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— Julgava que isso do eu era coisa que não existia.
— E não existe mesmo tal coisa, se está a referir-se a uma entidade bem determinada e distinta. Mas claro que há vários eus. Estamos sempre a inventá-los… como você inventa as suas histórias.
— Está a dizer que as nossas vidas são meras ficções?
— De certa forma. Essa é uma das coisas que fazemos com a capacidade cerebral que nos sobra. Inventamos histórias a respeito de nós próprios.
[…]
Após uma pausa Helen pergunta: — O que quis dizer com aquilo da capacidade cerebral que nos sobra?
— Ora bem, o cérebro humano é muito maior do que o de qualquer outro animal do planeta. O nosso ADN é apenas diferente em um por cento do dos chimpanzés, os nossos parentes mais próximos, mas o nosso cérebro é três vezes maior. Como é óbvio isso deu aos nossos antepassados primitivos uma enorme vantagem na escala evolutiva. Aprendemos a fazer armas e ferramentas, a comunicar através da linguagem, a resolver problemas através do processamento de várias opções pelo nosso computador mental em vez de nos limitarmos a reagir instintivamente. Fomos capazes de ir além dos quatro Cês. Combater, comer, copular e... defecar.
— Ah... — Helen deixou escapar uma risadinha.
— Mas as potencialidades do cérebro humano excedem muitíssimo o avanço que temos em termos evolutivos sobre as outras espécies. E isso que eu quero dizer com a capacidade que nos sobra. O homem primitivo era como um tipo a quem deram o último modelo em computadores e se limita a usá-lo para simples operações aritméticas. Mais tarde ou mais cedo vai começar a brincar com ele e acabará por descobrir que pode fazer também muitíssimas outras coisas. Foi o que, com o tempo, acabámos por fazer com o nosso cérebro. Desenvolvemos a linguagem. Começámos a reflectir sobre a nossa própria existência. Tomámos consciência de nós próprios como criaturas com um passado e um futuro, com histórias individuais e colectivas. Desenvolvemos a cultura: a religião, a arte, a literatura, o direito... a ciência. Mas existe a outra face da autoconsciência. Sabemos que vamos morrer. Imagine o choque que isso deve ter sido para o Homem de Neandertal ou para o Homem de Cro-Magnon ou para quem quer que tenha sido o primeiro a descobrir a terrível verdade: que um dia seria apenas carne. Os leões e os tigres não sabem disso. Os macacos não sabem disso. Mas nós sabemos.
— Os elefantes devem saber — interpõe Helen. — Têm cemitérios.
— Receio que isso seja um mito — diz Ralph. — O homo sapiens foi o primeiro e o único ser vivo na história da evolução a descobrir que era mortal. E depois como é que ele reage? Inventa histórias para explicar como se meteu nesta embrulhada e como poderá sair dela. Inventa a religião, desenvolve ritos funerários, inventa histórias sobre a vida para além da morte e a imortalidade da alma. Com o passar do tempo estas histórias vão-se tornando cada vez mais elaboradas. Mas na etapa mais recente do desenvolvimento cultural, apenas há uns segundos atrás em termos da história da evolução, a ciência desabrocha repentinamente e começa a contar uma história bem diferente acerca do modo como viemos aqui parar, uma história muito mais credível que ganha de longe à religiosa. Hoje em dia já são muito poucas as pessoas inteligentes que acreditam na história contada pela religião, embora continuem a agarrar-se a ela e a procurar consolo em alguns dos seus conceitos, tais como a alma, a vida para além da morte, e por aí fora.
— Penso que é precisamente isso que o incomoda, não é? — diz Helen. — Que a maior parte das pessoas continue teimosamente a acreditar que existe um espírito dentro da máquina por mais que os cientistas e os filósofos lhes digam que não.
— Não me «incomoda» propriamente — diz Ralph.
— Incomoda, sim — diz Helen. — É como se estivesse apostado em eliminá-lo da face da terra. Que nem um inquisidor determinado a pôr fim às heresias.
— Só acho que não devemos confundir aquilo que gostaríamos que fosse com aquilo que realmente é — diz Ralph.
— Mas admite que temos pensamentos que são privados, secretos, conhecidos apenas de nós próprios.
— Sim, claro.
— Admite que a minha experiência deste momento, estar aqui refastelada na água quente a contemplar as estrelas, não é exactamente a mesma que a sua?
— Estou a ver aonde quer chegar — diz ele. — Está a dizer que existe algo que lhe pertence só a si, ou a mim, uma certa qualidade da experiência que é exclusivamente sua ou minha, que não pode ser descrita com objectividade nem explicada em termos puramente físicos. Aquilo a que poderíamos chamar um eu imaterial ou alma.
— Sim, penso que sim.
— Pois eu digo que continua a ser uma máquina. Uma máquina virtual dentro de uma máquina biológica.
— Então é tudo uma máquina?
— Tudo o que processa informação é, sim.
— Acho essa ideia aterradora.
Ele encolhe os ombros e sorri. — Você é uma máquina que foi programada pela cultura para não reconhecer que é uma máquina. […]
In Pensamentos Secretos, David Lodge, Porto, Ed. Asa, 2002, pp. 114-116
tradução do original inglês (Thinks…, 2001) por Ana Maria Chaves e Rita Pires.
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/08/23/autoconsciencia.aspx]
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