"A liberdade exprime-se de duas formas: como resultado e como intenção."
Sérgio Godinho (entrevista, RTP, 2022)
O D. Sebastião foi para Alcácer Quibir
de lança na mão, a investir, a investir,
com o cavalo atulhado de livros de história
e guitarras de fado para cantar vitória.
O D. Sebastião já tinha hipotecado
toda a nação por dez reis de mel coado
para comprar soldados, lanças, armaduras,
para comprar o V das vitórias futuras.
O D. Sebastião era um belo pedante
foi mandar vir para uma terra distante
pôs-se a discursar: isto aqui é só meu
vamos lá trabalhar que quem manda sou eu.
Mas o mouro é que conhecia o deserto
de trás para diante e de longe e de perto
o mouro é que sabia que o deserto queima e abrasa
o mouro é que jogava em casa.
E o D. Sebastião levou tantas na pinha
que ao voltar cá encontrou a vizinha
espanhola sentada na cama, deitada no trono
e o país mudado de dono.
E o D. Sebastião acabou na moirama
um bebé chorão sem regaço nem mama
a beber, a contar tim por tim tim
a explicar, a morrer, sim, mas devagar
E apanhou tal dose do tal nevoeiro
que a tuberculose o mandou para o galheiro
fez-se um funeral com princesas e reis
e etcetera e tal, Viva Portugal.
Sérgio Godinho, De Pequenino Se Torce O Destino, 1976
Ficha de abordagem do tema musical “Os Demónios de Alcácer-Quibir”
1. Caracteriza o ritmo da canção salientando a sua expressividade.
2. O autor pretende revelar a sua caracterização da personalidade de D. Sebastião.
a) Explicita-a.
b) Qual é a figura de estilo predominante da qual se socorre o poeta para a caracterização de D. Sebastião? Justifica.
3. Caracteriza a linguagem utilizada recorrendo a dois exemplos.
4. Estabelece um paralelismo entre a mensagem desta canção de Sérgio Godinho e a obra estudada: “Frei Luís de Sousa “.
A Poesia Musicada de Intervenção em Portugal (1960-1974): a sua aplicabilidade no Ensino Secundário,
José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, p. 181.
Textos de apoio
A Simbiose Sinestésica Intertextual da Poesia Musicada em Sala de Aula: “Os Demónios de Alcácer Quibir” (letra e música de Sérgio Godinho)
Ritmo– Ternário, em clara imitação de cavalos a galope.
Melodia – Ao estilo do próprio cantautor, desconcertante, com alterações de ritmo e melodia.
Apresenta influências de música jazz, valorizando o pendor satírico do texto.
Harmonia – Complexa, rompendo com a rotina.
Análise semântica ‑ Este tema musical, segundo Gilbert Durand (“O Imaginário português e as aspirações do ocidente cavaleiresco”, in Cavalaria espiritual e conquista do mundo. Lisboa, Instituto nacional de investigação científica, 1986), tem como temática o imaginário profundo do povo português – O do Salvador D. Sebastião, rei que espera escondido a hora do regresso. Contudo, Sérgio Godinho refuta este mito e caracteriza com sarcasmo o arrojado desejo de vencer os mouros no seu próprio reduto. Utilizando uma linguagem oralizante, com expressões populares, o poeta pretende ridicularizar, abanando as consciências saudosistas que sempre aspiraram pela vinda do desejado e malogrado D. Sebastião.
Este Rei acreditava que uma vitória no Norte de África abriria novas alternativas para o alargamento territorial e consequente desenvolvimento financeiro do país. Seduzido por um projeto político sem limites e por ideais cavaleirescos, D. Sebastião lançou-se para a campanha de África coma ideia de engrandecer o Império Português, como refere Fernando António Baptista Pereira (O Retrato do rei Sebastião como cavaleiro do Graal. Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986, p. 73)
“…Esta junção do imaginário cavaleiresco com propostas megalómanas de redenção do todo nacional informa a assunção final da sua imagem de salvador da pátria pela conquista de Marrocos, chave para todos os problemas imediatos da expansão portuguesa.
Para tal desígnio, contraiu empréstimos provenientes dos fundos dos cristãos novos e despendeu somas elevadas para apetrechar um exército que pudesse vencer todas as adversidades.
O cantautor imprime um ritmo vivo, bélico, apostando numa cavalgada musical que nos transporta até à batalha a fim de poder libertar os “demónios,” como forma de exorcizar a consciência colectiva do povo português. De salientar a linguagem utilizada: coloquial, moderna, descomplexada, com uma mescla de expressões familiares e populares que pretendem também com o recurso à ironia, desmistificar a lenda. De acrescentar que orquestração e letra estão interligadas por uma desenvoltura na interpretação própria de um “trovador” histórico da música portuguesa ‑ Sérgio Godinho.
A primeira quadra satiriza através da repetição do verbo “investir” a medida julgada correta ‑ a de apostar no Norte de África. O terceiro e quarto versos ridicularizam, por hipálage -“cavalo atulhado de livros de história” em alusão a D. Sebastião que, segundo o Padre Amador Rebelo (Idem p.72 nota de rodapé nº 16), seu mestre, gostava imenso de ler livros de feitos históricos. A introdução das guitarras de fado na guerra ameniza a violência que se perspetiva. A segunda quadra destaca o tom irónico da hipoteca do país resultante da atitude assumida. A quadra seguinte apelida o rei de” pedante”, vaidoso, autoritário –“…Quem manda aqui sou eu”. A quarta quadra apresenta uma das razões da derrota portuguesa – o desconhecimento do terreno. A aventura bélica está presente no tema musical com uma parte desconcertante, com sons soltos, desgarrados, projetando a ideia de desorganização, de violência que desemboca na imagem satírica do rei ter perdido a guerra e ainda ver como companhia na cama uma espanhola referência - à mulher de Filipe II de Espanha – Ana de Áustria. A sátira prossegue com a imagem da morte de um jovem a beber como se de uma taberna se tratasse a explicar a frase que historicamente lhe é reconhecida: de não ter aceitado rendição e ter respondido que “…morreria sim mas devagar!…”Sérgio Godinho conhecedor de tal frase atribuída ao rei utiliza mais uma vez o tom sarcástico para menosprezar o rei.
Finalmente, a última quadra culmina com o nevoeiro, arquétipo desprezado pelo poeta pela forma leviana com que aborda a questão:”…apanhou tal dose do tal nevoeiro “O poeta aproveitou o nevoeiro para inventar a doença da tuberculose e divertir-se, uma vez mais, com o argumento de ter tido, finalmente, um funeral digno homenageado, em presença, por princesas, reis e outros aristocratas. Este é, segundo Gilbert Durand (O imaginário português e as aspirações do ocidente cavaleiresco. Lisboa, Instituto nacional de investigação científica, 1986, p.16), um mitologema da sociedade portuguesa” o do salvador, do rei que espera, escondido a hora de regresso “Contudo, com este cantautor o mitologema surge de forma invertida, negando-o pela forma sarcástica. A expressão final “Viva Portugal” pretende evidenciar o desprezo que este mitologema desperta no autor – um cansaço de um país que persiste, até agora, adiado a viver sob a alçada de um sebastianismo (Machado Pires, E -utopia: Revista electrónica de estudos sobre utopia, 2005. Internet disponível em http:/www.letras.up./pt/upi/utopiasportuguesas/e-topia/revista.htm, consultado em 2010-06-25)
Símbolo da utopia de um povo infeliz e secularmente oprimido (pela coroa, pela igreja, pelo Estado, por ditadores, por potências estrangeiras, potentados económicos, etc.), mas também igualmente pouco ou nada habituado a ser dono do seu próprio destino e que se sente eternamente órfão de um líder iluminado que o encaminhe, num futuro mais ou menos distante, para um horizonte de glória (…) povo (…) que o leva a gostar de carismas, auras míticas, destinos de missão, promessas milagres salvações espetaculares …um povo (generoso mas imprevidente ?!) que pensa mais com o coração do que com a cabeça …só a verdadeira cultura e a educação darão mais autoconfiança coletiva.
Sérgio Godinho, com este tema, pretende denunciar o sintoma de decadência, endógeno do povo português em se iludir na “emergência cíclica do inconsciente cultural português, em períodos de crise, de viragem, de profunda mutação do mito sebastiânico (ou de tendências messiânicas que com ele se confundem). “O poeta insurge-se contra a mitogenia como força impulsionadora do pensamento e da arte (incluindo a literatura). Os portugueses gostam de mitos; não os enterram, glosam-nos, desenvolvem-nos.” (Ibidem)
Os portugueses fomentam este mitologema porquanto ele parece constituir-se como resposta patriótica do subconsciente coletivo.
Já Almeida Garrett, na obra de carácter dramático lecionada no programa do 11º ano do Ensino Secundário ‑ Frei Luís de Sousa, ao provocar a tragédia familiar, pretendia apelar para a necessidade de expurgar o sentimento patriótico do povo português. Como mensagem, transparece a ideia que o passado saudosista e todas as conotações daí advindas assombram e, consequentemente, impedem a regeneração da consciência coletiva do povo. Urge colocar, por isso, um final perentório, abrupto, tal com termina o tema musical, exprimindo a impaciência de quem acredita na mudança de mentalidade.
A Poesia Musicada de Intervenção em Portugal (1960-1974): a sua aplicabilidade no Ensino Secundário,
José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, pp. 137-140.
O Cantautor Sérgio Godinho
Sérgio Godinho, nascido em 31 de Agosto de 1945, empenhou-se desde a sua adolescência, por influência dos pais anti-salazaristas, em demarcar-se da política vigente ao negar os seus préstimos como militar ao serviço da guerra colonial. Como consequência, abandonou o país e após ter visitado a Suíça instalou-se em Paris na companhia de José Mário Branco e de Luís Cília. Nesta cidade, assistiu à célebre revolta dos estudantes franceses denominada “Maio de 68”. A experiência adquirida com esta luta, coadjuvada com a participação na propalada ópera rock “Hair” possibilitou abertura de novos horizontes essenciais para a escrita e composição de temas musicais. Como o próprio cantautor refere, a propósito da sua participação na citada ópera rock,
(…) Entrei no “Hair” em 69 porque uma das coisas que senti mesmo intuitivamente é que esses universos eram conjugáveis. Não foi por acaso que mais tarde faço uma canção: “a paz, o pão, habitação”, que é um rock puro sobre as palavras deordem, eu chamo aquilo um graffiti musical, portanto esses universos eram conciliáveis. Raposo (2007:96)
Apaixonado confesso de José Afonso, Sérgio Godinho considera-o “um melodista nato extremamente talentoso e criativo” (In Mundo da Canção, Volume 1, Lisboa, 2005).
Após ter composto canções em francês, iniciou o seu longo percurso musical com o L.P. ”Os Sobreviventes”. Deste trabalho, recebeu em 1972, o prémio da Casa de Imprensa como o melhor autor da letra e, em 1973, foi premiado como melhor disco do ano.
Em 1972, o cantautor grava o L.P. “Pré-Histórias”. São estes dois álbuns que, por precederem a data da Revolução de Abril de 1974, nos interessam para o estudo deste trabalho de investigação. Eles traçam aspetos marcantes que caracterizaram a identidade portuguesa da época.
No tema “Descansa a Cabeça (Estalajadeira)”, Sérgio Godinho destaca o facto de se considerar apátrida, sem quaisquer ligações ao país. Considera-se um cidadão do mundo que, por mera casualidade, nasceu neste canto – em Portugal. O poeta assume uma posição de perfeito desafio relativamente às autoridades políticas do país. Por outra via, valoriza, quer os elos familiares quer a sua liberdade. Salientamos a sua reiterada preocupação em considerar-se um cidadão livre, sem qualquer espécie de constrangimentos:
(…) Vim/ ao mundo/por acaso/Em Portugal não tenho pátria /
Sou sozinho / e sou da cama dos meus pais
Sou /donde vos apetecer
sou do mar e sou do corpo /das mulheres estranguladas nos canais […]
A sua contestação à guerra do Ultramar, facto que motivou o abandono do país, está evidenciada nos versos:
“Sei /fazer a guerra à guerra /sei histórias verdadeiras
sei resistir ao calor, aos temporais
Sei /rasgar quando é preciso
é preciso tantas vezes
duas vezes, outras tantas, muitas mais.
Sou sozinho / e sou da cama dos meus pais
Sou /donde vos apetecer
sou do mar e sou do corpo /das mulheres estranguladas nos canais […]
A sua contestação à guerra do Ultramar, facto que motivou o abandono do país, está evidenciada nos versos:
“Sei /fazer a guerra à guerra /sei histórias verdadeiras
sei resistir ao calor, aos temporais
Sei /rasgar quando é preciso
é preciso tantas vezes
duas vezes, outras tantas, muitas mais.
O autor exprime uma forte clarividência que contrasta com o mal-estar resultante da hipocrisia de todos quantos usavam falsas palavras para ludibriar aqueles que pretendiam ser livres. O ambiente de repressão, de medo, pelo facto de nunca se saber quem são os confidentes ou os denominados “bufos” do regime, está patente na canção “Até Domingo”. Encontramos, neste tema, um apelo à união dos opositores contra a mentira. Caso assim não seja, não se poderá esperar outro desfecho senão a morte silenciada:
(…) E para aqui estamos em salamaleques /a lamber mãos feitas para abanar leques a pedir bis, a gritar bravo, /a aplaudir, muito bem
e até domingo que vem
Nunca vivi nada em vão /vi muita palavra tornar-se
em tanta gente em disfarce /e em muita boca traição
E em muita boca traição /e em cada de nós um olhar
se nos vierem falar /sabemos quem eles são
Sabemos quem eles são /como quem sabe de si mesmo
o medo, a vida desfez-mo /a letra me tomarão
Sabemos já d´antemão /quem nasceu p´ra viver de luto
a flor de Junho dá fruto /o homem sozinho é que não/
O homem sozinho é que não /que diga quem quase morreu
a perguntar "quem sou eu" /e a viver da solidão
E a viver da solidão /fomos pouco a pouco fazendo /
a nossa cova no vento /abrigados num caixão “
e até domingo que vem
Nunca vivi nada em vão /vi muita palavra tornar-se
em tanta gente em disfarce /e em muita boca traição
E em muita boca traição /e em cada de nós um olhar
se nos vierem falar /sabemos quem eles são
Sabemos quem eles são /como quem sabe de si mesmo
o medo, a vida desfez-mo /a letra me tomarão
Sabemos já d´antemão /quem nasceu p´ra viver de luto
a flor de Junho dá fruto /o homem sozinho é que não/
O homem sozinho é que não /que diga quem quase morreu
a perguntar "quem sou eu" /e a viver da solidão
E a viver da solidão /fomos pouco a pouco fazendo /
a nossa cova no vento /abrigados num caixão “
O tema “A-E-I-O” revela-se contra a tradição, os costumes que passam de velhas gerações para as novas, sem que esse facto se constitua algo de positivo, que se possa valorizar. O poeta constata que os portugueses sentem que as suas vidas não evoluem devido aos variados constrangimentos quer a nível económico, quer social, quer político. A repressão exercida sobre as pessoas é, de tal forma, que elas não se sentem motivadas para desenvolver as suas tarefas de uma forma construtiva. O ambiente de censura e de opressão geram tristeza, mesmo angústia. O poeta deseja o aparecimento de um novo dia, uma nova oportunidade sob um regime democrático. Em estilo próprio Sérgio Godinho revela a sua principal característica - a ironia, através de expressões populares, dialógicas, informais, irreverentes, com efeitos sonoros repetitivos a destacar a agressão de que o próprio, no final, se torna vítima:
“A-E-I-O vai para a neta o que foi d´avó
/A-A-E-I-O vai para a neta o que foi d´avó (refrão)
A vida de quem anda /às ordens de quem manda
já cheira que tresanda /não anda nem desanda
não anda nem desanda /não anda nem desanda
A vida de quem chora /à espera duma aurora /que leve a noite embora
bem perde p'la demora /bem perde p’la demora /bem perde p´la demora .
(A-A-E-I-O...)
(A vida de quem anda...)
-A-E-I-O bate na neta quem bateu n´avó /A-A-E-I-O bate na neta quem bateu n´avó
A-A-E-E-I bate na neta quem bateu em ti /A-A-E-E-I bate na neta quem bateu em ti.
/A-A-E-I-O vai para a neta o que foi d´avó (refrão)
A vida de quem anda /às ordens de quem manda
já cheira que tresanda /não anda nem desanda
não anda nem desanda /não anda nem desanda
A vida de quem chora /à espera duma aurora /que leve a noite embora
bem perde p'la demora /bem perde p’la demora /bem perde p´la demora .
(A-A-E-I-O...)
(A vida de quem anda...)
-A-E-I-O bate na neta quem bateu n´avó /A-A-E-I-O bate na neta quem bateu n´avó
A-A-E-E-I bate na neta quem bateu em ti /A-A-E-E-I bate na neta quem bateu em ti.
O mal-estar prossegue com o tema “Senhor Marquês.” Ao seu estilo frontal, Sérgio Godinho denuncia a pobreza, a miséria dos mais necessitados. O poeta serve-se da figura do Marquês para demarcar ainda mais o fosso entre o rico e o pobre que vive nos bairros de lata. A exploração é de tal forma, que uma vez assaltado, o Marquês não desperta qualquer preocupação e consequente proteção, tanto por parte das restantes pessoas bem como das autoridades. Comprova a passagem, que o povo manifesta desprezo para com o rico em caso de assalto. Tal é o desgaste da sua posição de superioridade e simultânea indiferença para com os demais. O cantautor, ao invés, assume uma posição de compreensão, de compaixão para com os explorados:
”Se nós somos ladrões /temos razões
Que não são as suas, /são minhas, tuas/
E de outros mais /de muitos muitos mais /
Olhe pra aqui uma vez /Senhor Marquês
Do bairro da lata /Está A gente farta
Senhor Marquês /E o nosso fim do mês
Passe pra cá a carteira /Da sua algibeira
Carteira em couro /Relógio de ouro
Não lhe faz falta /E faz-nos jeito à malta
Ó da guarda, ladrões /Pelos meus brasões
Ai meu Deus socorro /Jesus que eu morro
Grita o Marquês /Ninguém vem desta vez
Venha por aqui ver isto /Senhor Ministro
Que estes bandidos /Uns malnascidos
Ainda sem dentes /E já delinquentes
Meta aqui o nariz /Senhor Juiz
Nós somos bandidos /ou malnascidos?
Senhor Ministro /Perdoe se insisto.”
Que não são as suas, /são minhas, tuas/
E de outros mais /de muitos muitos mais /
Olhe pra aqui uma vez /Senhor Marquês
Do bairro da lata /Está A gente farta
Senhor Marquês /E o nosso fim do mês
Passe pra cá a carteira /Da sua algibeira
Carteira em couro /Relógio de ouro
Não lhe faz falta /E faz-nos jeito à malta
Ó da guarda, ladrões /Pelos meus brasões
Ai meu Deus socorro /Jesus que eu morro
Grita o Marquês /Ninguém vem desta vez
Venha por aqui ver isto /Senhor Ministro
Que estes bandidos /Uns malnascidos
Ainda sem dentes /E já delinquentes
Meta aqui o nariz /Senhor Juiz
Nós somos bandidos /ou malnascidos?
Senhor Ministro /Perdoe se insisto.”
A canção “Que Bom Que É” satiriza, recorrendo ao cómico de situação, presente em momentos vários. Sérgio ironiza os grandes males de que a sociedade, na sua ótica, padece e que urge alterar, nomeadamente o Sebastianismo: Qual faca enterrada nas costas e a consciência das implicações negativas daí geradas: a fome, a ineficácia da crença religiosa, a guerra colonial e a exploração laboral dos operários. A abordagem destes temas comprova a preocupação do cantautor perante uma sociedade anquilosada a necessitar de amplas reformas estruturais. Sérgio Godinho, para suavizar, mitigar as críticas, recorre, uma vez mais, à ironia, ao discurso hiperbólico, ao paralelismo, à repetição, características próprias do dialogismo utilizando expressões do quotidiano de forma a aproximar-se do mundo real. Torna-se uma estratégia com o objetivo de motivar, de se identificar, o mais possível, com as pessoas que se sentem abandonadas:
“Vivo com uma faca espetada nas costas, ai!
Que bom que é /que bom que é /que bom que é
Sentado à espera de D. Sebastião /A cadeira nem é minha, é do papão
Que bom que ele é, /que bom que ele é,
- Um, dois, um-dois-três, paciência, fica pra outra vez
Vivo com a fome entalada na garganta /Que bom que é
Que bom que é /que bom que é
Sentado à espera que o céu me dê pão
A cadeira, emprestou-ma o sacristão
Que bom que ele é /que bom que ele é
- Um, dois, um-dois-três, paciência, fica pra outra vez
Vivo com a guerra a bater à minha porta
Que bom que é /que bom que é
Que bom que é /Sentado à espera do obus dum canhão
A cadeira, emprestou-ma o capitão /que bom que ele é
Que bom que ele é
- Um, dois, um-dois-três, paciência, fica pra outra vez
Vivo a trabalhar nove dias por semana
Que bom que é /que bom que é
Que bom que é /Sentado à espera da revolução
A cadeira, emprestou-ma o meu patrão /que bom que ele é
Que bom que ele é
- Um, dois, um-dois-três de Oliveira & quatro
Vivo com uma faca enterrada nas costas, ai!
Que bom que é /que bom que é
Que bom que é /Sentado à espera de D. Sebastião
A cadeira nem é minha, é do papão
Que bom que ele é /que bom que ele é
- Um, dois, um-dois-três, esta agora vai de vez “.
Que bom que é /que bom que é /que bom que é
Sentado à espera de D. Sebastião /A cadeira nem é minha, é do papão
Que bom que ele é, /que bom que ele é,
- Um, dois, um-dois-três, paciência, fica pra outra vez
Vivo com a fome entalada na garganta /Que bom que é
Que bom que é /que bom que é
Sentado à espera que o céu me dê pão
A cadeira, emprestou-ma o sacristão
Que bom que ele é /que bom que ele é
- Um, dois, um-dois-três, paciência, fica pra outra vez
Vivo com a guerra a bater à minha porta
Que bom que é /que bom que é
Que bom que é /Sentado à espera do obus dum canhão
A cadeira, emprestou-ma o capitão /que bom que ele é
Que bom que ele é
- Um, dois, um-dois-três, paciência, fica pra outra vez
Vivo a trabalhar nove dias por semana
Que bom que é /que bom que é
Que bom que é /Sentado à espera da revolução
A cadeira, emprestou-ma o meu patrão /que bom que ele é
Que bom que ele é
- Um, dois, um-dois-três de Oliveira & quatro
Vivo com uma faca enterrada nas costas, ai!
Que bom que é /que bom que é
Que bom que é /Sentado à espera de D. Sebastião
A cadeira nem é minha, é do papão
Que bom que ele é /que bom que ele é
- Um, dois, um-dois-três, esta agora vai de vez “.
O tema: “O Charlatão” aborda a temática do enriquecimento do vendedor de ilusões numa sociedade estigmatizada por um grave problema social: a ausência dos maridos que, ou estão presos por crimes cometidos, ou cumprem serviço militar na Guerra do Ultramar, onde ou já faleceram ou se encontram feridos. Finalmente, a ausência do marido poder-se-á dever ao facto de ter ido para o estrangeiro à procura de uma ambicionada solução para a vida familiar, com as inerentes dificuldades de adaptação a uma sociedade que apresenta difíceis condições de adaptação: uma nova língua, um trabalho diversificado, uma outra habitação, em síntese, um emigrante a viver, isolado de sua família, uma experiência num país com costumes e tradições diferentes:
“Numa ruela de má fama /faz negócio um charlatão
Vende perfumes de lama /anéis de ouro a um tostão
Enriquece o charlatão
No beco mal afamado /as mulheres não têm marido
Um está preso, outro é soldado /um está morto e outro ferido
E outro em França anda perdido”
Vende perfumes de lama /anéis de ouro a um tostão
Enriquece o charlatão
No beco mal afamado /as mulheres não têm marido
Um está preso, outro é soldado /um está morto e outro ferido
E outro em França anda perdido”
O retrato do país apresentado pelo cantor no tema “O charlatão “testemunha o protótipo do político comparável ao vendedor da ” banha da cobra” que, com a sua mentira, consegue ludibriar as pessoas com as artimanhas utilizadas; contudo, a realidade é mais complexa:
“Como esta narração não bastasse: ”os catraios passam fome /têm os dentes enterrados no pão que ninguém mais come /os catraios passam fome /entre a rua e o país /vai um passo de um anão.
Destas imagens extraímos uma sociedade doente, perdida, sem rumo onde as pessoas aceitam a ilusão de um charlatão que ocupa “o trono”: Vai rei que ninguém quis/vai tiro de um canhão /e o trono é do charlatão.
Parece-nos que esta ideia de considerar o político um charlatão perdurou ao longo dos anos. Esta noção é reveladora de uma total descredibilização da classe política do regime salazarista.
Enquanto as crianças vivem em más condições de salubridade e passam fome, o charlatão exibe a sua ostentação ocupando a cadeirado poder. Concluindo, o Charlatão é o representante do governo fascista.
[…]
Na ruela de má fama /o charlatão vive à larga
Chegam-lhe toda a semana /em camionetas de carga
Rezas doces, paga amarga
No beco dos malfadados /os catraios passam fome
Têm os dentes enterrados /no pão que ninguém mais come
Os catraios passam fome
P’rá rua saem toupeiras /entra o frio nos buracos
Dorme a gente nas soleiras /das casas feitas em cacos
Em troca de alguns patacos […]
Entre a rua e o país /vai o passo de um anão
Vai o rei que ninguém quis /vai o tiro dum canhão
E o trono é do charlatão
Entre a rua e o país /vai o passo de um anão
Vai o rei que ninguém quis /vai o tiro dum canhão
E o trono é do charlatão.”
Chegam-lhe toda a semana /em camionetas de carga
Rezas doces, paga amarga
No beco dos malfadados /os catraios passam fome
Têm os dentes enterrados /no pão que ninguém mais come
Os catraios passam fome
P’rá rua saem toupeiras /entra o frio nos buracos
Dorme a gente nas soleiras /das casas feitas em cacos
Em troca de alguns patacos […]
Entre a rua e o país /vai o passo de um anão
Vai o rei que ninguém quis /vai o tiro dum canhão
E o trono é do charlatão
Entre a rua e o país /vai o passo de um anão
Vai o rei que ninguém quis /vai o tiro dum canhão
E o trono é do charlatão.”
O Tema “Pode alguém ser quem não é” apresenta uma mulher que lamenta a partida do seu marido para o Brasil. É no jogo dos deícticos que se estabelece a dicotomia entre os dois países:
“-Senhora de preto aqui é quase Inverno/aí quase Verão
Mês d’Abril, águas mil
No Brasil também tem
Noites de S. João e mar”
Contudo, o “leit motif” reside no facto de o poeta questionar-se como ele próprio poderá sentir-se livre no Brasil quando o seu compatriota se sente perseguido, preso impedido de emitir livremente a sua opinião:
Diga o que lhe dói, é dor ou saudade/que o peito lhe rói
O que tem, o que foi/o que dói no peito?
-É que o meu homem partiu
[…]
Pode alguém ser livre/se outro alguém não o é
a algema dum outro/serve-me no pé
Nas duas mãos, / sonhos vãos, pesadelos
Diz-me: /pode alguém ser quem não é?”
O que tem, o que foi/o que dói no peito?
-É que o meu homem partiu
[…]
Pode alguém ser livre/se outro alguém não o é
a algema dum outro/serve-me no pé
Nas duas mãos, / sonhos vãos, pesadelos
Diz-me: /pode alguém ser quem não é?”
O sofrimento persiste no tema “Já A Vista Me Fraqueja”. Neste, o cantautor enuncia que não tem medo da morte. O que mais o afronta é sentir o mesmo que o seu irmão.
Na canção “O Barnabé”, Sérgio Godinho evidencia a inteligência e a experiência populares que perante pseudo-doutas pessoas não se deixam ludibriar. O cantautor pretende valorizar o realismo, a humildade, a experiência de um povo que já não se deixa seduzir por promessas vãs ou doces quimeras anunciadas pela classe dirigente:
Vieram profetas/vieram doutores
Santos milagreiros, poetas, cantores
Cada qual com um discurso diferente
P'ra curar a vida da gente/e a gente parada
Fez orelhas moucas/que com falas dessas
As esperanças são poucas/mas quando o Barnabé cá chegou
Toda a gente arribou
Toda a gente arribou
Que é que têm o Barnabé que é diferente dos outros…”
Santos milagreiros, poetas, cantores
Cada qual com um discurso diferente
P'ra curar a vida da gente/e a gente parada
Fez orelhas moucas/que com falas dessas
As esperanças são poucas/mas quando o Barnabé cá chegou
Toda a gente arribou
Toda a gente arribou
Que é que têm o Barnabé que é diferente dos outros…”
O único discurso que mobilizou as pessoas foi o do Barnabé; foi diferente dos outros visto que o seu objetivo era “falar verdade”. O discurso político não era credível aos olhos do povo.
O grito da canção ”Eh meu irmão” é um alerta para o medo de ter medo ou seja, pretende encorajar o homem a vencer as suas fobias. Destacamos a estrofe que anuncia um povo que se manifesta, nesse momento, sem receios na rua, espaço que lhe pertence e onde devia poder expressar livremente a sua opinião:
Eh, meu irmão, que é que tens, /parece que viste o diabo!
Vi mesmo, bateu à porta/disse que o povo estava na rua
E que a rua era do povo/que é pra quem ela foi feita
E o povo somos nós todos/e eu, então gritei:
Ai o diabo!
Vi mesmo, bateu à porta/disse que o povo estava na rua
E que a rua era do povo/que é pra quem ela foi feita
E o povo somos nós todos/e eu, então gritei:
Ai o diabo!
O irmão, apesar de ser incentivado a lutar contra o medo, não conseguiu ultrapassar essa barreira. Por essa razão, faleceu numa prisão qualquer, sem ter vivido verdadeiramente a sua vida contudo recebendo a respectiva e habitual bênção religiosa:
(…) Eh, meu irmão que é que tu tens/o que é que te pôs assim!
Foi o medo da água fria/o medo da vida, o medo da morte
O medo da lua cheia/o medo da lua nova
O medo até de ter medo/que me faz gritar
Ai, que medo!
E assim com medo de tudo/perdeu meu irmão a vida
E assim com medo de tudo/viveu-a e não foi vivida
Meteram-no num caixão/às duas por três, num dia de Verão
Desceram-no p’ra uma cova/deitaram terra por cima
Espetaram-lhe uma cruz/ ita missa est, Ámen”.
Foi o medo da água fria/o medo da vida, o medo da morte
O medo da lua cheia/o medo da lua nova
O medo até de ter medo/que me faz gritar
Ai, que medo!
E assim com medo de tudo/perdeu meu irmão a vida
E assim com medo de tudo/viveu-a e não foi vivida
Meteram-no num caixão/às duas por três, num dia de Verão
Desceram-no p’ra uma cova/deitaram terra por cima
Espetaram-lhe uma cruz/ ita missa est, Ámen”.
Sérgio Godinho no tema: “Que Força é Essa” abandona o estilo irónico para optar por uma linha reivindicativa e denunciadora de uma exploração dos operários, classe dos mais desfavorecidos.
É uma canção que apela aos trabalhadores para reivindicarem os seus direitos perante um esforço que não é devidamente recompensado. O “amigo”, porque tem por obrigação agradar ao seu patrão, independentemente das condições familiares, sociais e económicas, sente-se revoltado.
A sua tarefa é, única e exclusivamente, obedecer ao seu superior de quem recebe o seu reduzido salário.
Vi-te a trabalhar o dia inteiro/Construir as cidades para os outros
Carregar pedras, desperdiçar/Muita força p'ra pouco dinheiro
Vi-te a trabalhar o dia inteiro/Muita força P’ra pouco dinheiro
Que força é essa/que força é essa
Que trazes nos braços/Que só te serve para obedecer
Que só te manda obedecer/Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo/Que te põe de bem com os outros
E de mal contigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo.
Carregar pedras, desperdiçar/Muita força p'ra pouco dinheiro
Vi-te a trabalhar o dia inteiro/Muita força P’ra pouco dinheiro
Que força é essa/que força é essa
Que trazes nos braços/Que só te serve para obedecer
Que só te manda obedecer/Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo/Que te põe de bem com os outros
E de mal contigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo.
Finalmente, o poeta instiga o “amigo trabalhador” a exprimir a sua revolta, o seu poder reivindicativo a fim de debelar as injustiças de que é vítima.
Não me digas que não me compreendes/Quando os dias se tornam azedos
Não me digas que nunca sentiste/Uma força a crescer-te nos dedos
E uma raiva a nascer-te nos dentes/Não me digas que não me compreendes
Que força é essa…
Não me digas que nunca sentiste/Uma força a crescer-te nos dedos
E uma raiva a nascer-te nos dentes/Não me digas que não me compreendes
Que força é essa…
Como corolário deste espírito de incentivo à coragem, a uma nova estratégia de esperança na transformação da sociedade há muito desejada, podemos analisar o poema musicado “Maré Alta”. O cantautor” concita metaforicamente o companheiro a aprender a nadar, ou seja, a estar atento aos movimentos que conduzem a uma nova realidade política, designada de democracia. Esta lançará por terra “a maré baixa” gerida sobre a pobreza, sobre a miséria, sobre a exploração e sobre a repressão. Destacamos o facto de o poema se apresentar em maiúsculas como forma de atrair todas as atenções para o grande momento que se perspetiva. É um alerta que prenuncia a vinda da democracia que terá lugar em 25 de Abril de 1974 (Registe-se o facto de a composição estar em maiúsculas em forma de grito):
“APRENDE A NADAR COMPANHEIRO
APRENDE A NADAR COMPANHEIRO
QUE A MARÉ SE VAI LEVANTAR
QUE A MARÉ SE VAI LEVANTAR
QUE A LIBERDADE ESTÁ A PASSAR POR AQUI
QUE A LIBERDADE ESTÁ A PASSAR POR AQUI
MARÉ ALTA
MARÉ ALTA
MARÉ ALTA”.
APRENDE A NADAR COMPANHEIRO
QUE A MARÉ SE VAI LEVANTAR
QUE A MARÉ SE VAI LEVANTAR
QUE A LIBERDADE ESTÁ A PASSAR POR AQUI
QUE A LIBERDADE ESTÁ A PASSAR POR AQUI
MARÉ ALTA
MARÉ ALTA
MARÉ ALTA”.
A Poesia Musicada de Intervenção em Portugal (1960-1974): a sua aplicabilidade no Ensino Secundário,
José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, pp. 87-96.
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► Os Demónios de Alcácer Quibir (1976) é um filme português de longa-metragem deJosé Fonseca e Costa que, na linha do cinema militante, se embrenha na ficção, misturando situações verosímeis com fantasia histórica.
Realizada por José Fonseca e Costa e rodada entre julho e agosto de 1975, a longa-metragem Os Demónios de Alcácer Quibir estreou a 9 de abril de 1977, em Lisboa. Refletindo a imagem de um país que mergulha na memória de um passado recente (a vivência do regime fascista) e no espaço mitológico dos fantasmas que povoam o inconsciente nacional, é um filme onde se destacam as interpretações de António Beringela, Ana Zanatti, Sérgio Godinho (que aqui se estreia no cinema português), João Guedes e Zita Duarte. Destacam-se também o trabalho de câmara e a fotografia.
Os Demónios de Alcácer Quibir. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-09-14]. Disponível na www:
► “Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como
arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro
[Post orignal: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/09/18/os-demonios-de-alcacer-quibir.aspx]
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