Um transgressor à conquista dos reinos da poesia.
Chegam uns meninos de mota,
Com a china na bota e o papá na algibeira
São pescada marmota que não vende na lota
Que apodrece no tempo e não cheira
Porque o tempo
É a derrota
Chegam criaturas fatais
Muito intelectuais tal como a fava-rica
Sabem sempre de mais,
Escrevem para os jornais com canetas molhadas na bica
E a inveja (sim, a inveja!)
É quanto fica
Como quem está num chá dançante
Duas velhas de penante depenicam uma intriga
Debicando bolinhos vários
Dizem mal dos operários que são a espécie inimiga
Chegam depois boas maneiras
Com anéis e pulseiras e sapatos de salto
São as bichas matreiras que só dizem asneiras
São rapazes pescado do alto
E o que resta
É pó de talco
Chegam depois os vagabundos
Que por falta de fundos não ocupam a mesa
Têm olhos profundos,
Vão atrás de outros mundos que pagaram com sono e beleza
Mas o troco
É a pobreza
Chegam finalmente os cantores
Os que fazem as flores neste mundo de gente
São os modernos trovadores
Que adormecem as dores numa bica bem quente
Como quem está num chá dançante
Duas velhas de penante depenicam uma intriga
Debicando bolinhos vários
Dizem mal dos operários que são a espécie inimiga
Chegam depois boas maneiras
Com anéis e pulseiras e sapatos de salto
São raposas matreiras que só dizem asneiras
Sâo rapazes pescado do alto
E que resta
(Evidentemente que é) Pó de talco
Chegam depois os vagabundos
Que por falta de fundos não ocupam a mesa
Têm olhos profundos,
Vão atrás de outros mundos que pagaram com sono e beleza
Mas o troco
É sempre a pobreza
Chegam finalmente os cantores
Os que fazem as flores neste mundo de gente
São os modernos trovadores
Que adormecem as dores numa bica bem quente
A veia
criadora e declamadora de Ary dos Santos
por Lucas Brandão, 2020-03-26
José Carlos Ary dos Santos fez história em Portugal. Deu
a voz a muita poesia portuguesa mas, e acima de tudo, compôs imensas canções que
fizeram do fado ser quem é atualmente. Acima de tudo, um género musical
identitário, com um repertório relativamente amplo e bem conseguido. Para este,
contribuiu muito o génio criativo, que, para além de proporcionar quatro
canções que representaram Portugal no Festival Eurovisão da Canção, deu o mote
para o sucesso da carreira de fadistas consagrados atualmente, como Amália Rodrigues ou
Carlos do Carmo. Esquecido por via da sua morte precoce, é portador de um
legado que importa ser relembrado e bem louvado.
José Carlos Pereira Ary
dos Santos nasceu em Lisboa, no dia 7 de dezembro de 1937. Seria nesta mesma
cidade que viria a partir, aos 46 anos de idade, no dia 18 de janeiro de 1984.
Nasceu numa família de raiz aristocrata, descendentes do Conde de Palmela e do
Visconde de Manique, importantes figuras nobiliárquicas no século XIX. Começou
a sua formação no Colégio Infante Sagres, mas o seu comportamento irrequieto e
rebelde levá-lo-ia a ser expulso. Um breve período num colégio jesuíta a norte,
em Santo Tirso, permitiu que regressasse a Lisboa, onde estou no Colégio São
João de Brito. A morte da sua mãe e a relação distante com o pai – saiu de casa
ainda adolescente – obrigou-o a procurar o seu sustento como escriturário no
Casino Estoril e no ramo das vendas e da publicidade, onde usufruiu de algum
sucesso criativo. Ainda chegaria a ingressar na Faculdade, em Direito e, algum
tempo depois, em Letras, mas deixaria por terra os seus intentos académicos.
Lançaria, porém, o seu primeiro livro em 1963, com pouco mais de vinte anos,
com a coletânea de poesia “A Liturgia do Sangue”, assim como a peça “Tempo da
Lenda das Amendoeiras” no ano seguinte. A poesia seria algo incentivado pela
sua família desde cedo mas Ary não gostava do que escrevia, tanto que se
chateou quando a sua família publicou “Asas” (1953) quando este tinha somente
14 anos. Seis anos depois, a sua vida conheceria um novo contributo ao seu
caráter irascível quando se juntou à Comissão Democrática Eleitoral e ao
Partido Comunista, com quem pôde usufruir de sessões de poesia que cativaram o
seu gosto pela escrita e declamação.
A poesia e, a
juntar a esta, a música seriam as vias pelas quais chegaria a um público cada
vez mais amplo, ajudando a renovar o panorama da música portuguesa. Em muito
contribuiu ter composto quatro canções bem-sucedidas para o Festival da Canção.
“Desfolhada Portuguesa” (1969, interpretada por Simone de Oliveira), “Menina do
Alto da Serra” (1971, na voz de Tonicha), “Tourada” (1973, cantada por Fernando
Tordo), e “Portugal no Coração” (1977, dada a conhecer pela banda Os Amigos,
que juntou nomes como Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e Ana Bola) foram os
quatro êxitos que compôs, com um tom ousado para então, que tocava em temas
sensíveis e até tabu então. A estes, juntou-se uma relação de colaboração com
Tordo que ascendeu a mais de 100 poemas para músicas. “Estrela da Tarde”,
“Lisboa Menina e Moça” ou “Cavalo à Solta” são algumas das canções que viriam a
advir dessa frutífera parceria, às quais se juntaram outras, como “Os Putos” ou
“Quando um Homem Quiser”, aqui com a voz de Paulo de Carvalho.
Músicas como “Fado do
Campo Grande”, “Um Homem na Cidade”, “Namorados de Lisboa” ou “Fado Varina”
dariam um contributo forte para a consolidação do fado como género musical e
fariam parte de uma compilação de outra voz bem conhecida, a do fadista Carlos
do Carmo, num álbum de seu nome “Um Homem na Cidade” (1977, toda ela com
composições de Ary dos Santos). A particularidade da sua composição passava por
um registo leve mas cuidado, atento àquilo que seria, para si, a voz de um povo
e o que este merecia. “Ary Por Si Próprio” (1970) e, já depois da queda do
Estado Novo, “Poesia Política (1974) e “Ary por Ary” (1979) exemplificam essa
voracidade. A sua criação fora da música também merecia alguma atenção por
parte da televisão, como a representação de “Azul Existe” no Teatro Tivoli a
ser transmitida na RTP. A notoriedade que conseguiu fez com que se movimentasse
muito dentro do país, recitando poesia e envolvendo-se em eventos
protagonizados com outros cantores de intervenção, como Zeca Afonso ou José Mário Branco.
Nesta fase, já
havia chegado o 25 de abril, que marcou o fim do regime ditatorial e o início
da democracia, que abriu portas à afirmação da esquerda, à qual Ary dos Santos
procurou emprestar a sua voz e, por vezes, a sua presença em manifestações e
até assaltos de forças mais radicais. Tinha sido visado pela Censura,
nomeadamente com a publicação de livros de poesia como “Adereços, Endereços”
(1965), “Insofrimento in Sofrimento” (1969) e “Fotos-grafias” (1971), revendo
os ganhos de abril com “As Portas que Abril Ganhou” (1975). Cada vez mais
se foi tornando numa figura incontornável da cultura portuguesa enquanto foi
redigindo mais centenas de poemas e gravando inúmeras declamações, tanto de
prosa como de poesia, com nomes consagrados da música nacional, como José Mário Branco ou
até António Victorino d’Almeida, e os intérpretes Amália Rodrigues (destaque
para “Cantigas de Amigos, álbum de 1971 que também contou com a participação da
autora Natália Correia) e Tony de
Matos. Um dos destaques a solo desta senda discográfica foi a leitura de “O
Sermão de Santo António aos Peixes”, do Padre António Vieira, uma das obras de
referência do barroco português. Antes da sua morte se fazer chegar, prepararia
uma antologia dos últimos quinze anos da sua carreira lírica com “As Palavras
das Cantigas” (lançado postumamente em 1984) e não chegaria a concluir a sua
autobiografia, mais romanceada que meramente fictícia, em “Estrada da Luz – Rua
da Saudade”.
Seria vítima dos seus
vícios, do tabaco e, especialmente, do álcool e de gim, tendo sido vítima de
uma cirrose no início do ano de 1984. Foi uma perda inconsolável para a cidade
de Lisboa e para Portugal, mas a capital do país sentiu-a como ninguém deste
seu filho, que, mesmo sendo um choque para a falange mais conservadora do país
– era homossexual -, granjeou um estatuto marcante para a cultura popular. Em
Alfama, foi dado o seu nome a um largo e foi homenageada a sua residência de
longa data, na Rua da Saudade – rua que iria dar nome ao seu retrato literário.
As homenagens por parte de ex-colegas seus tornaram-se incontáveis, sendo
vários os discos de homenagem ao seu trabalho e à sua pessoa, nomeadamente de
Fernando Tordo ou de Carlos do Carmo. O “poeta do povo” chegaria à honra de
grande-oficial da Ordem do Infante D. Henrique em 2004, no meio de todas essas
considerações.
Ary dos Santos
permanece, ainda hoje, como uma referência na composição musical em Portugal
nos meados do século XX. Influenciou a música popular, desde as típicas baladas
até ao fado, para além de se esforçar por aproximar a poesia do povo. O seu
envolvimento político e social é disso exemplo, socorrendo-se dos seus dotes
criativos para criar e entoar a poesia como música, com uma pujança que
ressoava na voz estridente de Ary. A sua memória, por mais que esquecido seja o
seu nome, permanece bem viva, ainda ao som dos atuais fadistas, mas também de
outros artistas lusófonos, admiradores da sua veia lírica. Uma veia que criou e
declamou com a força de poucos e com a virtude de ainda menos.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/a-veia-criadora-e-declamadora-de-ary-dos-santos/
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