sábado, 13 de julho de 2019

Debruço-me comigo no meu poço, Vitorino Nemésio


Gruta do Algar do Carvão, ilha Terceira, Açores.

A FURNA

Debruço-me comigo no meu poço
‑ Tudo a fundo sonoro e emparedado ‑
E, rente aos tampos, ouço, ouço
Meu coração aproximado.

Mas de ouvi-lo sou pálido e sem pulso:
Meu sangue foi preciso para ouvidos
E bate os mares e a terra, avulso
Nos próprios glóbulos perdidos.

Quem deseje saber o que se escuta
Nesta parede intolerável,
Veja se cabe em minha gruta:
Impenetrável! Impenetrável!

Que frios só seu chão calcaram
E sua abóbada sou eu
Nas tardes em que me levaram
Os meus amores o que era meu.

E já seu eco é uma humidade,
Leve chorume do escuro
Que se aprofunda na saudade
E em minha carne se faz muro.

Só luz dos musgos me distrai
Os olhos das naves frias
Na furna imensa em que se esvai
O fio de água dos meus dias.

Tão aflorada e tão profunda,
Tão bela no pedraço e na leveza,
Tão forte nas marés de que se inunda,
Aberta ao mar e à lua acesa!

Seus corredores complicam-me na sombra,
Um dedal de silêncio abre uma pedra,
Rorejam gotas para alfombra
Do vácuo de alma que lá medra.

De líquenes veste o sonho a aurora
Que dificulta o poço poço;
A lágrima enche de hora a hora
O copo ao menino e moço.

Mas estrias de lava, quem lhe entende,
Se ali riscou fogo vermelho
Alto sinal que só acende
Meu coração, palheiro velho?

E estalactites, estalagmites,
Correspondências aguçadas,
Enxofre, bafio, pirites,
Homens fugidos, mulheres choradas.

Vai o escuro furando o poço ardente,
Ouvem-se no oco as águas:
Ah, que barulho frio e imoto
Enruga a minha vida quente,
O meu secreto lençol de águas
Em que, nenúfar, bebo e broto!
A furna trava de mistério:
Sua garganta aberta ao dia
Calou o íntimo minério
Da minha estreme poesia.

Cala-o para que eu próprio vá batendo,
Dos martelos comuns abandonado,
O possível no opaco de atro urdume:
Que eu levo fogo pegado
E ninguém me chega lume.

Mas, se ardido por mim, me devo só,
A escravidão que tenho ei-la diuturna:
É estar aqui, de ouvido impresso em pó,
A ouvir-me velho ouvindo a furna.

Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso, 1938


Gruta do Algar do Carvão, ilha Terceira, Açores.


TEXTOS DE APOIO


O BICHO HARMONIOSO: RESSONÂNCIAS 
(EFEITOS ACÚSTICOS EM VITORINO NEMÉSIO)

Foi em 1961 ou 1962, andava eu pelos meus 19 ou 20 anos, que adquiri o volume Poesia (1935-1940), de Vitorino Nemésio, acabado de publicar pela Morais Editora no seu Círculo de Poesia. Na altura não prestei grande atenção ao primeiro dos livros nele incluído, La Voyelle Promise. Mas os outros dois, O Bicho Harmonioso e Eu, comovido a Oeste, passaram a contar-se entre as minhas leituras poéticas favoritas e reiteradas, em especial o primeiro. As experiências poéticas de tipo heideggeriano, a relação entre o verbo, o mundo, a morte e a escatologia, a oscilação entre a ascese individual, a compreensão da realidade, a exaltação religiosa e a pulsão erótica, conquanto dimensões essenciais do universo nemesiano (a última delas, de resto, só tardiamente revelada em pleno), acabavam por me interessar menos nessa altura e foi bastante mais tarde que procurei conhecê-las melhor e reflectir sobre elas. 
O Bicho Harmonioso lembrava-me o título de uma suite de Händel, O Ferreiro Harmonioso, e mesmo agora, no ensejo de recordar essa experiência, o termo que me ocorre para caracterizar a arte poética de Nemésio, tal como a vivi nessa ocasião, é o de “ressonância”[1]. Os processos de Nemésio faziam-me supor que eram exactamente ressonâncias como que de entrada e permanência em vibração de um corpo sonoro na escrita poética, e também encadeamentos de harmónicas e de outros efeitos do som enquanto fenómeno ondulatório, que o poeta procurava, envolvendo nessa acústica muito pessoal tanto a materialidade fónica e vibratória como a dimensão semântica e metafórica, no trabalho e achamento das rimas, das consonâncias e das dissonâncias, na combinação de sonoridades e sugestões, nas dinâmicas rítmicas propostas, nas alternâncias e bruscas rupturas prosódicas, nas imagens e alusões musicais, até nas hiper e hipometrias do verso e noutros desequilíbrios tecnicamente conseguidos que lhe serviam para acentuar o que pretendia dizer com alguma propensão expressionista. 
Entre a densidade do canto e a sugestão de instrumentos musicais, o coração da própria sonoridade vinha assim desde o nervo das coisas a reverberar pelo mundo concreto fora e a combinar-se, como uma linha melódica que vai sendo sucessivamente harmonizada ou sobreposta a outras, com efeitos mais esperáveis, mas igualmente de uma grande beleza eficaz, da combinação de mar, insularidade e memória, das ondulações da distância, das vagas e dos navios, das interacções e dialécticas de saudade e presença, ansiedade, carência e plenitude, solidão e partilha, das contraposições entre tempo do divino interpelado e tempo efémero e vivido da condição humana individual neste mundo. Mais tarde, vim a perceber melhor esses processos tão característicos do poeta.
Este homem, pensei então, não quer saber da rigidez de teorias ou receitas literárias e engendra e inflecte os seus próprios recursos técnicos como lhe apetece em cada momento. A sua liberdade poética oscila muitas vezes entre a utilização e a transgressão dos cânones, mas sempre ou quase sempre, com uma cuidada modulação fónica e rítmica nas suas próprias asperezas. Nos metros regulares ou nos versos livres e naquilo que em Nemésio é mais marcadamente derivado do Simbolismo, há sempre uma preocupação de ligação ao concreto, de tensão vigilante entre a percepção do real e a palavra que pode exprimi-lo, de transfiguração do quotidiano em intemporal, de relação de parentesco ou proximidade familiar a figurar-se repetidamente como pista para a evocação angustiada de um mundo perdido onde a identidade pudesse verdadeiramente fazer sentido; e se há um propósito de trocar chãmente em miúdos as grandes palavras e tiradas enfáticas de alguma poesia do tempo, há também um orfismo muito próprio na procura de uma auto-diluição, a partir do “canto necessário”, “em som e no ar que o guardasse”. Daí uma percepção da existência de contiguidades inúmeras entre as coisas materiais e imateriais ou imponderáveis, entre a razão e os sentidos, entre expressão poética e emoção vivida, o que explica a ocorrência das ressonâncias e “transvibrações” mais variadas, tudo isso também como um fenómeno ondulatório a propagar-se e a amplificar-se de poema para poema seja no que respeita à realidade dos referentes físicos sólidos, líquidos e gasosos, seja na expressão de estados anímicos, intelectuais e emotivos: “Musical, todo fogo, em mim me vou e expando” (“O canário de oiro”).
Ficou-me ainda a impressão de uma poética cuja carga simbólica se investia por sequências expansivas, como ondas concêntricas a partir de um núcleo irradiante. Alguns casos são absolutamente evidentes, como a metáfora do ovo ou da ilha no meio das águas. E também o “canário de oiro” se tornava o animal simbólico e fabuloso a preencher o próprio ser do autor em osso, carne e sangue e, como medida e desmedida fulgurante do canto, a passar muito para além desses limites individuais. Dando-lhe um destaque especial, Nemésio referia-se a ele no final do seu tão importante prefácio ao volume de 1961. Mas notemos ainda que o canário de oiro se recorta contra todo um bestiário feito de alusões e metáforas zoológicas no mesmo poema: águia, milhafre, “aves de parabólica plumagem”, pombas, cordeiras, lobos, “a cordeira preta, a do velo maior”, “catorze cavalos, todos de músculo solar”... 
O registo musical passa a aliar o canto da ave ao emergir e pulsar dos afectos, do fogo verbal das harmonias, das misérias do bicho da terra, das afinações e desafinações desferidas a partir do seu “diapasão de ferro”, onde perpassam anjos, vindos de Rilke, mas aqui “de matéria nenhuma e de toda a arrogância”. Essa música é uma arte do tempo que no tempo se consome e resolve, ainda sob uma aura romântica de frustração da expectativa de um almejado “alto destino de poeta” que vem desde o primeiro poema, “O bicho harmonioso”, no seu buraco vil, onde a noite “faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos”. Essa gruta é todavia bem mais sonora do que se diz no lugar inicial e acaba por ter ecos sucessivos e reverberantes: passa a concha pacientemente segregada, ou a uma aura de percussão das lapas “de que tirava depois, como de castanholas, / Um som qualquer para acordar e desentorpecer os caminhos” (“Sonho vivo”), e reconduz-se ao imo do búzio cheio de vozes remotas (“Búzio velho”) ou “búzio de sonhar, de boca estreita, / onde a maré da minha infância se perdia” (“Os Cardos”). 
É assim uma gruta que podemos considerar transformada em poço para um Narciso que, diferentemente da figura da mitologia grega, não se contenta com o seu reflexo numa superfície espelhante e prefere ver-se em ressonâncias vindas a pulsar desde as profundezas do ser, como em “A furna”: “Debruço-me comigo no meu poço / – Tudo a fundo sonoro e emparedado – / E, rente aos tampos, ouço, ouço / Meu coração aproximado.” Afinal, na furna, outra modalidade da noite, o eco “é uma humidade”, calando o minério “Da minha estreme poesia. / Cala-o para que eu próprio vá batendo, / Dos martelos comuns abandonado, / O possível no opaco de atro urdume”.
Depois esta percussão em ecografia continua na “Ode ao mar”: “Lá, uma vaga dera / Uma pancada rara / (A vaga minha madrinha), / não sei com que força ou vara: / sei que a pancada vinha / direita ao meu coração, / que ainda hoje a reproduz.” Acrescentemos que, em “Outro testamento”, o efeito mais importante de ressonância é perfeitamente explicitado neste outro verso que comporta um dos sentidos fundamentais da poética nemesiana: “Pois quando me comovo até o osso é sonoro”.
Decorridos 50 anos sobre as minhas primeiras leituras de O Bicho Harmonioso, essa continua a ser a primeira coisa que me toca quando volto a pegar neste livro.
NOTA
1. Recorro ao Dictionnaire des Mots de la Musique de Jacques Siron (Paris, Outre Mesure, 2002) para recapitular uma definição útil: por ressonância entende-se a entrada em vibração passiva de um corpo sonoro por um excitador exterior periódico cuja frequência é igual a uma das frequências próprias do corpo sonoro (= frequência de ressonância); após extinção da fonte exterior, o corpo que ressoa continua a vibrar”. Em sentido menos estrito, pode ainda falar-se de reverberação, prolongamento ou amplificação dos sons em todas as frequências.
Vasco Graça Moura, “Vitorino Nemésio” in Relâmpago n.º 28, abril de 2011



VITORINO NEMÉSIO - A POESIA COMO CEGUEIRA ILUMINADA

Em "A Arte de Escrever (Composição; Sensibilidade; Atitude Crítica)"1, Vitorino Nemésio, chamando a atenção para a dimensão primordialmente linguística de toda a obra de arte literária, reflecte sobre o modo como se caracteriza essa mesma linguagem e sobre a relação que se estabelece entre autor e obra. Rejeitando o preconceito de ser o autor um puro inspirado "exclusivamente um sensível, quer dizer uma pessoa dotada, em alto grau, de permeabilidade aos fenómenos da emoção estética pura", reconhece que a "sensibilidade é o grande factor de inspiração, mas sensibilidade racionável, riça de fios que a inteligência vai urdindo, enliçando a seu modo, compondo". Se as obras de juventude nemesianas se caracterizam por um acentuado tardo-romantismo, este texto, publicado em 1928, demonstra uma modernidade estética na apreensão da natureza especificamente linguística do fenómeno literário e no ênfase colocado na composição poética como "a operação capital do escrever". A atitude crítica, no poeta, apresenta-se como "um jogo de faculdades de rejeição e de escolha" dos materiais linguísticos e afectivos de que dispõe.
Alguns anos mais tarde, em "Prefácio: da Poesia"2, realça-se a autonomia do poema que se desprende do poeta, sujeito que está , quer no momento da produção quer na leitura, às "regras gerais do jogo linguístico". Abandona-se, agora, a defesa do papel preponderante anteriormente concedido à intervenção compositiva do poeta. O jogo literário já não é jogado com a certeza do domínio das regras, é antes o jogo que impõe essas regras ao jogador. Ainda que "uma certa forma de consciência acompanhe o poeta enquanto agente do acto linguístico", a instância autoral é descrita "quer como o campo pessoal onde ocorrem os encontros dos signos da linguagem, quer como o medium de uma vocação que confere sentido ao universo" e, assim, "o grau de consciência que nessas funções lhe toca pode reduzir-se a uma mera ressonância do explícito".
Longe já da confiança primeira de ser o poeta aquele que age sobre a linguagem, é antes esta que nele fala. A poesia, enquanto forma simbólica, é uma forma de conhecimento, pois ao revelar as relações que as coisas mantêm entre si assume-se não como veículo de um conhecimento exterior a ela, que se limitaria a traduzir, mas é a sua dimensão metafórica que funda o conhecimento em si, uma vez que é a implicação o modo dialéctico da poesia responder à Esfinge. Daqui decorre a falência hermenêutica do juízo e do conceito perante a criação poética, reconhecendo Nemésio que a realidade alegórica criada pela poesia é algo que "a razão não traduz absolutamente nos seus termos, mas que verbalmente é dada com a plenitude da intuição", e, por isso, o autor perante a sua obra experimenta uma determinada incompreensão crítica, uma vez que "o que poeticamente realiza furta-se talvez à objectivação analítica".
Mas a reflexão metapoética, neste autor, não se esgota nos ensaios críticos. A poesia de Vitorino Nemésio caracteriza-se frequentemente pela reflexão metapoética, quando os poemas tematizam a natureza e o alcance do verbo poético e as relações que se estabelecem entre este e o sujeito enunciador. Esta vertente auto-reflexiva da poesia nemesiana é uma das linhas de força que percorre esta obra poética, que Maria Rosa Goulart define, sinteticamente, do seguinte modo: "Se a palavra poética nemesiana revela a nostalgia do Verbo primordial e se orienta incessantemente na mira dessa palavra da era pré-babélica, é porque ele está ciente de que o verbo humano, exilado do mundo edénico, não é mais do que um pálido reflexo do Verbo total, unívoco e sagrado, que se identifica com o próprio Deus"3. A visão nemesiana da palavra como Verbo ou sua sombra, mero equívoco, filia-se no pensamento de Heidegger, como demonstrou, por exemplo, Vasco Graça Moura4. Esta procura da palavra primordial norteia sobretudo a poesia de Nemésio que mais explicitamente encena uma mundividência religiosa e implica o conceito de criação poética como devedora de uma fulguração reveladora, de que o poeta não é responsável, num transe criador de contornos platónicos. Nesta poesia, então, nas reflexões sobre a relação entre o sujeito enunciador e o enunciado, é constante a supremacia do conceito de poesia como defluindo de uma revelação a que se acede intuitivamente relativamente à de concepção de que o poema deriva de uma composição crítica do discurso, o que equaciona a impossibilidade de o sujeito se reconhecer como o autor da voz que fala no poema.
A leitura de "A Minha Voz"5 é a esse respeito elucidativa. A auto-escopia do sujeito poético implica a tentativa de objectivar o que dentro em si reconhece como distinto de si mesmo - "Sai um pouco de mim para eu te ver" - e a voz que fala já não é a sua: "Quando te cito, canta,/ Longe, uma voz diversa (...)/ Outras vezes não te cito: tu me citas". Aquele que pensa a escrita afasta-se do que a enuncia e, assim, a "minha voz" é um "tu" que não coincide com o eu, mas que com ele mantém uma reversibilidade criadora, pois o sujeito cria a voz que o cria a si mesmo: "Vamos a ver se te crio,/ A ti que me encheste de ser (...)/ Então do meu transe se adianta/ O teu vulto coberto do meu vulto,/ E é sempre assim que o duplo canta". Este "duplo" é o "nós" que emerge no final do texto ("Assim nos vimos, / Minha voz:/ Bichos, limos, vozes, tristezas,/ E tudo isto dentro de nós.") e em que o sujeito simultaneamente se reconhece e se estranha.
A mesma tensão entre o sujeito e a voz que nele fala é legível em "O Canário de Oiro"6, em que a voz poética começa por ser "este canário de oiro que me espreita e debica", ou seja, outra coisa relativamente ao sujeito que lhe serve de objecto e alimento, é por um momento entendida como consubstancial ao sujeito -"A que o canário é o meu sangue talvez"-, para depois ser reconhecida como irremediavelmente estranha: "Mas então isto que é? Que violino engoli?/ Que frauta rude aveludou a minha noite?/ Em que prato de cobre bateu o nó do açoite?/ Tão exacto, meu Deus, só vibrado por ti.", o que anuncia, aliás, a temática religiosa posteriormente recorrente de ser a palavra poética sopro do verbo divino.
No poema "A Furna"7 o mesmo gesto introspectivo inicial - "Debruço-me comigo no meu poço"- constitui-se como reconhecimento da perda da unidade do sujeito ("Água, água, espelho liso/ Da cara que já perdi"8), que só é construído a partir do que em si se desconhece - "O meu secreto lençol de águas/ Em que, nenúfar, bebo e broto!" - e, consequentemente, como reflexão metapoética que aponta para a dissociação entre o eu que se olha e o que nele mora e lhe fala: "E rente aos tampos ouço, ouço/ Meu coração aproximado./ Mas de ouvi-lo sou pálido e sem pulso/(...)/ Quem deseje saber o que se escuta/ Nesta parede intolerável/ Veja se cabe em minha gruta:/ Impenetrável! Impenetrável!". Este poço, espaço íntimo e imperscrutável, pode ser ainda, noutros textos deste volume, um búzio velho ("Búzio ridículo, malhado,/ Casa onde nunca entro/ Assim torcido, conservado/ Com frio e barulho dentro:/ Se me falasses em voz alta/ Todos ouviam o que eu ouço/ Quando uma simples areia salta/ No bafo estreito do teu poço (...) Esta canção do búzio desusado,/ Como a posso acabar dentro de mim/ Se eu sou o bicho dele despegado?")9 , o "navio humano, cheio pelos porões"10, a "gruta" que é o "buraco vil de bicho harmonioso", a gaiola de ossos de "O canário de ouro", ou seja, o que fala no sujeito é muito frequentemente figurado como um espaço delimitado e complexo, por vezes labirinto ("Seus corredores complicam-se na sombra"11) sem centro perceptível, em que ou se expandem sons e a palavra acontece ou a "gruta é "sem ecos"12 e o tempo de silêncio - "A furna trava de mistério: Sua garganta aberta ao dia/ Calou o íntimo minério/ Da minha estreme poesia"13 -, que a graça divina poderá iluminar: "Meu poço, olho de cego/ Que aberto ao céu não vê/ (...) Cego, tão cego poço!/ Surdo, tão surdo eu!/ Quase que te não ouço./ Atento o céu se acendeu."14.
A partir do momento em que a temática religiosa se torna fundamental em Vitorino Nemésio, impera a consciência de que a palavra poética surge defluindo de uma força exterior ao sujeito - "Só perdido de si alguém dá lume/ Como uma concha ao sol que não é ela"15 -, excedendo-o, tornando secundária a intervenção compositiva: "Se intervenho no som gratuito, ofendo/ Seu sentido secreto e íntima cheia:/ Transtornado por ela, emendo, emendo,/ E é ela que me absorve e senhoreia."16. É, pois, despojado de si mesmo que, numa epifania, a poesia acontece, "Alheio como eco em anel de poço/ Num segundo à palavra dês rochedo/ Face de reflexão que escuda a Origem"17. O que se encerra neste poço já não são "bichos, limos, vozes, tristezas"18, mas antes a "Origem". Enquanto equívoco, contudo, a palavra é prisão inexpugnável19, espaço de que não se pode sair.
Ao longo da poesia nemesiana, o sujeito poético descobre a sua voz como estranha, guiada por outra coisa que si mesmo: "O meu coração é um como um peixe cego/ Só o calor das águas o orienta/ E por isso me arrasta aonde me nego/ De puros impossíveis me sustenta."20. É precisamente esta cegueira que permite aos "olhos do cego/ a luz do íntimo ver"21. A poesia como visão íntima ou última remete para o conceito de poesia como conhecimento guiado não pela razão, mas pela intuição das relações que entre as coisas no mundo se escondem, ou seja, é a poesia a visão do que não se pode ver, a não ser pela alusão metafórica.
Mas esta revelação depende de uma atitude vigilante relativamente a este acontecer, de uma atenção particular que o sujeito deve prestar à dádiva de sentido que lhe é feita: "No lance do verbo jogo/ Mas, se vigio o meu dado,/ A boca sabe-me a fogo/ Do sentido inesperado"22. É ao olhar o jogo, que o sujeito não domina, que surge o fogo do sentido. Aquilo que domina o sujeito é objecto da sua vigilância e essa contemplação é condição necessária para a emergência da palavra na sua plenitude.
Ao pensar-se a escrita poética no poema, o sujeito, não podendo identificar-se coma sua voz, vê-se a não se rever e é esse gesto reflexivo que constitui o conhecimento extremo que advém da sua poesia, o reconhecimento da descoincidência entre a voz que fala, quem ouve essa voz e quem pensa a escuta dessa voz. Este saber é a liberdade possível para quem é prisioneiro de ecos: "A escravidão que tenho ei-la diuturna:/ É estar aqui, de ouvido impresso em pó,/ a ouvir-me velho ouvindo a furna."23. O auto-conhecimento poético só pode fundar-se na experiência desse estranhamento: sobre a sua própria poesia "que luz da razão lha esclarece ao poeta que não seja a da fonte do acto criador, unívoco?"24. Ou seja, a luz possível é a da iluminação da sua cegueira: "Meu coração sonhando é um poeta cego,/ Sê-lo acordado e vendo é que é poesia."25.

NOTAS
1 Vitorino Nemésio - "A Arte de Escrever (Composição; Sensibilidade; Atitude Crítica)", in Vitorino Nemésio. Estudo e Antologia. (org. de Maria Margarida Maia Gouveia) Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1986.
2 Vitorino Nemésio - "Prefácio: Da Poesia", in Obras Completas -vol. II Poesia. Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, s/d.
3 Maria Rosa Goulart - "Vitorino Nemésio: na Senda do Verbo Primordial", in Vitorino Nemésio. Estudo e Antologia. p.568.
4 Cf. Vasco Graça Moura - "Nemésio: o Lance do Verbo", in Várias Vozes. Lisboa, Editorial Presença, 1987. esp. pp. 67-70.
5 Vitorino Nemésio - "A Minha Voz", in Obras Completas -vol. I Poesia. Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, s/d.pp.132-3.
6 Idem - "O Canário de Oiro", in Obras Completas -vol. I Poesia. pp.136-9.
7 Idem - "A Furna", in Obras Completas -vol. I Poesia. pp.182-4.
8 Idem -"O Poço", in Obras Completas -vol. I Poesia. p.96.
9 Idem - "Canção do Búzio Velho", in Obras Completas -vol. I Poesia. pp.165-6.
10 Idem - "A Vaga Verde", in Obras Completas -vol. I Poesia. p.167.
11 Idem -"A Furna". p.183.
12Idem -"O Bicho Harmonioso", in Obras Completas -vol. I Poesia. p.130.
13 Idem -"A Furna". p.184.
14 Idem -"O poço". p.96.
15 Idem - "Pelo Sinal de Fogo", in Obras Completas -vol.II Poesia.p.262.
16 Idem -"Verbo e Abismo", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.318.
17 Idem -"Signo Velado", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.308.
18 Idem -"A Minha Voz". p.133.
19 Cf. Idem - "Prisão", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.315.
20 Idem - Eu, Comovido a Oeste, nº24,in Obras Completas -vol.I Poesia.p.248.
21 Idem - "Outra Lição", in Obras Completas -vol.I Poesia.p.100.
22 Idem -"Fogo e Sentido", in Obras Completas -vol.II Poesia.p.301.
23 Idem -"A Furna". p.184
24 Idem -"Prefácio: Da Poesia". p.704.
25 Idem -"Antão era Pastor - II", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.398.

Rita Patrício, “Vitorino Nemésio: a poesia como cegueira iluminada”, Ciberkiosk, n.º 2, 1998. Disponível em: http://www.ciberkiosk.pt/arquivo/ciberkiosk2/ensaio/nemesio1.htm Acedido em 2002-02-05


Furna do Enxofre, ilha Graciosa, Açores.


SUGESTÕES DE LEITURA

    ► Apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura de textos de Vitorino Nemésio




Debruço-me comigo no meu poço, Vitorino Nemésio” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 13-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/debruco-me-comigo-no-meu-poco-vitorino.html


 

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