A heteronímia pessoana
Os heterónimos são personalidades poéticas completas (tendo mesmo data de nascimento e de morte).
Esses outros
nomes são
pensados, fingidos e vividos como outros eu , diferindo (e de facto interagindo) até como que apagarem um
eu central
de onde irradiassem ou
que os produzisse. Anulando esse eu ou tão só manifestando a sua
impossibilidade, são «vistos diante » como outras tantas personalidades ,
outra gente ,
outras maneiras de escrever ,
outros «estilos ».
Daí que sejam, mesmo
que sumariamente biografados, que uns deponham sobre
outros , se comentem, critiquem,
distingam, identifiquem.
Mesmo que
eventualmente acompanhado
por uma ficção
biográfica, o pseudónimo é sempre ,
tendencialmente, a construção de um nome próprio ; em Pessoa , a heteronímia , diferentemente , se se quiser radicalmente ,
é a impossibilidade do nome próprio . Se, sobretudo em determinados
casos mais
trabalhados e ludicamente jogados, o pseudónimo é um
revelador do autor como
construção , efeito
do texto , numa operação
análoga à que
constrói o sujeito no discurso ,
o heterónimo, a heteronímia de Pessoa
é isso também ,
mas mais
e outra coisa
para além
disso.
Vários caminhos
convergentes, assinaláveis nas prosas
inéditas, nos levam a explicações possíveis
da heteronímia – como
se a pluralidade estivesse realmente no cerne
do "caso " literário
de Fernando Pessoa e a consciência
disso manejasse os fios do seu pensamento .
Eis algumas dessas explicações :
Pessoa explica o aparecimento
dos heterónimos dizendo que a origem destes reside na sua
histeria , provavelmente
histeroneurastenia[1],
logo numa "tendência
orgânica e constante
para a despersonalização e para
a simulação".
Vários fragmentos
das Páginas Íntimas atendem "à dispersão do eu ".
Não só
sente, mas vive os estados
de alma que
não tem directamente, supondo que o poeta , evitando sempre a poesia
dramática , externamente ,
avança ainda
um passo
na escala da despersonalização.
Certos estados
de alma , pensados e não
sentidos , sentidos
imaginativamente e por
isso vividos
tenderão a definir , para ele , uma pessoa fictícia que os
sentisse sinceramente .
Não se detém Pessoa
precisamente no limiar
do seu caso
excepcional de poeta múltiplo , autor
de autores ?
Exprimir
poeticamente significa fingir .
Pessoa
ter-se-ia dividido para se compensar .
Heteronímia seria um
modo de suprir
a carência , verificada na época ,
de personalidades superiores ,
e em especial
de grandes personalidades
na literatura portuguesa: "Com
uma tal falta
de literatura , como
há hoje , que
pode um homem
de génio fazer senão
converter-se ele só
em literatura ?".
Os
conceitos de pseudónimo e heterónimo
Pseudónimo é basicamente o nome falso
inventado por um
autor para esconder , por esta ou aquela razão ,
com esta ou
aquela função , a sua
identidade civil .
Objecto de um
jogo , de um
trabalho possível ,
de investimentos diversos ,
o pseudónimo tem na sua base uma operação
de ocultação ou de substituição
do nome próprio .
O heterónimo é um nome
diferente , outro
(irregular , anómalo). E no espaço de uma heteronímia plural , como a
de Pessoa – vários
heterónimos –, tem na base uma operação não de
máscara do nome
próprio que o
pseudónimo sempre supõe ou para o qual remete, mas
precisamente , uma operação
de repetida diferenciação , de
estranhamento, de construção de uma estranheza ou
outridade (qualidade outra ) que ao limite , como em Pessoa é uma espécie de (re)construída perda
do nome próprio .
O que exemplarmente
é designado pelo já
referido gesto de Pessoa
admitindo esse seu
nome enquanto
autor de poesia
como um
outro heterónimo, como
Jorge de Sena o viria também
a referir .
«Nunca
me sinto tão
portuguesmente eu como
quando me
sinto diferente de mim
– Alberto Caeiro, Ricardo Reis , Álvaro
de Campos , Fernando Pessoa ,
e quantos mais
haja havidos ou por
haver .»
Manuel Gusmão, «Prefácio » in A Poesia de Alberto Caeiro, Editorial
Comunicação
Explicações possíveis da
heteronímia
1ª) A constituição
psíquica de Pessoa ,
instável nos
sentimentos e falho
de vontade , teria gerado a multiplicação em
personalidades ou
personagens do drama em gente .
2ª) A qualidade
de poeta de tipo
superior levá-lo-ia à despersonalização. Com efeito , na concepção de Fernando Pessoa ,
segundo um
fragmento inédito ,
há quatro graus
de poesia lírica
e no cume da escala ,
onde ele
se coloca, o poeta torna-se dramático
por um
dom espantoso
de sair de si .
No segundo
grau , o poeta
ainda mais
intelectual , começa
a despersonalizar-se, a sentir , não
já porque
não sente, mas
porque pensa
que sente, a sentir
estados de alma
que realmente
não tem, simplesmente
porque os compreende. Estamos na antecâmara da poesia
dramática , na sua
essência íntima .
O temperamento do poeta ,
seja qual for, está dissolvido pela inteligência . A sua obra é
unificada só pelo
estilo , último
reduto da sua
unidade espiritual ,
da sua coexistência consigo
mesmo .
“O quarto
grau da poesia
lírica é aquele
muito mais
raro , em
que o poeta , mais intelectual
ainda , mas
igualmente imaginativo ,
entra em plena
despersonalização."
A
heteronímia seria o termo
último de um processo de despersonalização inerente
à própria criação
poética e mediante
o qual Pessoa
estabelece uma axiologia literária .
O poeta
será tanto maior
quanto mais
intelectual , mais
impessoal , mais
dramático , mais
fingidor – é o sentido pleno da "Autopsicografia".
O progresso
do poeta dentro
de si próprio ,
realiza-se pela autoria sobre a sinceridade ,
pela conquista
(lenta , difícil ),
da capacidade de fingir :
"A sinceridade é o grande obstáculo
que o artista
tem de vencer . Só
uma longa disciplina ,
uma aprendizagem de não sentir
senão literariamente as coisas , pode levar o espírito a esta culminância. "
3ª) A qualidade
de português levaria o poeta
a despersonalizar-se, a desdobrar-se em vários .
"O bom
português é várias pessoas
– reza um fragmento
inédito . Nunca
me sinto tão
portuguesmente eu como
quando me
sinto diferente de mim
– Alberto Caeiro, Ricardo Reis , Álvaro
de Campos , Fernando Pessoa
e quantos mais
haja havidos ou por
haver ".
Se um
indivíduo deve despersonalizar-se para seu progresso interior ,
uma Nação deve desnacionalizar-se – e
esta é em particular
a vocação portuguesa.
O ideal
que Pessoa
inculca a Portugal, é consequentemente o que
se propõe a si próprio :
"Ser tudo ,
de todas as maneiras , porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa " –
o pluralismo , o politeísmo .
4ª) A multiplicidade do escritor seria o produto
necessário de uma nova
fase de civilização
– fase que
Fernando Pessoa caracteriza ao explicar
o Orfeu e o sensacionismo dum ângulo
sociológico.
A decadência
da fé , quebra
de confiança na ciência ,
a complexidade de opiniões traduz-se pela ânsia
actual de "ser tudo
de todas as maneiras ".
A poesia
poderá entender-se também como resposta a
um estado
colectivo de crise , mas
em sentido
diferente , isto
é, como antídoto ,
como bálsamo
espiritual .
Caeiro, libertador
imaginário , um
remédio (provisório )
para a dor de
pensar de que
sofre Pessoa ortónimo, uma fuga .
Adaptado de Hipermedia Pessoano - Fernando Pessoa: o
poeta dos heterónimos, http://www.ufp.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=191%3Ahipermedia-pessoano-fernando-pessoa-o-poeta-dos-heteronimos&catid=21%3Auniversidade&Itemid=68
(consultado
em 2011-12-10).
[1] No seu Tratado de Psiquiatria Clínica ,
vol. I, o inglês W. Mayer Gross diz, na página 401: «Os hebefrénicos podem seguir
um caminho
por largos
tempos diagnosticados de
"neurasténicos" e "neuróticos"... Sentem-se atraídos por ideias pseudo-científicas e pseudo-filosóficas,
sentem-se capazes de grandes descobrimentos e invenções .»
Por sua
vez , afirma-se no Dicionário
Enciclopédico de Medicina
(p. 871) que «os enfermos (esquizofrénicos na forma
hebefrénica) entregam-se a excessos de romantismo , de filosofismo ou
de misticismo .»
Em síntese, podemos dizer que Fernando Pessoa apresenta duas explicações para a origem dos heterónimos que não se excluem, já que se podem complementar:
1) Num primeiro momento diz que são consequência da anormalidade histérico-neurasténica do seu psiquismo, que facilita despersonalização e a simulação.
2) Numa carta a Adolfo Casais Monteiro explica que surgem com os poemas de que são autores, não são ideados previamente à escrita dos poemas. |
A exegese em Pessoa:
o drama em gente
As biografias
imaginárias (mas de modo
algum arbitrárias), prolongam o acto criador dos poemas ,
com ele
se relacionam mas dele se destacam como leitura
desses poemas já
definitivamente fora do seu criador .
A crítica
apercebeu-se que não
pode haver uma leitura autónoma de cada uma dessas manifestações
heteronímicas.
Os heterónimos são a totalidade
fragmentada. Por isso ,
não têm leitura
individual , mas
também não
possuem dialéctica senão na luz dessa totalidade de que não são partes , mas plurais e
hierarquizadas maneiras de uma única e decisiva
fragmentação .
O carácter "dramático " da sua
poesia (aquilo
a que chamou "o drama em gente "), concentra a hipótese
de um drama
da personalidade psicológica
(os desdobramentos da personalidade ) e não sobre a natureza dramática
da própria poesia .
"A multiplicidade dos sujeitos poéticos – o poetodrama – é aqui a condição
de realização do lirismo
dramático – do poemodrama."
O sujeito
dramático (poético) aparece pois ao mesmo tempo como seu próprio interlocutor de uma infinidade
de destinatários num diálogo permanente
e múltiplo .
O poeta
ortónimo situa-se ao mesmo nível que os
restantes poetas – ele
é afinal um
heterónimo a que o autor
emprestou a sua identidade
privada . Como
aliás , diz Jorge de Sena ,
que numa carta
a Fernando Pessoa , escreve: "E você ,
quando escreveu em
seu próprio nome , não foi menos heterónimo do que
qualquer um
deles".
Hipermedia Pessoano - A Exegese de Pessoa: o "drama em
gente", http://www.ufp.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=190%3Ahipermedia-pessoano-exegese-em-pessoa&catid=21%3Auniversidade&Itemid=68
(consultado
em 2011-12-10, texto com supressões)
O caso clínico de Fernando Pessoa
A sua
poesia exprime sempre
os seus sentimentos
ou as suas
crenças , sejam no que
for. Fernando Pessoa não
sabe e não quer
mentir , embora
minta e se contradiga. Não é então ele
que fala
ou escreve, porque
realmente não
existe ele .
«Vivem em nós inúmeros,
Sepenso ou
sinto, ignoro
Quem é que
pensa ou
sente.
Sousomente o lugar
Onde se sente ou pensa .
Tenhomais almas
que uma
Hámais eus
que eu
mesmo .»
Se
Sou
Tenho
Há
(Ricardo Reis)
Na normal
evolução da doença
esquizofrénica[1]
vai-se acentuando a progressão da dissociação psíquica
até chegar à dissolução completa da personalidade , que é a demência- Fernando Pessoa , falecendo aos 47 anos
de idade , não
teve tempo de chegar
lá .
Sendo um
psicopata hebefrénico[2],
está implicitamente entendido que Fernando Pessoa não era o que se chama um louco .
Padecia dessa nosofobia [3]
porque , como
é próprio da hebefrenia, conservava a inteligência
e a lucidez do seu
estado a agravar-se progressivamente
e sabia o fim evolutivo
que fatalmente
o aguardava no avanço da idade .
No sofrimento atroz que lhe provocava à consciência
da desagregação do pensamento ,
provavelmente terá (ainda que temido) desejado a loucura ,
porque a perda
de lucidez do seu
estado lhe
seria uma libertação . No relâmpago
de uma crise , algures
chegou a exclamar : «Graças
a Deus que
estou doido !» Não
o estava, claro . Nenhum
doido (demente )
diz que o é, pois
que não
reconhece o seu estado .
Mas estava, isso
sim , no caminho
da demência e, nalguns momentos , muito
próximo dela.
Mário Saraiva (médico ),
O caso clínico
de Fernando Pessoa
Lisboa, Edições Referendo , 1990 – texto
com supressões
[1] Esquizofrenia : do grego
skhízein, «fender » + phrén, «mente ;
espírito » + -ia.
[2] Hebefrenia:
uma categoria de esquizofrenia
que começa ,
habitualmente , na adolescência
e é caracterizada por inércia , embotamento
da afectividade, autismo , bizarria de comportamento , delírios ,
dissociação intelectual
da coesão íntima
da personalidade .
[3] Nosofobia : horror
excessivo às doenças ;
medo mórbido
de adoecer . (Do gr. nósos, «doença »
+ phobe¸n, «ter horror
a» + -ia)
Significação dos heterónimos
Os
heterónimos são considerados a grande criação estética de Pessoa e,
ademais, conduzem a Pessoa a uma profunda reflexão sobre a relação entre
verdade e realidade e entre existência e identidade.
Os
heterónimos mais importantes são Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro
de Campos, embora também podemos citar o semi-heterónimo Bernaldo Soares,
autor do Livro do Desassossego. Entre pseudónimos, heterónimos e
semi-heterónimos contam-se 72 nomes.
David Mourão-Ferreira (in O Rosto e as Máscaras ), comentando o texto
citado de Pessoa , escreve: “Seja como for, nós
poderemos encará-los (os heterónimos) sob
uma outra perspectiva :
Alberto Caeiro, desejando-se um
simples homem
da natureza , inteiramente
desligado dos valores
da cultura , pretendeu, sobretudo ,
ser ;
Álvaro de Campos ,
sem se mostrar
tão radical
na recusa dos valores culturais — mas contestando-os, afinal ,
de modo muito
mais corrosivo
— esforçou-se principalmente por sentir , em lúcida histeria , de acordo
com os ritmos
do mundo moderno ;
e Ricardo Reis , por seu turno , não mais
desejou que viver
segundo o ensinamento
de todas as culturas , sinteticamente
recolhidas numa sabedoria que vem de longe
e que nem
por isso
deixa de ser pessoal .
(António Afonso Borregana, Fernando Pessoa e Heterónimos, Texto
Ed., 1995, p.18)
Verifique
os seus conhecimentos relativamente à criação heteronímica pessoana.
Complete os espaços do texto que se segue
com as seguintes palavras/expressões:
Despersonalizar-se
Heterónimos Autónomas Pensamento Apesar de Histeroneurastenia Fingimento poético Psiquiátrico Heteronímia Criadoras Personagens Adolfo Casais Monteiro Simular Emoções |
A génese da _________________ foi explicada pelo próprio Fernando Pessoa numa
carta a _________________. A sua "pequena
humanidade" foi o resultado de um problema _________________,
denominado de _________________. Associado a este, surge a
tendência excessiva de Pessoa em _________________, _________________, o que se relaciona com o _________________
_________________.
Com a criação dos _________________,
Pessoa quis criar nem mais nem menos do que _________________ dramáticas.
Caeiro, Reis e Campos são, então, personagens _________________, cujos sentimentos e cujo _________________
não são os de Pessoa. _________________ fictícias, são personagens _________________.
(in Das
Palavras aos Actos. Ensino Secundário. 12º Ano, Ana Maria Cardoso, Célia
Fonseca, Maria José Peixoto, Vítor Oliveira, Porto, Edições Asa, 2005, p. 102)
Sabe identificar as pessoas de Pessoa?
Identifique os
heterónimos pessoanos e o ortónimo nos excertos seguintes ,
a partir das características
dominantes .
Excerto A
Na estrada
de Sintra ao luar , na tristeza ,
ante os campos
e a noite ,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me naestrada futura ,
sumo-me na distância que alcanço,
E, numdesejo terrível ,
súbito , violento ,
inconcebível ,
Acelero...
Mas o meu
coração ficou no monte
de pedras , de que
me desviei ao vê-lo sem
vê-lo,
Àporta do casebre ,
Omeu coração
vazio ,
Omeu coração
insatisfeito,
Omeu coração
mais humano
do que eu ,
mais exacto que
a vida .
Naestrada de Sintra, perto da meia-noite , ao luar , ao volante ,
Naestrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação ,
Naestrada de Sintra, cada vez mais perto de
Sintra,
Naestrada de Sintra, cada vez menos perto de mim ...
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na
E, num
Acelero...
À
O
O
O
Na
Na
Na
Na
Sou fácil
de definir .
Vicomo um
danado .
Amei ascoisas sem
sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um
desejo que
não pudesse realizar ,
porque nunca
ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver .
Compreendique as coisas
são reais
e todas diferentes umas das outras;
Compreendiisto com
os olhos , nunca
com o pensamento .
Compreender isto
com o pensamento
seria achá-las todas iguais .
Vi
Amei as
Compreendi
Compreendi
Morre
Circunda-te de
E
E o
CARREIRO, José. Os heterónimos de Fernando Pessoa. Portugal, Folha de Poesia, 06-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/os-heteronimos-de-fernando-pessoa.html (1.ª edição: Lusofonia - Plataforma de Apoio ao Estudo da Língua Portuguesa no Mundo, 15-12-2011. Projeto concebido por José Carreiro, disponível em http://lusofonia.com.sapo.pt/literatura_portuguesa/FP_heteronimia.htm)
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