EN 15
Encosto à berma da estrada
nacional 15
para tirar a bexiga do aperto
em que se achava.
Faço pontaria a uma esteva
cativa de moita empoeirada,
na caruma um delta depois
uma enseada.
Miro de soslaio as aldeias
agarradas,
quais carraças,
ao dorso insone dos montes
e verto, sob um pinheiro, as
toxinas do passado.
Longos uivos à lua destinaria,
feito lobo,
em pleno traço contínuo,
ou nele faria tosco sapateado,
não me chegasse já o ruído
de outro carro fugitivo,
o clarão dos seus faróis que
recortam, no alcatrão,
o meu perfil acrescido.
Mais avisado será bater em
retirada:
às quatro da madrugada
só pode ser o futuro, esse
gatuno,
e assim a sacudo
mal sacudida
— assim te sacudo como quem
sacode a vida.
EN 213
Cada luz que vacila mas resiste
como um farol longínquo, no mar,
ou nos olhos de um moribundo,
ilumina o teu passeio nocturno.
Cada luz que o vento destapa
nas encostas dos montes,
ao agitar a trama dos bosques
indistintos,
ilumina a porta da tua casa
a chave na tua mão.
Não dormes sozinha, quero que o
saibas,
mas sempre acompanhada
na terra prometida que existe
cheia de aldeias e estradas
na minha cabeça deitada.
EN 212
De infracção mais grave não sei:
deixar que mãos ausentes me
conduzam
a sentidos proibidos
ou que os falsos deuses do amor
me desmandem
entre acidente e contingente.
Cumpra a brigada de trânsito a
sua missão:
cace-me a carta
onde se obstina a tua fotografia,
reboque-me a carcaça sinistrada
ou de castigo me leve a carripana
e me deixe apeado na valeta, pois
de infracção mais grave não sei:
conduzir fora de mão
conduzir contra o coração.
EN 2
Escavo as trevas à força de
faróis:
aponto à estrada florestal
esses dois minúsculos sóis
com que inauguro galerias
provisórias,
claustros, arcadas, naves arbóreas,
e de halos breves conjuro
cancelas,
muros velhos, veredas, levadas.
O seu clarão torna visível o
invisível,
traz as coisas para a existência:
marcos quilométricos, apeadeiros,
serrações assombradas,
pilares de pesadelo que suspendem
sobre os vales
absurdos viadutos aéreos.
Com faróis ilumino porque não
tenho luz própria:
cego viajo, como a traça,
às voltas, às voltas,
tão negro como a noite que lá
fora me cerca,
peixe dos abismos, toupeira,
cometa.
EN 206
Sou a floresta que se fecha sobre
a estrada,
à minha volta as montanhas
assobiam
— finco as raízes mas o vento me
desterra
quando sopra do teu lado
e erguendo-me nos ares faz-me em
pedaços
rodopiar com as folhas nas
valetas.
Tretas, dirás, pois ninguém se
entrega inteiro:
fica tudo a meio, e mesmo a
verdade
é sempre metade de algo a mais ou
a menos,
e só não mentimos sobre o que não
compreendemos.
Finco as raízes mas o vento me
desterra
porque vem do teu lado,
traz-me o corpo dividido, caído em
muitas partes;
nunca fiz questão, confesso, de o
ter todo:
tirava só o que precisava e do
resto
andava dorido.
Agora, de todas as partes
partido, o corpo
passa noites em claro à procura
de caminhos
de regresso a mim
e dói-me por vezes num sítio
qualquer
que deve ficar do teu lado,
um cabelo na boca ou o fantasma
de um braço amputado.
Quando chegar
não poderei reconhecê-lo.
EN 314
Ardidas há muito as velas de
ignição
que davam centelha ao meu antigo
e primeiro coração.
Agora sou apenas um ponto morto,
sem tracção: rolo sem atrito
mas também sem aflição.
A estrada adormece em bosques
propícios
a emboscadas, mas já não tenho
crenças
que mereçam ser cobiçadas.
E os meus sonhos, até os meus
sonhos
me parecem guiados lá do alto por
sinais de GPS.
CM 122
A pele dos estofos é ainda a tua,
e o calor do banco dianteiro.
Radiador vazio,
o meu coração sobreaqueceu.
Desço o vidro e ponho a cabeça de
fora
a ver se o vento ma limpa
ou ma leva.
O gelo reduz no asfalto.
O cigarro que lhe atiro:
há instantes apenas acendido
pela tua mão soberana,
provinciana, emigrante.
A pele dos estofos é ainda a tua,
e o calor do banco dianteiro
e a minha alma um cinzeiro
que não posso despejar.
Rui Lage, Estrada Nacional. Lisboa, INCM,
coleção Plural, 2016
CARREIRO, José. “Estrada
Nacional, Rui Lage”. Portugal, Folha de Poesia, 26-04-2021. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/04/estrada-nacional-rui-lage.html
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