Talvez que noutro mundo, noutro livro,
tu não tenhas morrido
e talvez nesse livro não escrito
nem tu nem eu tenhamos existido
e tenham sido outros dois aqueles
que a morte separou e um deles
escreva agora isto como se
acordasse de um sonho que
um outro sonhasse (talvez eu).
e talvez então tu, eu, esta impressão
de estranhidão, de que tudo perdeu
de súbito existência e dimensão,
e peso, e se ausentou,
seja um sonho suspenso que sonhou
alguém que despertou e paira agora
como uma luz algures do lado de fora.
Manuel António Pina
*
TALVEZ DE NOITE
Não abras a porta,
se for o sublime diz que não estou,
já temos palavras de mais, sentimentos de mais.
A glicínia não floriu este ano,
antes floria à volta de tudo
o que resta de azul à nossa volta,
envelheceu, anima-a só o desejo de voltar a casa, de ser uma casa.
Não abras a porta,
se for o sublime diz que não estou,
já temos palavras de mais, sentimentos de mais.
A glicínia não floriu este ano,
antes floria à volta de tudo
o que resta de azul à nossa volta,
envelheceu, anima-a só o desejo de voltar a casa, de ser uma casa.
Manuel António Pina, Como se desenha uma
casa
Poderá também gostar de ler:
- "Manuel António Pina - Uma vida de palavras" (Dossiê), Luís Ricardo Duarte, Álvaro Magalhães e José Carlos de Vasconcelos in JL, 2021-09-22.
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