Discurso proferido na cidade da
Guarda, durante as comemorações do “Dia de Camões e das Comunidades
Portuguesas”, no dia 10 de junho de 1977 — o primeiro depois da “Revolução dos
Cravos”.
É para mim uma honra insigne o ter sido
oficialmente convidado pela comissão organizadora das comemorações de Camões em
1975, e do dedicar-se do Dia de Camões à recordação das comunidades portuguesas
ou de origem portuguesa dispersas pelo mundo, para aqui falar na minha dupla
qualidade de estudioso de Camões, e de residente no estrangeiro, que eu sou.
Com efeito, em 1978, cumprem-se trinta anos sobre a primeira vez que, de
público me ocupei de Camões, iniciando o que, sem vaidade me permito dizê-lo,
tem sido uma contínua campanha para dar a Portugal um Camões autêntico e
inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões
dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem
do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da Revolução de Abril de
1974, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem
moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria
consciência.
Esse meu Camões foi longamente o riso
dos eruditos e dos doutos, de qualquer cor ou feitio; foi a indignação do
nacionalismo fascista, dentro e fora das universidades, dentro e fora de
Portugal; foi a aflição inquieta do catolicismo estreito e tradicional, dentro
e fora de Portugal; e foi a desconfiança suspeitosa de muita gente de esquerda,
a quem eu oferecia um Camões que deveria ser o deles, quando eles preferiam
atacar ou desculpar o Camões dos outros. Foi e ainda é, e será.
Porque, sendo Camões o maior escritor da
nossa língua que é uma das seis grandes línguas do mundo e um dos maiores
poetas que esse mundo alguma vez produziu (ainda que esse mundo, na sua
maioria, mesmo no Ocidente, o não saiba), ele é uma pedra de toque para
portugueses, e porque tentar vê-lo como ele foi e não como as pessoas quiserem
ou querem que ele seja, é um escândalo. São essa pedra de toque e esse
escândalo o que, neste momento solene, a três anos de distância do 4o.
centenário da morte do maior português de todos os tempos, vos trago aqui,
certo e seguro de que ele mesmo assim o desejaria. E, antes de mais, peço que,
nas minhas palavras anteriores ou nas minhas palavras seguintes, ninguém veja
ataques ou referências pessoais que não há; tenhamos todos, tenham todos a
humildade de reconhecer que, quando se fala de Camões e de Portugal, não
podemos pensar em mais ninguém.
Quanto a ser um residente no
estrangeiro, vai para dezoito anos que o sou, o que, curiosamente, é mais ou
menos o tempo que o próprio Camões viveu fora de Portugal, desde que dele
partiu para as Índias [em 1553, até que regressou,] em 1570, tão pobre
como partira, mas com Os Lusíadas no bolso ou na bagagem, para
publicá-los. Eu nem estou a regressar, nem tenho Lusíadas nenhuns.
Mas não sou exactamente um emigrante no estrangeiro, ainda que neste viva, e
com os emigrantes me possa identificar – aqueles emigrantes que vi e tenho
visto de perto, primeiro no Brasil e depois nos Estados Unidos, e também pelo
mais largo mundo que tenho percorrido, e que, com a sua laboriosidade, a sua
dignidade, a sua humanidade convivente, são em toda a parte, míseros e
mesquinhos, ou ascendidos e triunfantes, muitas vezes, os embaixadores que
Portugal não envia, ou os representantes da cultura que Portugal não exporta.
Por dezassete anos, recordemos, Camões
foi apenas um deles, quando ninguém sabia ou podia ainda saber o génio que ele
era. Reatando: eu não sou exactamente um emigrante no estrangeiro, porque,
quando saí de Portugal, tinha vinte anos de escritor publicado, e desde então a
maior parte da minha obra, ou grande parte dela, foi escrita para Portugal ou
em Portugal publicada. Seja o que seja, continuo a ser o que era, quando me
exilei muito a tempo naqueles idos negros e tristes de 1959: um escritor
português que vive no estrangeiro e que mantém um permanente contacto com
Portugal, até por obrigação profissional: catedrático de Literatura Portuguesa,
que é um dos meus títulos e deveres, não tenho outro remédio senão estar a par
do que se publica. Por outro lado, a minha fidelidade a Portugal – e fidelidade é
uma das palavras-chave da minha pessoa e da minha obra, como liberdade é
outra – nunca me permitiu livrar-me de partilhar (acrescentadas da dor da
distância) as dores e as alegrias, os desalentos e as esperanças de
Portugal.
Permitam-me ainda um esclarecimento. Na
melhor das intenções, vária imprensa anunciou ou referiu que eu falaria aqui
como representante dos luso-americanos. Se alguém pensou que eu tal faria, mais
que num plano meramente simbólico de partilhar com eles o viver nos Estados
Unidos, enganou-se redondamente. Primeiro que tudo, eu não sou um
luso-americano: esta palavra significa não o português que
vive na América, mas ou o que adquiriu a cidadania americana, ou o que descende
de portugueses e já nasceu americano: luso-americanas são duas filhas minhas,
por naturalização, e um neto meu que o é nato, como brasileiro por
naturalização eu sou, e dois filhos meus o são natos, enquanto minha mulher e
outros cinco filhos mantiveram a nacionalidade portuguesa. E, em segundo lugar,
que é o primeiro de todos, eu não recebi dos luso-americanos nenhum mandato
eleitoral para falar em nome deles, embora esteja certo de que mo teriam dado,
se a eles o tivesse pedido, por saberem que os respeito e estimo, sem distinção
de credo ou cor (porque há luso-americanos de cor, idos de Cabo Verde para lá,
por exemplo). Democrata como sou, eu não falo em nome de ninguém, sem ter
recebido um expresso mandato para tal. Eu fui convidado por Lisboa e de Lisboa,
o que é uma honra, mas Lisboa não tem o direito de nomear representantes
de nada ou de ninguém.
Esse vício centralista da nossa tradição
administrativa – um dos vícios que Camões denunciou e castigou nos seus Lusíadas –
deve ser eliminado e banido dos costumes portugueses, sem perda da autoridade
central que deve manter unido um dos povos mais anárquicos do mundo e menos
realistas quando de política se trata. Porque os portugueses são de um
individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da
mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão
cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista,
quando se vêem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a
experiência da liberdade. Isto não sucedeu só agora, e não é senão repetição de
outros momentos da nossa história sempre repartida entre o anseio de uma
liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as
liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se
um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir
responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião.
Também dos limites da ordem social e dos
deveres do homem para consigo mesmo e a sociedade de que faz parte foi Camões
um mestre. Assim, aqui, no âmbito de celebrações que são camoneanas e do
Portugal disperso pelo mundo desde que o país existe e desde que, no
estrangeiro, comunidades portuguesas ou de lusa origem se formaram ou
mantiveram, eu não represento luso-americanos, e não falo em nome deles ou de
ninguém no largo mundo. Aceito falar, como eu mesmo, da importância e do
significado de Camões hoje, e da necessidade de ter presente ao espírito esta
ideia tão simples: um país não é só a terra com que se identifica e a gente que
vive nela e nasce nela, porque um país é isso mais a irradiação secular da
humanidade que exportou. E poucos países do mundo, ao longo dos tempos, terão
exportado, proporcionalmente, tanta gente como este.
Sejamos francos e brutais. Há neste
momento, milhões de portugueses dispersos pelo mundo em mais de um continente,
e não só na Europa de que são mão-de-obra. O país pensa neles, e deseja
recordar-se deles. Mas o país, pura e simplesmente, na situação económica que
herdou e em que se encontra e toda a gente sabe desastrosa, não pode prescindir
do dinheiro deles, ou do dinheiro que eles costumam enviar para a santa
terrinha, ao contrário do que faziam e fazem portugueses do território
nacional, que mandavam o seu dinheiro para o anonimato dos bancos da
Suíça.
Deste modo, celebrar as Comunidades
Portuguesas no dia do santo nacional que celebrou a expansão imperial do país
é, ao mesmo tempo, um belo ideal e um cálculo muito prático. Há quem diga e
quem pense que celebrações como esta – de Camões ou das comunidades – são uma
compensação para a perda ou derrocada do Império oferecida ao sentimento
popular, e que isso das comunidades é mesmo ainda pior: uma ideia do fascismo.
Antes de mais, neste país há que pôr um basta não só ao
fascismo ele mesmo, mas à mania de atribuir tudo ao fascismo, até as ideias.
Porque, por esse caminho, ficamos todos sem ideias de que precisamos muito, e
os fascistas ou os saudosistas deles acabam convencidos de que tinham ideias,
quando ter ideias e ser fascista é uma absoluta impossibilidade intelectual e
moral.
O celebrar-se no presente e no passado
em sua gente, o homenagear essa gente e recordá-la aonde quer que viva ou tenha
vivido é um imperativo imarcescível da dignidade humana, num dos aspectos que a
representa: o pertencer-se directa ou indirectamente a um povo, uma história,
uma cultura, que como no caso de Portugal, foi, é e será capaz de
diversificar-se em outras. Nenhum internacionalismo que se preze de ter os pés
na realidade e na matéria de que somos feitos, pode negar ou ignorar essas
realidades tremendas que são uma língua ou muitas, uma raça ou várias, uma
cultura por mais adaptável ou capaz de absorção que ela seja, que se
identificam com um nome secular – Portugal no nosso caso, aqui e agora.
Pensarão alguns, acreditando no que se
fez do pobre Camões durante séculos, que celebrá-lo, ou meditá-lo e lê-lo, é
prestar homenagem a um reaccionário horrível, um cantor de imperialismos
nefandos, a um espírito preso à estreiteza mais tradicionalista da religião
católica. Camões não tem culpa de ter vivido quando a Inquisição e a censura se
instituíam todas poderosas: se o condenamos por isso, condenamo-nos nós todos a
que, escrevendo ou não-escrevendo, e ainda vivos ou já mortos, resistimos
durante décadas a uma censura opressiva, e a uma repressão implacável e
insidiosa, escrevendo nas entrelinhas como ele escreveu.
Isto é, condenamos a vera ideia de “Resistência”
que, modernamente, fomos dos primeiros povos da Europa a tristemente conhecer e
corajosamente praticar. E sejam quais forem as nossas ideias e as nossas
situações políticas, nenhum de vós que me escutais ou não, pode viver sem uma
ideia que, genericamente, é inerente à própria condição humana: o resistir a
tudo o que pretende diminuir-nos ou confinar-nos. Camões não tem também culpa
de ter sido transformado em símbolo dos orgulhos nacionais, em diversos
momentos da nossa história em que esse orgulho se viu deprimido e abatido.
Claro que esse aproveitamento não teria sido possível se ele não tivesse
escrito Os Lusíadas. Mas o restituir a quem o podia ler e o podia
sentir mais fundamente um pouco de confiança em horas difíceis, é um acto de
caridade, essa virtude que não é só cristã porque é, desde antes do
cristianismo, a própria essência da civilização: a solidariedade humana quando
a dor nos fere. E o ter sido usado, manipulado e treslido como Camões o foi, ou
denegrido como também foi desde a publicação do seu poema, é um dos preços que
a grandeza paga neste mundo.
Camões e a sua obra têm pago esse preço
como todos os outros. Deixem-me todavia recordar-vos que o grande
aproveitacionismo de Camões para oportunismos de politicagem moderna não foi
iniciado pela reacção. Esta, na verdade, e desde sempre, mesmo quando brandindo
Camões, sentia que as mãos lhe ardiam. Aqueles oportunismos foram iniciados com
o liberalismo romântico e com o positivismo republicano. E se o Estado Novo
tentou apoderar-se de Camões, devemos reconhecer que ele era o herdeiro do
nacionalismo político e burguês, inventado e desenvolvido por aquele
liberalismo e aquele positivismo naquelas confusões ideológicas que os
caracterizavam e de que Camões não tem culpa: tê-la-iam por exemplo dois homens
que merecem o nosso respeito: Almeida Garrett e Teófilo Braga. E quanto à
reacção mais recente em face de Camões, eu lembro apenas dois pequenos exemplos
em que a censura o proibiu, se não estou em erro: o caso do jornal de Vila do
Conde, em que um tio de José Régio usava publicar os clássicos, citando-os
convenientemente, e o da revista Vértice, de Coimbra, que fazia o
mesmo.
E isto para não falarmos de crimes
literários e socio-morais de mais largo alcance, de que Camões era vítima nas
escolas, parecendo até que nós éramos as vítimas dele. Porque, para além de
encher-se a boca com a Fé e o Império, que nem uma nem outro eram para Camões o
que eram para o Dr. Salazar, o poeta não servia para mais nada senão para
exercícios de gramática estúpida: o que, tudo junto, chega para gerações lhe
terem ganho alguma raiva e perdido o gosto de o ler. E há mais e pior: quando,
no liceu, líamos Os Lusíadas, éramos proibidos de ler (e não
estudávamos) as passagens consideradas mais chocantes pela pudicícia hipócrita
desta nossa sociedade de sujeitos felizmente desavergonhados que fingem
lamentavelmente possuir a virtude que não têm, e vivem a perseguir ou reprimir
os pecados alheios.
Claro que nós todos íamos logo ler as
passagens “proibidas” e lendo-as assim, com olhos libidinosos, perdíamos a
grandeza delas: a majestade do sexo e do amor, a magnitude da liberdade e da
tolerância, a inocência magnífica do prazer físico e da paixão erótica, que,
acima de tudo, Camões cantava e celebrava nessas passagens com uma abertura de
espírito e uma audácia espantosas. Será possível que os frades o tenham feito
alterar algumas coisas antes de publicar Os Lusíadas. Mas, em face
de algumas daquelas que lá ficaram, temos de reconhecer que, mais do que
aquilo, só um poema francamente pornográfico, incompatível com a dignidade e o
decoro da grande epopeia que Camões desejou escrever e escreveu.
Tem-se dito que o grande protagonista da
epopeia é o povo português, e na verdade o povo aparece, segundo as tradições
clássicas, representado apenas pelos seus heróis, aqueles que
Camões seleccionou para o efeito, à excepção dos marinheiros anónimos que acompanhavam
Vasco da Gama ou os seus guerreiros anónimos sem os quais não haveria a
magnificente descrição da batalha de Aljubarrota ou análogos momentos. Aqueles
marinheiros, como o próprio Vasco, são deificados, ou transfigurados epicamente
na Ilha dos Amores, em condições sem dúvida moralmente impróprias de quem
deixara família em Portugal, mas altamente consentâneas, se me permitem a
rudeza, com a promiscuidade sexual notória do povo português, ao mesmo tempo
que de acordo com as convenções épicas e mitológicas pelas quais os heróis se
dignificavam no conhecimento (que aqui uso no sentido intelectualmente
neo-platónico e no sentido obscenamente público) das entidades divinas. Já se
disse que as personagens mais vivas e activas de Os Lusíadas são
os deuses pagãos, e não as criaturas históricas, mais pálidas e
incaracterísticas do que elas.
Até certo ponto, isto é verdade. E é-o
por algumas razões camonianamente importantes. Antes de mais, na filosofia que
Camões assume e torna extremamente pessoal, os deuses pagãos possuem, como
atributos do Deus supremo, invisível e silencioso, e como seus intermediários
agentes, uma realidade autêntica que a criação artística faria necessariamente
mais palpável e concreta. E é assim que nós vemos tão nitidamente Vénus, a
Afrodite originária e primeva, um dos deuses anteriores a tudo, e também a
deusa do amor que este sim, é todo poderoso – como a não veríamos? Ela é a
amante, a esposa, a mãe, tudo o que o princípio feminino significa dentro e
fora da nossa humanidade, naquelas complexidades psico-sexuais a que Camões se
compraz em aludir, servindo-se de alusões mitológicas que parecem meros
ornamentos ao longo da epopeia inteira. E como não veríamos Baco ou Diónisos,
receoso de ser castrado da sua lendária glória de conquistador da Índia? Se,
como descendentes de Luso, descendemos dele, e ele é o nosso pai receoso do
triunfo e da liberdade dos filhos? Como não veríamos Júpiter, se ele é de certa
maneira a providência divina, sempre disposta a sucumbir, mesmo incestuosamente,
às atracções do amor? Estes deuses, na dialéctica camoniana, sem a qual Camões
se não entende, são ao mesmo tempo as emanações do princípio divino que desce à
terra, e são a nossa humanidade ascendida e divinizada.
E é neste mesmo sentido que as referências
a Cristo devem ser entendidas nos contextos camoneanos: ele é, supremamente,
para Camões, o princípio divino que, como um fogo de vida, desce a encarnar-se
humanamente, mas é também o homem, o herói humano que, pelo seu sacrifício,
ascende ou regressa ao divino. E é este heroísmo do apostolado e do sacrifício
o que, em toda a sua epopeia, Camões propõe continuamente pela referência ou
pela narrativa. Até Inês de Castro, a grande matriarca do poema, ascende à
glória épica pelo seu sacrifício de amor. Porque para o amor, para todas as
formas de amor, Camões arranja sempre uma desculpa, um louvor, ou a suprema
divindade, porque esse amor é, para ele, a todos os níveis, a realidade última,
e a realidade sempre presente. Sem amor, não há heróis, nem há homens dignos
desse nome. E amor, mesmo numa epopeia que transborda de feitos bélicos e de
acções guerreiras, não existe sem uma infinita e total tolerância, um respeito
pelos outros povos, as outras raças, as outras culturas, as outras religiões,
ao ponto de, como já tenho chamado a atenção, o conceito de santidade ou a
palavra santo se aplicar a todos, sem distinção alguma,
cristãos, muçulmanos, brâmanes, etc., e até – não o esqueçamos – a uma ninfa
que se deixa possuir, por bem requestada, na Ilha dos Amores.
Este Camões de amor e tolerância
permeia Os Lusíadas. Mas já se disse que, além e acima de tudo e
todos, a principal personagem da epopeia é Camões ele-mesmo, não só como o
autor, não só como o narrador, não só como o crítico severo e implacável de
toda a corrupção e de toda a maldade, como o denunciador angustiado de uma
decadência moral e cívica que ele via e sentia à sua volta, e o qual
constantemente interrompe a narrativa para invectivar com o maior desassombro
(lembremo-nos de que as ordens daquele D. Sebastião a quem o poema é dedicado,
dirigidas aos seus imperiais governadores, chamando-os à virtude e à dignidade,
não tinham de tom diverso senão a diferença que vai de uma carta oficial a uma
poesia de génio). E há nisso de Camões ser central uma enorme e profunda
verdade que é o Camões-homem e o Camões-poeta. Não só ele se colocou, nos seus
cálculos arquitectónicos do poema, nessa posição, e assim se colocando, se
apresenta como a culminação da aventura portuguesa que ele conta, como o herói
que o é por ser quem transforma Portugal numa obra de arte, acima das
contingências históricas e da mesquinhês humanas.
O Camões que na epopeia espreita ou se
mostra a cada momento, roubando mesmo alguma realidade estética a tudo e todos,
nós conhecêmo-lo e entendêmo-lo de outro volante do políptico que é a sua obra:
o grande poeta lírico que é também um grande pensador, e que, na obra lírica
como na épica, se apresenta como resumo e epítome da humanidade mesma, e não só
do povo português. Ele é o homem em si, aquele ser que se busca
continuamente e ao amor que o projecta para dentro e para fora de si mesmo, e
é, como Luís de Camões, o predestinado para ser, ao mesmo tempo, o poeta-herói
supremo que realiza, isto é, torna real para a
eternidade da poesia, a história de Portugal, e a embarca nos navios de Vasco
da Gama para unir o Ocidente ao Oriente. Ao mesmo tempo, este
poeta-herói-épico, e o poeta-homem, exemplo de ser-se português, em exílios e
trabalhos, em sofrer incompreensões e injustiças , e – ao contrário do que
sucede ou sucedeu a alguns – regressar com as mãos vazias, apenas rico de
desilusões, de amarguras e do génio que havia posto numa das mais prodigiosas
construções jamais criadas, desde que o mundo é mundo. E essa construção ele
trazia, reunindo o Portugal disperso, para o que ele deixara a vida, como
disse, pelo mundo em pedaços repartida.
Ninguém como Camões nos representa a
todos, repito, e em particular os emigrantes, um dos quais ele foi por muitos
anos, ou os exilados, outro dos quais ele foi a vida inteira, mesmo na própria
pátria, sonhando sempre com um mundo melhor, menos para si mesmo que para todos
os outros. Ele, o homem universal por excelência, o português
estrangeirado e esquecido na distância, o emigrante e o exilado, é em Os
Lusíadas e na sua obra inteira, tão imensa e tão grande, a medida do
mais universal dos portugueses e do mais português dos homens do universo.
Ninguém, como ele desejou representar em si mesmo a humanidade, representar tão
exactamente o próprio Portugal, no que Portugal possui de mais fulgurante, de
mais nobre, de mais humano, de mais de tudo e todos, em todos os tempos e
lugares. Ele é, como ninguém, o homem que viajou, viu e aprendeu. O homem que
se sente moralmente no direito de verberar com tremenda intensidade, as
desgraças de viver-se e os erros ou vícios da sociedade portuguesa. É o exilado
físico de muitos anos mas é, como todos nós, e nisso tanto ou mais o somos que
outros povos, o exilado moral, clamando por justiça, por tolerância, por
dedicação à pátria, por espírito de sacrifício, por unidade nacional e
universal, lá onde via que o homem é, como ele disse mais que uma vez, o “bicho
da terra tão pequeno” contra o qual se encarniçam os poderes do mal.
Haverá ainda quem diga que esse homem
cantou a expansão imperial, apesar de tudo, as conquistas imperiais do Oriente,
e está portanto fora do nosso tempo e do nosso espaço históricos, e a sua
epopeia ofende a consciência das Ásias e das Áfricas. Mas ele cantou a expansão
portuguesa, na medida em que considerava que esta expansão era ou deveria ser a
civilização ocidental levada a toda a parte, no que tinha de moralmente digno e
de socialmente responsável. Ao escolher para assunto central da sua epopeia a
viagem de Vasco da Gama, ele sabia perfeitamente que escolhia um momento
decisivo da história universal; o encontro, para todo o sempre, para bem e para
mal, da Europa com a Ásia, passando-se pela África.
Momento decisivo dessa história do
mundo, como eminentes historiadores insuspeitos de simpatias portuguesas ou
imperialistas o têm proclamado e reconhecido. E, na verdade, esse encontro (e
esse Império que, no tempo de Camões, com todos os erros e crimes, não era os
impérios coloniais inventados pela Europa do século XIX, nem socio-moralmente
inferior à desordem política existente então, como hoje, em toda a parte)
simboliza aquilo mesmo que, mais tarde, nos nossos dias, veio a verificar-se.
Porque as ideias de independência política e de justiça social pelas quais
lutaram e ainda lutam os povos da Ásia e da África, e às quais se renderam os
povos das Américas ao separar-se da velha Europa, não são as tradições tribais
originárias por respeitáveis que sejam: são aquelas mesmas ideias que, geradas
na Europa, da Europa se difundiram, tal como as naus do Gama partiram de Lisboa
para uma das mais gloriosas viagens de todos os tempos. Isso Camões cantou: e
vendo-o no seu tempo, e na visão do mundo que ele teve, sabemos que devemos
relê-lo atentamente para saber, que ele, tão orgulhosamente português,
entenderia todas as independências, se fosse em vida nosso contemporâneo como
ele o é na obra que nos legou, para glória máxima de uma língua falada e
escrita ou recordada em todos os continentes.
O orgulho de ser-se alguma coisa, o
inabalável sentimento de independência e de liberdade, disso ele falou, e
sentiu como ninguém. É disso um mestre. Tudo existe na sua obra: o orgulho e a
indignação, a tristeza e a alegria prodigiosa, a amargura e o gosto de brincar,
e desejo de ser-se um puro espírito de tudo isento e a sensualidade mais
desbragada, uma fé inteiramente pessoal, pensada e meditada como ele a queria e
não como uma instituição, e a dúvida do predestinado que se sente todavia só e
abandonado a si mesmo.
Leiam-no e amem-no: na sua epopeia, nas
suas líricas, no seu teatro tão importante, nas suas cartas tão descaradamente
divertidas. E lendo-o e amando-o (poucos homens neste mundo tanto reclamaram
amor em todos os níveis, e compreensão em todas as profundidades) – todos vós
aprendereis a conhecer quem sois aqui e no largo mundo, agora e sempre, e com
os olhos postos na claridade deslumbrante da liberdade e da justiça. Ignorar ou
renegar Camões não é só renegar o Portugal a que pertencemos, tal como ele foi,
gostemos ou não da história dele. É renegarmos a nossa mesma humanidade na mais
alta e pura expressão que ela alguma vez assumiu. E esquecermos que Portugal
como Camões, é a vida pelo mundo em pedaços repartida.
Jorge de Sena, Paris, 3 de Junho de
1977
O 10 de Junho só regressou em 1977
A democracia só aceitou comemorar o 10 de junho
três meses depois da revolução. Não deixou de ser feriado mas, em 1975, o governo
apelou "à batalha da produção".
Em 10 de junho de 1974, apesar
da revolução que tinha acontecido três meses antes, e que execrava o espírito
do “Dia de Portugal”, houve feriado na mesma. O que não houve foram
comemorações oficiais – o feriado estava tão associado à ditadura que o novo
regime não quis oferecer pompa nem circunstância a um dia que servia ao regime
salazarista-marcelista para exaltar o império falhado.
Aconteceram coisas,
mesmo assim. Uma “manifestação popular de apoio ao Movimento das Forças
Armadas” levou a que dois dos heróis do 25 de abril, os generais António de
Spínola e Francisco Costa Gomes aparecessem num terraço do Palácio de Belém a
agradecer o apoio dos 15 mil manifestantes, segundo contas do Diário de Lisboa.
A manifestação –
“convocada por diversas forças democráticas” – tinha começado no Marquês de
Pombal, descido a avenida da Liberdade, passado pelos Restauradores e subido
até ao Largo Camões, homenageando o poeta com ramos de flores. Rumou a seguir a
Belém e o aparecimento dos dois generais na varanda do Palácio de Belém foi “a
grande apoteose”, escreve o Diário de Lisboa.
O 10 de junho de
1975 continuou a ser feriado, mas o governo liderado pelo general Vasco
Gonçalves apelou aos portugueses para irem trabalhar em nome da “batalha da
produção”, tal como a Intersindical. Carlos Carvalhas, que anos mais tarde será
secretário-geral do PCP e a 10 de junho de 1975 era secretário de Estado do
Trabalho, disse nesse dia em que muitas empresas, incluindo privadas, não
fizeram feriado: “Os trabalhadores que em todo o país abdicaram do seu feriado
são exemplos verdadeiramente revolucionários que esperamos ver frutificar”.
Para o então
secretário de Estado do Trabalho, “a posição que se assume perante a batalha da
produção é que distingue os verdadeiros dos falsos revolucionários”. Carlos
Carvalhas estava em visita à empresa Cometna, que produzia válvulas e estava em
regime de autogestão. Dias antes, a 27 de maio de 1975, tinha sido preso o
administrador, Alfredo Alves.
A delegação governamental
que visitou algumas empresas que recusaram o feriado incluía, além de Carlos
Carvalhas, o ministro do Trabalho major Costa Martins; o ministro da Indústria
João Cravinho, que será mais tarde ministro de governos PS e ainda o 1º tenente
Judas que nessa visita sentenciará: “A revolução não pode aceitar os que não
trabalham”.
Em 1976 não se
passou nada de relevante – o candidato a Presidente da República Ramalho Eanes
andava em campanha eleitoral entre Buarcos e Coimbra para as eleições que se
realizariam daí a duas semanas, a 27 de junho. Numa das intervenções, falou de
Camões. Pinheiro de Azevedo, outro dos candidatos presidenciais, andava pelo
Algarve em visita na qualidade de chefe do governo.
O 10 de junho tal
como hoje o conhecemos só foi criado em 1977, sob o nome “Dia de Portugal, de
Camões e das Comunidades Portuguesas”. Foi comemorado oficialmente na cidade da
Guarda, com as presenças do então Presidente da República Ramalho Eanes e do
primeiro-ministro Mário Soares. Jorge de Sena, o escritor radicado há muito
tempo nos Estados Unidos, fez um discurso extraordinário em defesa de Camões –
incluindo a justificação de que não se poderia chamar a Camões “fascista”.
“Pensarão alguns,
acreditando no que se fez do pobre Camões durante séculos, que celebrá-lo, ou
meditá-lo e lê-lo, é prestar homenagem a um reaccionário horrível, um cantor de
imperialismos nefandos, a um espírito preso à estreiteza mais tradicionalista
da religião católica. Camões não tem culpa de ter vivido quando a Inquisição e
a censura se instituíam todas poderosas: se o condenamos por isso,
condenamo-nos nós todos a que, escrevendo ou não-escrevendo, e ainda vivos ou
já mortos, resistimos durante décadas a uma censura opressiva, e a uma
repressão implacável e insidiosa, escrevendo nas entrelinhas como ele
escreveu”, disse Jorge de Sena.
Ana Sá Lopes, Sol, 2017-06-09
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
O ideal de homem virtuoso é, para Camões, o daquele que, como ele, for possuidor de «honesto estudo / Com longa experiência misturado». Camões é o herói humanista d' Os Lusíadas.
► Programa “Jorge de Sena”, da série “A Ideia e a Imagem”, Álvaro Manuel Machado, RTP1, 1978-06-15. Disponível em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/jorge-de-sena/
► “Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura
como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro
“Discurso de Jorge de Sena no 10 de junho de 1977 ” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 10-06-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/06/10-de-junho-de-1977-discurso-de-jorge.html
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