Na foto: Florian Magnenet no papel de Saint-Loup e
Stéphane Bullion no de Morel no bailado de Roland Petit “Proust ou les intermittences du coeur” |
A pessoa que amamos é a metade que nos
falta para nos sentirmos completos? Esta pergunta obteve uma resposta positiva
num trecho que faz parte do Banquete
de Platão, no qual a raça humana é entendida como descendente de seres que
tinham quatro olhos, quatro braços, quatro pernas: tudo a dobrar. Zeus cortou
esses seres ao meio, fazendo assim com que cada metade ande desesperadamente à
procura da metade que lhe falta. O desejo de completude é a explicação do amor.
Quando nos apaixonamos por
alguém, faz parte da sintomatologia própria da paixão percepcionarmos a pessoa
amada como a peça que faltava para nos sentirmos inteiros. A descarga louca de
dopamina no nosso cérebro que ocorre quando o ente amado sente em relação a nós
o mesmo que sentimos em relação a ele dá-nos, de facto, a ilusão de que a
proximidade dele e a união sexual com ele nos faz inteiros. Era a metade que
nos faltava, era a pessoa de que andávamos à procura, toda a vida esperámos por
ela e agora: ei-la!
No entanto, quem já tem meio
século de idade e já se apaixonou diversas vezes (sempre com a mesma
sintomatologia) sabe que é contrário à lógica que possa haver tantas metades
sobresselentes de si mesmo a pulular aí pelo mundo. Essa ideia da pessoa que
nos torna inteiros tem mesmo de ser uma ilusão. Apesar de tudo, a proposta algo
humorística de Platão de que se encontram no amor as metades tresmalhadas do
mesmo corpo faz algum sentido quando estamos a falar do amor entre pessoas do
mesmo sexo. Todos já reparámos em tantos e tantos casais de lésbicas e de gays
cujo aspeto exterior sugere imediatamente a ideia do desdobramento da mesma
pessoa. Como se eu e o meu hipotético namorado formássemos um casal constituído
por dois Fredericos. Muitos casais de gays obedecem, de facto, a esse
paradigma: mesma roupa, mesma barba, óculos iguais, mesma composição corporal
(gorda ou magra ou atlética), etc.
Esta questão é interessante
porque, muitas vezes, se víssemos individualmente os dois Fredericos antes de
se terem conhecido, as semelhanças não seriam assim tantas. A relação em si – a
intimidade sexual e todas as outras intimidades – é que vai cumulativamente
concretizando esse processo. De forma lapidar, Camões chamou-lhe “transforma-se o amador na coisa amada”.
Bom, estou aqui a falar em dois
hipotéticos Fredericos, mas no caso do Frederico real que assina este texto
nunca se deu esse fenómeno de transformação em termos de morfologia exterior,
pelo simples facto de os meus namorados até hoje terem sido completamente
diferentes de mim no que toca a aparência física. Nunca ninguém olhou para mim
a desempenhar o meu papel enquanto parte de um casal para dizer “olha que par
de clones!”. Isso não significa, porém, que o verso “transforma-se o amador na
coisa amada” não tenha feito sentido muitas vezes na minha vida passada, a
ponto de sobre esse tema ter escrito um livro de poesia, Clara Suspeita de Luz (Lisboa, Caminho, 2011).
Nesse livro, o sujeito lírico
procura lidar com a perda do amante por meio da estratégia “doravante passarei
a ser tu”. Lendo nas entrelinhas dos versos (“sentirei o teu cheiro quando
despir a camisa...”), percebemos que o Eu agora veste roupa igual à do
namorado, usa o mesmo perfume, os mesmos óculos e o mesmo corte de cabelo.
Literalmente o que se diz é “afinal a tua partida não me privou de ti, / se
reencontro a cada momento o teu ser em mim, / se ao ver-me no espelho eu vejo o
teu reflexo”.
De acordo com a ideia platónica das metades
desencontradas, o que sucede ao Eu lírico de Clara Suspeita de Luz é duplicar-se de modo a ser ele próprio as
duas metades. “Perder-te permitiu-me descobrir que sou tu, / que és eu em tudo
o que em ti amo e amei”.
Dizer de quem amamos “és tu
certamente o mais eu de mim” implica ao mesmo tempo um longo processo de
descoberta desse “eu”. Quase se poderia dizer que, quando nascemos, a pessoa
mais estranha (em sentido de “stranger”) com quem temos de lidar somos nós
mesmos. Viver e crescer é aprender a conhecer essa pessoa. Curiosamente, nada
nos traz mais próximos de nós mesmos do que amar outra pessoa. Quando o amante
de Clara Suspeita de Luz se refere ao
nome do namorado perdido como “o teu nome com que hoje a mim mesmo me nomeio”,
isso não significa que – por hipótese – um Frederico tenha passado a chamar-se
Francisco, mas que esse Frederico passou a ser duplamente Frederico. É o que,
noutro poema do mesmo livro, se chama o “ganho de uma perda”.
Frederico
Lourenço, O Lugar Supraceleste,
Lisboa, Livros Cotovia, 2015.
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