tesouro dos futuros anos,
convosco se defende
da lei leteia, à qual tudo se rende.
(Ode VII)
Nas estâncias 83 a 87 do Canto VII, Camões chega a enumerar as pessoas que não merecem a glória que o canto do poeta dá: os lisonjeiros; os que actuam movidos por um interesse pessoal em prejuízo de um bem comum e do seu rei; os que actuam movidos pela ambição (os que sobem ao poder por influências, compra de cargos de importância), permitindo dar largas aos seus vícios; e os que exercem despoticamente o poder.
O poeta chega ao ponto de se queixar do facto de a aristocracia portuguesa, representada na pessoa de Vasco da Gama, não ser amiga das Musas:
Que ele, nem quem, na estirpe, seu se chama,
Calíope não tem por tão amiga
(Canto V, 99)
Por isso, diz, não é por Vasco da Gama que as Musas (o poeta) cantam; é pela pátria:
Às Musas agradeça o nosso Gama
O muito amor da pátria, que as obriga
A dar aos seus, na lira, nome e fama
De toda a ilustre e bélica fadiga
E mais: “se este costume dura” Portugal ficará pobre em heróis:
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque quem não sabe arte, não na estima.
Por isso, e não por falta de natura,
Não há também Virgílios nem Homeros;
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Eneias nem Aquiles feros.
(Canto V, 97-98)
Sem Virgílio não há Eneias, sem Camões, Gama.
Em toda a sua poesia, a começar no canto épico, há a expressão, quase cansada, de uma decepção causada por uma crise inerente à sua época.
O HERÓI HUMANISTA
“A melhor forma de serviço público e de empenhamento cívico, aquela em que se logra a desejada simbiose entre a vida activa e a vida contemplativa, é a do homem de intelecto, do humanista, que é simultaneamente um homem de acção, um soldado. Por isso tanta importância tem no nosso discurso histórico-literário o topos das Armas e Letras.
Doravante a ideia de mérito e experiência individual, sempre que se trate de eleger alguém para lugares de responsabilidade pública, vai sobrepor-se à ideia de linhagem e privilégio de nascimento.” (Luís de Sousa Rebelo, A tradição clássica na literatura portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1982).
Nesta ordem de ideias, há uma visão de conjunto sobre os heróis portugueses como sendo imperfeitos (cf. Canto V, 92-97), por não ultrapassarem o desenho tradicional do herói cavaleiresco.
O poeta diz ter vergonha destes heróis, porque são ignorantes, ao contrário dos Antigos, como Octávio que,
[…] entre as maiores opressões,
Compunha versos doutos e venustos
(Canto V, 95)
As figuras da Antiguidade são o paradigma humanista da associação das ARMAS e das LETRAS.
Da galeria de heróis de Os Lusíadas, Nuno Álvares Pereira é aquele que Camões decide construir à medida do novo conceito de herói, pois é representado como excelente na capacidade de discursar (cf. Canto IV, 14-21) e excelente no campo de batalha (cf. Canto IV, 28-44).
Mesmo que historicamente Nuno Álvares Pereira tenha sido um bom estratega e orador, naturalmente que Camões o estilizou tão à maneira de Fernão Lopes que, por sua vez, já o havia tornado lendário.
Mas, convenhamos, em Os Lusíadas, Camões é o único que comporta majestosamente estas duas qualidades: a conciliação das Armas e das Letras.
Se repararem, quando se fala da epopeia Os Lusíadas o nome que vem imediatamente à mente é o de Camões e não o de um herói literário. Os Lusíadas não nos remetem senão para o seu criador; ao passo que, no que toca a outras epopeias, ocorrem-nos os nomes de Ulisses, Eneias, El Cid, Tristão, Hamlet, D. Quixote, isto é, os respectivos heróis literários.
“Para compensar uma tal ausência – cujo mistério se repercute sobre a imagem global da nossa literatura – temos uma espécie de herói-vivo, cuja lenda verídica teve o condão de se converter em existência ideal, como é apanágio da ficção perfeita. Referimo-nos, naturalmente, ao próprio Camões, herói da sua própria ficção, e que se tornou para um povo inteiro bem mais mítico e, mesmo, bem mais heróico que os heróis exaltados pelo seu Poema.” (Eduardo Lourenço, op. cit.)
AUTOMITIFICAÇÃO
“Com efeito, o esforço original de automitificação através do qual Camões tenta escapar à insignificância e ao esquecimento […] não é uma descoberta de Camões. Constitui a vivência mais inovadora do seu tempo cultural.” (Eduardo Lourenço, op. cit.)
Na estância 154 do Canto X, o poeta caracteriza-se:
Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado?
[…]
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.
A seguir, na estância 155, pede para servir o rei e a pátria através do seu canto.
Em Os Lusíadas, podemos ver a encarnação dos ideias do humanismo cívico na figura do poeta, numa associação do homo politicus e homo theoreticus.
O poeta apresenta-se com os mesmos termos que refere César:
Vai César sojugando toda França
E as armas não lhe impedem a ciência;
Mas, nũa mão a pena e noutra a lança,
Igualava de Cícero a eloquência.
(Canto V, 96)
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A Fortuna me traz peregrinando,
[…]
Nũa mão sempre a espada e noutra a pena
(Canto VII, 79)
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Aliás, o naufrágio do próprio poeta é tomado como objecto quer da narração épica quer do canto da deusa Tethis:
“Este receberá, plácido e brando,
No seu regaço o Canto que molhado
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baxos escapado,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquele cuja Lira sonorosa
Será mais afamada que ditosa.”
(Canto X, 128)
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O poeta é cantado como infeliz, mas honroso pelo seu canto.
A glória que mais alta se levanta é a dos heróis que Camões narra, mas é também a
sua.
José Maria de Aguiar Carreiro
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/06/20/lusiadas.aspx]
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