quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A nêspera deitada, muito calada, a ver o que acontecia


MÁRIO VIEGAS diz “Uma nêspera que fica deitada”. 
Adaptado de Mário Henrique Leiria, Novos contos do gin tonic, 1974
              


RIFÃO QUOTIDIANO1

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece


Mário Henrique Leiria, Novos Contos do Gin, 1978, p. 31.


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(1) Rifão: ditado popular, provérbio.




Mário Henrique Leiria

Nasceu em Lisboa em 1923. Frequentou por pouco tempo a Escola de Belas Artes. Entre 1949 e 1951 participou nas atividades da movimentação surrealista em Portugal. Teve vários empregos: marinha mercante, caixeiro de praça, operário metalúrgico, construção civil. Viajou. Em 1961 foi para a América Latina onde desenvolveu várias atividades, entre as quais a de encenador de teatro e de diretor literário de uma editora. Voltou nove anos depois. Colaborou em várias revistas e jornais nacionais.
Obras principais: A Afixação Proibida (manifesto surrealista de vários autores), 1949; Contos do Gin Tonic, 1973; Novos Contos do Gin, 1978; Imagem Devolvida, 1974.

Geraldo Augusto Fernandes, Surrealismo português (1947-1974)


Leituras

O humor, de que este texto é exemplo, é uma constante na obra do autor de Contos do Gin-Tonic, chegando, por vezes, a atingir o famoso humor negro surrealista.

Maria de Fátima Aires Pereira Marinho Saraiva, O Surrealismo em Portugal e a Obra de Mário Cesariny de Vasconcelos. Porto, FLUP, 1986, p. 236.

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Em “Rifão quotidiano”, é ilustrado o destino de todos os que se deixam, de modo passivo, conduzir por desígnios superiores.

Num primeiro momento, atente-se no título deste rifão. Ao qualificá-lo de «quotidiano», é expressa a ideia de uma vivência pobre porque repetitiva e comum, reforçando-se a ideia de não-realização da vida pelo estado «vegetativo» em que a nêspera se encontra.

A diferença principal entre estes dois textos está intrinsecamente associada às consequências distintas provocadas por um semelhante instrumento de opressão e as diferentes atitudes que se adotam na presença dele: se, na cegarrega, tal como constatámos, a solução levada a cabo passa pela fuga, que acaba por ter um papel de insubordinação ante o poder vigente, já no Rifão quotidiano a inação e a passividade conduzem à morte do sujeito – expressa eufemisticamente pelo uso do vocábulo comer. Esta última é obviamente a atitude que melhor convém a um poder político autoritário, que manobra melhor ante uma postura pouco reivindicativa dos elementos que constituem a sociedade que governa.

 

“O jogo na literatura de Mário-Henrique Leiria”, Marta Braga. In: O Jogo do Mundo, coord. Margarida Alpalhão, Carlos Carreto e Isabel Dias. Lisboa, IELT - NOVA FCSH, 2017.


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"Uma nêspera estava na cama, deitada, muito calada, a ver o que acontecia. Chegou a Velha e disse: olha uma nêspera e zás comeu-a! É o que acontece às nêsperas que ficam deitadas, caladas, a esperar o que acontece!" O poema de Mário Henrique Leiria também nos pode recordar que, em democracia, não somos clientes. Nem temos sempre razão, nem estamos aqui para ser servidos. Ou servimos a democracia ou outros se servem dela. Quem fica deitado, calado, a ver o que acontece, terá sempre um triste fim.

A nêspera deitada, muito calada, a ver o que acontecia”, Daniel Oliveira. Expresso, 2012-06-19


 Ilustração de Marta Madureira, 2012, para "Rifão Quotidiano"



Questionário de leitura orientada do “Rifão quotidiano”

1. Leia o título do poema e sugira uma possível intenção comunicativa por parte do sujeito poético. Depois, leia o poema e diga se a leitura confirma, ou não, a sua sugestão.

2. Como se posiciona o sujeito poético em relação à atitude da nêspera? E que palavras do poema nos revelam esse seu posicionamento?

3. Tratando-se de um rifão, a situação particular descrita na primeira estrofe é depois apresentada como uma ideia geral. Em que versos se faz essa generalização?

3.1. Parece-lhe que a moralidade deste rifão se mantém atual para o sujeito poético? Justifique.

4. Do seu ponto de vista, que tipo de pessoas são satirizadas neste poema?

Cenário de respostas

1. A presença da palavra “rifão” no título do poema poderá apontar para a intenção de transmitir uma lição de moral, o que se confirma na leitura do poema.
2. Posiciona-se criticamente afirmando que acontecera àquela nêspera o que acontece às que têm a mesma atitude: “É o que acontece / às nêsperas […]”.
3. Nos versos da última estrofe.
3.1. Mantém-se atual, tal como indicam o adjetivo “quotidiano”, usado no título do poema, e as formas verbais dos verbos ser, acontecer e ficar conjugados no presente do indicativo (“é o que acontece / às nêsperas / que ficam deitadas / […] o que acontece”).

(In: P8 Português – 8.º Ano, Ana Santiago e Sofia Paixão, Texto Editora, 2012)








  
               


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/08/14/nespera.aspx]

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