Gruta do Algar do Carvão, ilha Terceira, Açores. |
A FURNA
Debruço-me
comigo no meu poço
‑ Tudo a
fundo sonoro e emparedado ‑
E, rente
aos tampos, ouço, ouço
Meu coração
aproximado.
Mas de
ouvi-lo sou pálido e sem pulso:
Meu sangue foi
preciso para ouvidos
E bate os
mares e a terra, avulso
Nos
próprios glóbulos perdidos.
Quem deseje
saber o que se escuta
Nesta
parede intolerável,
Veja se
cabe em minha gruta:
Impenetrável!
Impenetrável!
Que frios
só seu chão calcaram
E sua
abóbada sou eu
Nas tardes
em que me levaram
Os meus
amores o que era meu.
E já seu
eco é uma humidade,
Leve
chorume do escuro
Que se
aprofunda na saudade
E em minha
carne se faz muro.
Só luz dos musgos me
distrai
Os olhos
das naves frias
Na furna
imensa em que se esvai
O fio de
água dos meus dias.
Tão
aflorada e tão profunda,
Tão bela no
pedraço e na leveza,
Tão forte
nas marés de que se inunda,
Aberta ao
mar e à lua acesa!
Seus
corredores complicam-me na sombra,
Um dedal de
silêncio abre uma pedra,
Rorejam
gotas para alfombra
Do vácuo de
alma que lá medra.
De líquenes
veste o sonho a aurora
Que
dificulta o poço poço;
A lágrima
enche de hora a hora
O copo ao
menino e moço.
Mas estrias
de lava, quem lhe entende,
Se ali
riscou fogo vermelho
Alto sinal
que só acende
Meu
coração, palheiro velho?
E
estalactites, estalagmites,
Correspondências
aguçadas,
Enxofre,
bafio, pirites,
Homens
fugidos, mulheres choradas.
Vai o
escuro furando o poço ardente,
Ouvem-se no
oco as águas:
Ah, que
barulho frio e imoto
Enruga a
minha vida quente,
O meu
secreto lençol de águas
Em que,
nenúfar, bebo e broto!
A furna
trava de mistério:
Sua
garganta aberta ao dia
Calou o
íntimo minério
Da minha
estreme poesia.
Cala-o para
que eu próprio vá batendo,
Dos
martelos comuns abandonado,
O possível
no opaco de atro urdume:
Que eu levo
fogo pegado
E ninguém
me chega lume.
Mas, se
ardido por mim, me devo só,
A
escravidão que tenho ei-la diuturna:
É estar aqui, de ouvido
impresso em pó,
A ouvir-me
velho ouvindo a furna.
Vitorino Nemésio, O
Bicho Harmonioso, 1938
TEXTOS DE APOIO
O BICHO HARMONIOSO:
RESSONÂNCIAS
(EFEITOS ACÚSTICOS EM
VITORINO NEMÉSIO)
Foi em 1961 ou 1962, andava eu pelos meus 19 ou 20
anos, que adquiri o volume Poesia (1935-1940), de Vitorino Nemésio,
acabado de publicar pela Morais Editora no seu Círculo de Poesia. Na altura não
prestei grande atenção ao primeiro dos livros nele incluído, La Voyelle
Promise. Mas os outros dois, O Bicho Harmonioso e Eu,
comovido a Oeste, passaram a contar-se entre as minhas leituras poéticas
favoritas e reiteradas, em especial o primeiro. As experiências poéticas de
tipo heideggeriano, a relação entre o verbo, o mundo, a morte e a escatologia,
a oscilação entre a ascese individual, a compreensão da realidade, a exaltação
religiosa e a pulsão erótica, conquanto dimensões essenciais do universo
nemesiano (a última delas, de resto, só tardiamente revelada em pleno),
acabavam por me interessar menos nessa altura e foi bastante mais tarde que
procurei conhecê-las melhor e reflectir sobre elas.
O Bicho Harmonioso lembrava-me
o título de uma suite de Händel, O Ferreiro Harmonioso, e mesmo
agora, no ensejo de recordar essa experiência, o termo que me ocorre para
caracterizar a arte poética de Nemésio, tal como a vivi nessa ocasião, é o de
“ressonância”[1]. Os processos de Nemésio faziam-me supor que eram exactamente
ressonâncias como que de entrada e permanência em vibração de um corpo sonoro
na escrita poética, e também encadeamentos de harmónicas e de outros efeitos do
som enquanto fenómeno ondulatório, que o poeta procurava, envolvendo nessa
acústica muito pessoal tanto a materialidade fónica e vibratória como a
dimensão semântica e metafórica, no trabalho e achamento das rimas, das
consonâncias e das dissonâncias, na combinação de sonoridades e sugestões, nas
dinâmicas rítmicas propostas, nas alternâncias e bruscas rupturas prosódicas,
nas imagens e alusões musicais, até nas hiper e hipometrias do verso e noutros
desequilíbrios tecnicamente conseguidos que lhe serviam para acentuar o que
pretendia dizer com alguma propensão expressionista.
Entre a densidade do canto e a sugestão de
instrumentos musicais, o coração da própria sonoridade vinha assim desde o
nervo das coisas a reverberar pelo mundo concreto fora e a combinar-se, como
uma linha melódica que vai sendo sucessivamente harmonizada ou sobreposta a
outras, com efeitos mais esperáveis, mas igualmente de uma grande beleza
eficaz, da combinação de mar, insularidade e memória, das ondulações da
distância, das vagas e dos navios, das interacções e dialécticas de saudade e
presença, ansiedade, carência e plenitude, solidão e partilha, das
contraposições entre tempo do divino interpelado e tempo efémero e vivido da
condição humana individual neste mundo. Mais tarde, vim a perceber melhor esses
processos tão característicos do poeta.
Este homem, pensei então, não quer saber da rigidez de
teorias ou receitas literárias e engendra e inflecte os seus próprios recursos
técnicos como lhe apetece em cada momento. A sua liberdade poética oscila
muitas vezes entre a utilização e a transgressão dos cânones, mas sempre ou
quase sempre, com uma cuidada modulação fónica e rítmica nas suas próprias
asperezas. Nos metros regulares ou nos versos livres e naquilo que em Nemésio é
mais marcadamente derivado do Simbolismo, há sempre uma preocupação de ligação
ao concreto, de tensão vigilante entre a percepção do real e a palavra que pode
exprimi-lo, de transfiguração do quotidiano em intemporal, de relação de
parentesco ou proximidade familiar a figurar-se repetidamente como pista para a
evocação angustiada de um mundo perdido onde a identidade pudesse
verdadeiramente fazer sentido; e se há um propósito de trocar chãmente em
miúdos as grandes palavras e tiradas enfáticas de alguma poesia do tempo, há
também um orfismo muito próprio na procura de uma auto-diluição, a partir do
“canto necessário”, “em som e no ar que o guardasse”. Daí uma percepção da
existência de contiguidades inúmeras entre as coisas materiais e imateriais ou
imponderáveis, entre a razão e os sentidos, entre expressão poética e emoção
vivida, o que explica a ocorrência das ressonâncias e “transvibrações” mais
variadas, tudo isso também como um fenómeno ondulatório a propagar-se e a
amplificar-se de poema para poema seja no que respeita à realidade dos
referentes físicos sólidos, líquidos e gasosos, seja na expressão de estados
anímicos, intelectuais e emotivos: “Musical, todo fogo, em mim me vou e
expando” (“O canário de oiro”).
Ficou-me ainda a impressão de uma poética cuja carga
simbólica se investia por sequências expansivas, como ondas concêntricas a
partir de um núcleo irradiante. Alguns casos são absolutamente evidentes, como
a metáfora do ovo ou da ilha no meio das águas. E também o “canário de oiro” se
tornava o animal simbólico e fabuloso a preencher o próprio ser do autor em
osso, carne e sangue e, como medida e desmedida fulgurante do canto, a passar
muito para além desses limites individuais. Dando-lhe um destaque especial,
Nemésio referia-se a ele no final do seu tão importante prefácio ao volume de
1961. Mas notemos ainda que o canário de oiro se recorta contra todo um
bestiário feito de alusões e metáforas zoológicas no mesmo poema: águia,
milhafre, “aves de parabólica plumagem”, pombas, cordeiras, lobos, “a cordeira
preta, a do velo maior”, “catorze cavalos, todos de músculo solar”...
O registo musical passa a aliar o canto da ave ao
emergir e pulsar dos afectos, do fogo verbal das harmonias, das misérias do
bicho da terra, das afinações e desafinações desferidas a partir do seu
“diapasão de ferro”, onde perpassam anjos, vindos de Rilke, mas aqui “de
matéria nenhuma e de toda a arrogância”. Essa música é uma arte do tempo que no
tempo se consome e resolve, ainda sob uma aura romântica de frustração da
expectativa de um almejado “alto destino de poeta” que vem desde o primeiro
poema, “O bicho harmonioso”, no seu buraco vil, onde a noite “faz muito bem em vergar
uma gruta sem ecos”. Essa gruta é todavia bem mais sonora do que se diz no
lugar inicial e acaba por ter ecos sucessivos e reverberantes: passa a concha
pacientemente segregada, ou a uma aura de percussão das lapas “de que tirava
depois, como de castanholas, / Um som qualquer para acordar e desentorpecer os
caminhos” (“Sonho vivo”), e reconduz-se ao imo do búzio cheio de vozes remotas
(“Búzio velho”) ou “búzio de sonhar, de boca estreita, / onde a maré da minha
infância se perdia” (“Os Cardos”).
É assim uma gruta que podemos considerar transformada
em poço para um Narciso que, diferentemente da figura da mitologia grega, não
se contenta com o seu reflexo numa superfície espelhante e prefere ver-se em
ressonâncias vindas a pulsar desde as profundezas do ser, como em “A furna”:
“Debruço-me comigo no meu poço / – Tudo a fundo sonoro e emparedado – / E,
rente aos tampos, ouço, ouço / Meu coração aproximado.” Afinal, na furna, outra
modalidade da noite, o eco “é uma humidade”, calando o minério “Da minha estreme
poesia. / Cala-o para que eu próprio vá batendo, / Dos martelos comuns
abandonado, / O possível no opaco de atro urdume”.
Depois esta percussão em ecografia continua na “Ode ao
mar”: “Lá, uma vaga dera / Uma pancada rara / (A vaga minha madrinha), / não
sei com que força ou vara: / sei que a pancada vinha / direita ao meu coração,
/ que ainda hoje a reproduz.” Acrescentemos que, em “Outro testamento”, o
efeito mais importante de ressonância é perfeitamente explicitado neste outro
verso que comporta um dos sentidos fundamentais da poética nemesiana: “Pois
quando me comovo até o osso é sonoro”.
Decorridos 50 anos sobre as minhas primeiras leituras
de O Bicho Harmonioso, essa continua a ser a primeira coisa que me
toca quando volto a pegar neste livro.
NOTA
1.
Recorro ao Dictionnaire des Mots de la Musique de Jacques
Siron (Paris, Outre Mesure, 2002) para recapitular uma definição útil: por
ressonância entende-se a entrada em vibração passiva de um corpo sonoro por um
excitador exterior periódico cuja frequência é igual a uma das frequências
próprias do corpo sonoro (= frequência de ressonância); após extinção da fonte
exterior, o corpo que ressoa continua a vibrar”. Em sentido menos estrito, pode
ainda falar-se de reverberação, prolongamento ou amplificação dos sons em todas
as frequências.
Vasco Graça Moura, “Vitorino Nemésio” in
Relâmpago n.º 28, abril de 2011
VITORINO NEMÉSIO - A POESIA COMO CEGUEIRA ILUMINADA
Em
"A Arte de Escrever (Composição; Sensibilidade; Atitude Crítica)"1,
Vitorino Nemésio, chamando a atenção para a dimensão primordialmente
linguística de toda a obra de arte literária, reflecte sobre o modo como se
caracteriza essa mesma linguagem e sobre a relação que se estabelece entre
autor e obra. Rejeitando o preconceito de ser o autor um puro inspirado
"exclusivamente um sensível, quer dizer uma pessoa dotada, em alto grau,
de permeabilidade aos fenómenos da emoção estética pura", reconhece que a
"sensibilidade é o grande factor de inspiração, mas sensibilidade racionável,
riça de fios que a inteligência vai urdindo, enliçando a seu modo,
compondo". Se as obras de juventude nemesianas se caracterizam por um
acentuado tardo-romantismo, este texto, publicado em 1928, demonstra uma
modernidade estética na apreensão da natureza especificamente linguística do
fenómeno literário e no ênfase colocado na composição poética como "a operação
capital do escrever". A atitude crítica, no poeta, apresenta-se como
"um jogo de faculdades de rejeição e de escolha" dos materiais
linguísticos e afectivos de que dispõe.
Alguns
anos mais tarde, em "Prefácio: da Poesia"2,
realça-se a autonomia do poema que se desprende do poeta, sujeito que está ,
quer no momento da produção quer na leitura, às "regras gerais do jogo
linguístico". Abandona-se, agora, a defesa do papel preponderante
anteriormente concedido à intervenção compositiva do poeta. O jogo literário já
não é jogado com a certeza do domínio das regras, é antes o jogo que impõe
essas regras ao jogador. Ainda que "uma certa forma de consciência
acompanhe o poeta enquanto agente do acto linguístico", a instância
autoral é descrita "quer como o campo pessoal onde ocorrem os encontros
dos signos da linguagem, quer como o medium de uma vocação que confere
sentido ao universo" e, assim, "o grau de consciência que nessas
funções lhe toca pode reduzir-se a uma mera ressonância do explícito".
Longe
já da confiança primeira de ser o poeta aquele que age sobre a linguagem, é
antes esta que nele fala. A poesia, enquanto forma simbólica, é uma forma de
conhecimento, pois ao revelar as relações que as coisas mantêm entre si
assume-se não como veículo de um conhecimento exterior a ela, que se limitaria
a traduzir, mas é a sua dimensão metafórica que funda o conhecimento em si, uma
vez que é a implicação o modo dialéctico da poesia responder à Esfinge. Daqui
decorre a falência hermenêutica do juízo e do conceito perante a criação
poética, reconhecendo Nemésio que a realidade alegórica criada pela poesia é
algo que "a razão não traduz absolutamente nos seus termos, mas que
verbalmente é dada com a plenitude da intuição", e, por isso, o autor
perante a sua obra experimenta uma determinada incompreensão crítica, uma vez
que "o que poeticamente realiza furta-se talvez à objectivação
analítica".
Mas
a reflexão metapoética, neste autor, não se esgota nos ensaios críticos. A
poesia de Vitorino Nemésio caracteriza-se frequentemente pela reflexão
metapoética, quando os poemas tematizam a natureza e o alcance do verbo poético
e as relações que se estabelecem entre este e o sujeito enunciador. Esta
vertente auto-reflexiva da poesia nemesiana é uma das linhas de força que
percorre esta obra poética, que Maria Rosa Goulart define, sinteticamente, do
seguinte modo: "Se a palavra poética nemesiana revela a nostalgia do Verbo
primordial e se orienta incessantemente na mira dessa palavra da era
pré-babélica, é porque ele está ciente de que o verbo humano, exilado do mundo
edénico, não é mais do que um pálido reflexo do Verbo total, unívoco e sagrado,
que se identifica com o próprio Deus"3. A visão
nemesiana da palavra como Verbo ou sua sombra, mero equívoco, filia-se no
pensamento de Heidegger, como demonstrou, por exemplo, Vasco Graça Moura4.
Esta procura da palavra primordial norteia sobretudo a poesia de Nemésio que
mais explicitamente encena uma mundividência religiosa e implica o conceito de
criação poética como devedora de uma fulguração reveladora, de que o poeta não
é responsável, num transe criador de contornos platónicos. Nesta poesia, então,
nas reflexões sobre a relação entre o sujeito enunciador e o enunciado, é
constante a supremacia do conceito de poesia como defluindo de uma revelação a
que se acede intuitivamente relativamente à de concepção de que o poema deriva
de uma composição crítica do discurso, o que equaciona a impossibilidade de o
sujeito se reconhecer como o autor da voz que fala no poema.
A
leitura de "A Minha Voz"5 é a esse
respeito elucidativa. A auto-escopia do sujeito poético implica a tentativa de
objectivar o que dentro em si reconhece como distinto de si mesmo - "Sai
um pouco de mim para eu te ver" - e a voz que fala já não é a sua:
"Quando te cito, canta,/ Longe, uma voz diversa (...)/ Outras vezes não te
cito: tu me citas". Aquele que pensa a escrita afasta-se do que a enuncia
e, assim, a "minha voz" é um "tu" que não coincide com o
eu, mas que com ele mantém uma reversibilidade criadora, pois o sujeito cria a
voz que o cria a si mesmo: "Vamos a ver se te crio,/ A ti que me encheste
de ser (...)/ Então do meu transe se adianta/ O teu vulto coberto do meu
vulto,/ E é sempre assim que o duplo canta". Este "duplo" é o
"nós" que emerge no final do texto ("Assim nos vimos, / Minha
voz:/ Bichos, limos, vozes, tristezas,/ E tudo isto dentro de nós.") e em
que o sujeito simultaneamente se reconhece e se estranha.
A
mesma tensão entre o sujeito e a voz que nele fala é legível em "O Canário
de Oiro"6, em que a voz poética começa por ser
"este canário de oiro que me espreita e debica", ou seja, outra coisa
relativamente ao sujeito que lhe serve de objecto e alimento, é por um momento
entendida como consubstancial ao sujeito -"A que o canário é o meu sangue
talvez"-, para depois ser reconhecida como irremediavelmente estranha:
"Mas então isto que é? Que violino engoli?/ Que frauta rude aveludou a
minha noite?/ Em que prato de cobre bateu o nó do açoite?/ Tão exacto, meu
Deus, só vibrado por ti.", o que anuncia, aliás, a temática religiosa
posteriormente recorrente de ser a palavra poética sopro do verbo divino.
No
poema "A Furna"7 o mesmo gesto introspectivo
inicial - "Debruço-me comigo no meu poço"- constitui-se como
reconhecimento da perda da unidade do sujeito ("Água, água, espelho liso/
Da cara que já perdi"8), que só é construído a partir do
que em si se desconhece - "O meu secreto lençol de águas/ Em que, nenúfar,
bebo e broto!" - e, consequentemente, como reflexão metapoética que aponta
para a dissociação entre o eu que se olha e o que nele mora e lhe fala: "E
rente aos tampos ouço, ouço/ Meu coração aproximado./ Mas de ouvi-lo sou pálido
e sem pulso/(...)/ Quem deseje saber o que se escuta/ Nesta parede intolerável/
Veja se cabe em minha gruta:/ Impenetrável! Impenetrável!". Este poço,
espaço íntimo e imperscrutável, pode ser ainda, noutros textos deste volume, um
búzio velho ("Búzio ridículo, malhado,/ Casa onde nunca entro/ Assim
torcido, conservado/ Com frio e barulho dentro:/ Se me falasses em voz alta/
Todos ouviam o que eu ouço/ Quando uma simples areia salta/ No bafo estreito do
teu poço (...) Esta canção do búzio desusado,/ Como a posso acabar dentro de
mim/ Se eu sou o bicho dele despegado?")9 , o
"navio humano, cheio pelos porões"10, a
"gruta" que é o "buraco vil de bicho harmonioso", a gaiola
de ossos de "O canário de ouro", ou seja, o que fala no sujeito é
muito frequentemente figurado como um espaço delimitado e complexo, por vezes
labirinto ("Seus corredores complicam-se na sombra"11)
sem centro perceptível, em que ou se expandem sons e a palavra acontece ou a
"gruta é "sem ecos"12 e o tempo de silêncio -
"A furna trava de mistério: Sua garganta aberta ao dia/ Calou o íntimo
minério/ Da minha estreme poesia"13 -, que a graça
divina poderá iluminar: "Meu poço, olho de cego/ Que aberto ao céu não vê/
(...) Cego, tão cego poço!/ Surdo, tão surdo eu!/ Quase que te não ouço./
Atento o céu se acendeu."14.
A
partir do momento em que a temática religiosa se torna fundamental em Vitorino
Nemésio, impera a consciência de que a palavra poética surge defluindo de uma
força exterior ao sujeito - "Só perdido de si alguém dá lume/ Como uma
concha ao sol que não é ela"15 -, excedendo-o, tornando
secundária a intervenção compositiva: "Se intervenho no som gratuito,
ofendo/ Seu sentido secreto e íntima cheia:/ Transtornado por ela, emendo,
emendo,/ E é ela que me absorve e senhoreia."16. É,
pois, despojado de si mesmo que, numa epifania, a poesia acontece, "Alheio
como eco em anel de poço/ Num segundo à palavra dês rochedo/ Face de reflexão
que escuda a Origem"17. O que se encerra neste poço já
não são "bichos, limos, vozes, tristezas"18, mas
antes a "Origem". Enquanto equívoco, contudo, a palavra é prisão
inexpugnável19, espaço de que não se pode sair.
Ao
longo da poesia nemesiana, o sujeito poético descobre a sua voz como estranha,
guiada por outra coisa que si mesmo: "O meu coração é um como um peixe
cego/ Só o calor das águas o orienta/ E por isso me arrasta aonde me nego/ De
puros impossíveis me sustenta."20. É precisamente esta
cegueira que permite aos "olhos do cego/ a luz do íntimo ver"21.
A poesia como visão íntima ou última remete para o conceito de poesia como
conhecimento guiado não pela razão, mas pela intuição das relações que entre as
coisas no mundo se escondem, ou seja, é a poesia a visão do que não se pode
ver, a não ser pela alusão metafórica.
Mas
esta revelação depende de uma atitude vigilante relativamente a este acontecer,
de uma atenção particular que o sujeito deve prestar à dádiva de sentido que
lhe é feita: "No lance do verbo jogo/ Mas, se vigio o meu dado,/ A boca
sabe-me a fogo/ Do sentido inesperado"22. É ao olhar o
jogo, que o sujeito não domina, que surge o fogo do sentido. Aquilo que domina
o sujeito é objecto da sua vigilância e essa contemplação é condição necessária
para a emergência da palavra na sua plenitude.
Ao
pensar-se a escrita poética no poema, o sujeito, não podendo identificar-se
coma sua voz, vê-se a não se rever e é esse gesto reflexivo que constitui o
conhecimento extremo que advém da sua poesia, o reconhecimento da
descoincidência entre a voz que fala, quem ouve essa voz e quem pensa a escuta
dessa voz. Este saber é a liberdade possível para quem é prisioneiro de ecos:
"A escravidão que tenho ei-la diuturna:/ É estar aqui, de ouvido impresso
em pó,/ a ouvir-me velho ouvindo a furna."23. O
auto-conhecimento poético só pode fundar-se na experiência desse estranhamento:
sobre a sua própria poesia "que luz da razão lha esclarece ao poeta que
não seja a da fonte do acto criador, unívoco?"24. Ou
seja, a luz possível é a da iluminação da sua cegueira: "Meu coração
sonhando é um poeta cego,/ Sê-lo acordado e vendo é que é poesia."25.
NOTAS
1 Vitorino
Nemésio - "A Arte de Escrever (Composição; Sensibilidade; Atitude
Crítica)", in Vitorino Nemésio. Estudo e Antologia. (org. de Maria
Margarida Maia Gouveia) Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1986.
2 Vitorino
Nemésio - "Prefácio: Da Poesia", in Obras Completas -vol. II
Poesia. Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, s/d.
3 Maria Rosa
Goulart - "Vitorino Nemésio: na Senda do Verbo Primordial", in
Vitorino Nemésio. Estudo e Antologia. p.568.
4 Cf. Vasco Graça
Moura - "Nemésio: o Lance do Verbo", in Várias Vozes. Lisboa,
Editorial Presença, 1987. esp. pp. 67-70.
5 Vitorino
Nemésio - "A Minha Voz", in Obras Completas -vol. I Poesia.
Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, s/d.pp.132-3.
6 Idem - "O
Canário de Oiro", in Obras Completas -vol. I Poesia. pp.136-9.
7 Idem - "A
Furna", in Obras Completas -vol. I Poesia. pp.182-4.
8 Idem -"O
Poço", in Obras Completas -vol. I Poesia. p.96.
9 Idem -
"Canção do Búzio Velho", in Obras Completas -vol. I Poesia.
pp.165-6.
10 Idem - "A
Vaga Verde", in Obras Completas -vol. I Poesia. p.167.
11 Idem -"A
Furna". p.183.
12Idem -"O
Bicho Harmonioso", in Obras Completas -vol. I Poesia. p.130.
13 Idem -"A
Furna". p.184.
14 Idem -"O
poço". p.96.
15 Idem -
"Pelo Sinal de Fogo", in Obras Completas -vol.II Poesia.p.262.
16 Idem
-"Verbo e Abismo", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.318.
17 Idem
-"Signo Velado", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.308.
18 Idem -"A
Minha Voz". p.133.
19 Cf. Idem -
"Prisão", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.315.
20 Idem - Eu,
Comovido a Oeste, nº24,in Obras Completas -vol.I Poesia.p.248.
21 Idem -
"Outra Lição", in Obras Completas -vol.I Poesia.p.100.
22 Idem
-"Fogo e Sentido", in Obras Completas -vol.II Poesia.p.301.
23 Idem -"A
Furna". p.184
24 Idem
-"Prefácio: Da Poesia". p.704.
25 Idem
-"Antão era Pastor - II", in Obras Completas -vol.II Poesia.
p.398.
Rita Patrício, “Vitorino Nemésio: a poesia como cegueira
iluminada”,
Ciberkiosk, n.º 2, 1998. Disponível em: http://www.ciberkiosk.pt/arquivo/ciberkiosk2/ensaio/nemesio1.htm
Acedido em 2002-02-05
Furna do Enxofre, ilha Graciosa, Açores. |
SUGESTÕES DE LEITURA
► Apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura de textos de Vitorino Nemésio
“Debruço-me comigo no meu poço, Vitorino Nemésio” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 13-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/debruco-me-comigo-no-meu-poco-vitorino.html
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