A nêspera deitada, muito calada, a ver o que acontecia
MÁRIO VIEGAS diz “Uma nêspera que fica deitada”. Adaptado de Mário Henrique Leiria, Novos contos do gin tonic, 1974
RIFÃO QUOTIDIANO1
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece
Mário Henrique Leiria, Novos Contos do Gin, 1978,
p. 31.
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(1) Rifão: ditado popular, provérbio.
Mário Henrique Leiria
Nasceu em Lisboa em 1923. Frequentou por pouco tempo a
Escola de Belas Artes. Entre 1949 e 1951 participou nas atividades da
movimentação surrealista em Portugal. Teve vários empregos: marinha mercante,
caixeiro de praça, operário metalúrgico, construção civil. Viajou. Em 1961 foi
para a América Latina onde desenvolveu várias atividades, entre as quais a de
encenador de teatro e de diretor literário de uma editora. Voltou nove anos
depois. Colaborou em várias revistas e jornais nacionais.
Obras principais: A Afixação Proibida (manifesto
surrealista de vários autores), 1949; Contos do Gin Tonic, 1973; Novos Contos
do Gin, 1978; Imagem Devolvida, 1974.
O humor, de que este texto é exemplo, é uma constante
na obra do autor de Contos do Gin-Tonic, chegando, por vezes, a atingir
o famoso humor negro surrealista.
Em
“Rifão quotidiano”, é ilustrado o destino de todos os que se deixam, de modo
passivo, conduzir por desígnios superiores.
Num
primeiro momento, atente-se no título deste rifão. Ao qualificá-lo de
«quotidiano», é expressa a ideia de uma vivência pobre porque repetitiva e
comum, reforçando-se a ideia de não-realização da vida pelo estado «vegetativo»
em que a nêspera se encontra.
A
diferença principal entre estes dois textos está intrinsecamente associada às
consequências distintas provocadas por um semelhante instrumento de opressão e
as diferentes atitudes que se adotam na presença dele: se, na cegarrega, tal
como constatámos, a solução levada a cabo passa pela fuga, que acaba por ter um
papel de insubordinação ante o poder vigente, já no Rifão quotidiano a inação e
a passividade conduzem à morte do sujeito – expressa eufemisticamente pelo uso
do vocábulo comer. Esta última é obviamente a atitude que melhor convém a um
poder político autoritário, que manobra melhor ante uma postura pouco
reivindicativa dos elementos que constituem a sociedade que governa.
“O jogo na literatura de
Mário-Henrique Leiria”, Marta Braga. In: O Jogo do Mundo, coord. Margarida Alpalhão, Carlos Carreto
e Isabel Dias. Lisboa, IELT - NOVA FCSH, 2017.
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"Uma
nêspera estava na cama, deitada, muito calada, a ver o que acontecia. Chegou a
Velha e disse: olha uma nêspera e zás comeu-a! É o que acontece às nêsperas que
ficam deitadas, caladas, a esperar o que acontece!" O poema de Mário
Henrique Leiria também nos pode recordar que, em democracia, não somos
clientes. Nem temos sempre razão, nem estamos aqui para ser servidos. Ou
servimos a democracia ou outros se servem dela. Quem fica deitado, calado, a
ver o que acontece, terá sempre um triste fim.
Ilustração de Marta Madureira, 2012, para "Rifão Quotidiano"
Questionário de leitura
orientada do “Rifão quotidiano”
1. Leia o título do poema e sugira uma possível intenção
comunicativa por parte do sujeito poético. Depois, leia o poema e diga se a
leitura confirma, ou não, a sua sugestão.
2.
Como se posiciona o sujeito poético em relação à atitude da nêspera? E que
palavras do poema nos revelam esse seu posicionamento?
3.
Tratando-se de um rifão, a situação particular descrita na primeira estrofe é
depois apresentada como uma ideia geral. Em que versos se faz essa
generalização?
3.1.
Parece-lhe que a moralidade deste rifão se mantém atual para o sujeito poético?
Justifique.
4.
Do seu ponto de vista, que tipo de pessoas são satirizadas neste poema?
Cenário de respostas
1.
A presença da palavra “rifão” no título do poema poderá apontar para a intenção
de transmitir uma lição de moral, o que se confirma na leitura do poema.
2.
Posiciona-se criticamente afirmando que acontecera àquela nêspera o que acontece
às que têm a mesma atitude: “É o que acontece / às nêsperas […]”.
3.
Nos versos da última estrofe.
3.1.
Mantém-se atual, tal como indicam o adjetivo “quotidiano”, usado no título do
poema, e as formas verbais dos verbos ser,
acontecer e ficar conjugados no
presente do indicativo (“é o que acontece / às nêsperas / que ficam deitadas / […] o que acontece”).
(In: P8 Português – 8.º Ano, Ana Santiago e Sofia Paixão, Texto Editora,
2012)
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