Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem-comportado
Do lirismo funcionário público com livro
de ponto expediente protocolo e
[manifestações de apreço ao sr. diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai
averiguar no dicionário o cunho
[vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os
barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as
sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer
que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos
secretário do amante exemplar com
[cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de
[agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que
não é libertação.
BANDEIRA, Manuel, Melhores
poemas, 17.ª ed. – São Paulo: Global, 2015, p.64
Manuel Bandeira e a Metapoesia
Ao longo de sua carreira, Manuel
Bandeira escreveu vários poemas que podem ser considerados “poéticas”, ou seja,
eles tratam do “fazer poesia”, ora dizendo para quê a poesia serve, ora dizendo
como ela deve ser. Este trabalho apresenta um estudo sobre seis destes poemas,
procurando verificar as diferenças e semelhanças entre eles e, ainda, se o que
o poeta preconiza é o que ele faz nos próprios poemas. […]
“Poética” integra o quarto livro de
poemas de Manuel Bandeira, intitulado Libertinagem e publicado em 1930.
Podemos perceber que nele o autor expressa como deveria ou não deveria ser a
poesia, de acordo com a sua perspectiva, paralela aos preceitos modernistas.
Dentre os poemas de Bandeira que podem ser considerados uma ars poética,
talvez este seja o mais conhecido e aclamado. Quanto a isto, citamos o crítico
Ivan Junqueira, quando afirma que «‘Poética’ não é apenas um dos melhores
poemas do autor, mas também um dos mais importantes que escreveu, talvez o mais
significativo no que se refere ao discurso metalingüístico e à síntese de seus
procedimentos líricos» (2003, p.107).
Quanto ao poema estar de acordo com
os preceitos modernistas, vale ressaltar que isto é o que ocorre em todo o
livro em que se insere, já que os poemas de Libertinagem foram escritos entre
1924 e 1930, período de muita força do movimento. O próprio Bandeira admite, no
Itinerário de Pasárgada, que esses foram « os anos de maior força e calor do
movimento modernista. Não admira, pois, que seja entre os meus livros o que
está mais dentro da técnica e da estética do modernismo» (1984, p.91).
De acordo com “Poética”, a poesia
deve ser “livre”. Livre das formas preestabelecidas, das palavras empertigadas,
dos modelos tradicionais. Livre para falar de qualquer tema. Desta forma,
“Poética”, assim como “Os sapos”, soa como um grito de libertação. Grito que,
na verdade, perpassa todo o livro Libertinagem, desde seu título, pois
libertinagem aqui não tem o significado associado à “prática do libertino”, mas
sim, a uma “irreverência com relação a dogmas e crenças oficialmente aceitos”
(Dicionário Houaiss), uma vez que o próprio Bandeira, ao comentar o seu
livro anterior (O ritmo dissoluto), afirma que nele alcançou uma “completa
liberdade de movimentos” e complementa: “liberdade de que cheguei a abusar no
livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem” (1984, p.75). Ou,
como disse Ribeiro Couto, “libertinagem de temas, de matéria. Total liberdade”
(apud JUNQUEIRA, 2003, p.89). Ao comentar Libertinagem na sua História concisa
da literatura brasileira, Alfredo Bosi afirma que o livro apresenta “um
fortíssimo anseio de liberdade vital e estética” (2006, p.363).
Observamos que há um enunciado no
qual um sujeito estava em conjunção com um objeto de valor não desejável (o
lirismo comedido, bem-comportado, namorador, etc.) e em disjunção com o objeto
de valor desejável (o lirismo dos loucos, dos bêbados, etc.). Os valores não
desejados são aqueles que estão de acordo com a “poesia tradicional”. Ao dizer
que está farto de determinado tipo de lirismo, o sujeito rompe com o contrato
antes estabelecido com tal poesia e passa a querer estar sob o signo da “poesia
modernista”. Em termos passionais, temos, numa primeira fase, um sujeito da
liberalidade ou do desprendimento, uma vez que ele quer-não-estar em conjunção
com o objeto de valor (neste caso, o lirismo comedido), e um sujeito da
revolta, ou seja, um sujeito que se volta contra os valores de seu destinador
(a poesia “tradicional”). Em seguida, o que figura é um sujeito do desejo, ou
seja, aquele que quer-estar em conjunção com o objeto (ou seja, o “lirismo
livre”). Assim como em “Os sapos”, o sujeito, ao propor uma ruptura com os
valores preestabelecidos e acolher, logo sem seguida, novos valores, está
afirmando a descontinuidade. Tal ruptura vai ao encontro de um dos ideais no
movimento modernista que, nas palavras de Mário de Andrade, era uma estética
renovadora. Segundo ele, «o modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um
abandono de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma revolta contra o que
era a Inteligência nacional (...)» (2002, p.258).
Constatamos que o tema principal
deste texto é, obviamente, o “fazer poesia”, o que fica evidente desde o seu
título, dado que poética é “o estudo da criação poética em si mesma” (ARISTÓTELES
apud KOSHIYAMA, 1996, p.83). Ao longo do texto o narrador enumera
características disfóricas ou eufóricas para a poesia, representada aqui pelo
lexema lirismo, que aparece doze vezes. As características disfóricas
são introduzidas por expressões como estou farto, abaixo e de resto não é,
que “acentuam o caráter contestatório do poema” (BRANDÃO, 1987, p.22). O poema
pode ser dividido em blocos, sendo que em cada um deles determinadas figuras se
agrupam formando um percurso figurativo. Desta forma, o primeiro percurso
figurativo observado é aquele composto por comedido, bem-comportado,
funcionário público, livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de
apreço ao sr. diretor. Este é o percurso figurativo do “ajustado e rotineiro”
(Cf. BRANDÃO, 1992, p.124). Já as figuras dicionário, puristas, barbarismos
universais, sintaxes de exceção e ritmos inumeráveis compõem o percurso
figurativo do purismo de linguagem. No bloco que se inicia com o verso “Estou
farto do lirismo namorador”, os termos namorador, político, raquítico e
sifilítico formam o percurso figurativo do lirismo interesseiro. Por fim, o
último bloco com características disfóricas é aquele que contém as figuras
contabilidade, tabela de co-senos, secretário do amante exemplar, modelos de
cartas, que compõem o percurso figurativo da mecanização ou do excesso de
rigidez formal, no sentido da utilização de moldes preestabelecidos.
Observamos, ainda, que neste último bloco são expandidas tanto a série do
“lirismo rotineiro”, quanto a do “lirismo interesseiro”. O poema sugere que há,
na poesia disforizada, uma poderosa conexão com a tradição, o que não permite a
experimentação de novas formas artísticas.
Os quatro percursos figurativos
apontados estão, na verdade, interligados, remetendo a um único tema que é o da
opressão. Todas as figuras remetem, de alguma forma, a um tipo de
aprisionamento. O lirismo associado a tais figuras é um lirismo oprimido, preso
a comportamentos, formas, modelos, convenções, etc. De acordo com Brandão (1987,
p.23), este poema “recusa as manifestações líricas que se caracterizam seja
pela contenção, pela disciplina ou por estarem a serviço exclusivo de
interesses outros”. Por outro lado, na penúltima estrofe, as figuras loucos,
bêbedos e clowns de Shakespeare formam o percurso figurativo da liberdade –
corroborado pelo último verso: Não quero mais saber do lirismo que não é
libertação –, uma vez que estes papéis não estão presos às convenções sociais.
Basta lembrar que os bêbados e loucos usufruem de certa licença para fazer
qualquer coisa sem censura. Temos, pois, dois percursos figurativos em
oposição, dados que eles recobrem dois temas antagônicos: a opressão e a
liberdade do “fazer poético”.
Diante do que foi exposto até aqui,
percebemos que o poema euforiza um lirismo livre, uma poesia “livre das
amarras” e propõe uma ruptura (conforme comentamos quando da análise do nível
narrativo) com a poesia dita tradicional. A crítica de “Poética” se dirige mais
especificamente à poesia parnasiana e pós-parnasiana (cujos preceitos
principais eram o purismo, a supervalorização das formas, a perfeição) e à
poesia romântica, visto que «o lirismo namorador / raquítico / sifilítico
compõe um conjunto que tem sua referência na temática romântica. O poeta
questiona aqui alguns dos motivos mais utilizados por nossos românticos, o amor
inconseqüente, o patriotismo, o estado doentio» (BRANDÃO, 1987, p.24).
Com
relação ao plano da expressão, salta aos olhos que o poema é composto com uma
“liberdade de formas”, isto é, com divisão entre estrofes irregular, versos
livres, ritmo irregular, versos “muito longos”, etc.
Dayane Celestino de
Almeida, Revista Eutomia
Ano I – Nº 01 (215-247) 227. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/1984
Questionário
sobre “Poética”, de Manuel Bandeira
1.
Com
base na leitura do poema, podemos afirmar corretamente que o poeta:
A) Critica
o lirismo louco do movimento modernista.
B)
Critica todo e qualquer lirismo na literatura.
C) Propõe
o retorno ao lirismo do movimento clássico.
D) Propõe
o retorno do movimento romântico.
E) Propõe
a criação de um novo lirismo.
Resposta: Alínea E.
Ao nos atermos aos pressupostos ideológicos que
demarcaram a estética modernista, todas as proposições, exceto a letra “E”,
consideram-se como incoerentes, uma vez que um dos posicionamentos de Manuel
Bandeira era de extrair poesia das coisas mais banais da realidade, renegando
assim o sentimentalismo exacerbado dos românticos (por isso, ele não retoma ao
movimento), bem como repudiando quaisquer traços formais em termos de estética,
razão pela qual se pautava, sobretudo, pelo uso do verso livre (por isso, não
retomou ao movimento clássico).
Dessa forma, o porquê de a letra “E” ser considerada
correta deve-se ao fato de que a nova proposta não era a de abominar a poesia,
tanto é que, como expresso anteriormente, a temática por ele explorada se
originava das coisas corriqueiras da vida.
(ENEM. Disponível em: https://exercicios.brasilescola.uol.com.br/exercicios-literatura/exercicios-sobre-modernismo-no-brasil.htm)
2.
Assinale
a alternativa incorreta em relação à obra Melhores poemas, Manuel
Bandeira, e ao poema intitulado “Poética”.
A) No poema, o poeta faz uso do
verso livre e de uma pontuação não tão usual na língua culta, estas
características associam o poema a correntes de vanguarda.
B) Nos versos “Todas as palavras
sobretudo os barbarismos universais” (8) e “Todas as construções sobretudo as
sintaxes de exceção” (9) o poeta faz uso da função metalinguística, embora haja
no poema a predominância da função poética.
C) No poema, o autor ressalta
como temas a precariedade de sentimentos, a transitoriedade de afetos,
revelando um eu–lírico desiludido, destituído de sentimentos.
D) A leitura dos versos da quinta
estrofe, reforçados pelo uso de adjetivos, leva o leitor a inferir que o poeta
Manuel Bandeira, ironicamente, faz crítica aos aspetos abordados pelos poetas
românticos.
E) No poema, Manuel Bandeira faz
uso do verso livre, não utiliza as regras convencionais tanto na escrita quanto
na métrica – versificação – caracterizando o versilibrismo, deixando à mostra a
rutura com a poética e com a língua tradicionais, caracterizando um poema
pertencente à estética Moderna.
Resposta: alínea C.
3.
Analise
as proposições em relação à obra Melhores poemas, Manuel Bandeira, e ao poema
acima transcrito, e assinale (V) para verdadeira e (F) para falsa.
( ) A leitura da estrofe sete leva o leitor a
inferir que o poeta dá preferência ao lirismo mais autêntico, dos loucos, dos
bêbedos e dos clowns, não preso a valores sociais, em detrimento de um lirismo
tradicional.
( ) Nos versos “Quero antes o lirismo dos loucos”
(20) e “O lirismo difícil e pungente dos bêbedos” (22) se os vocábulos
destacados forem substituídos por pelos, não há prejuízo quanto ao sentido
original do texto e quanto à regência.
(
) Nos versos “Será contabilidade
tabela de cossenos secretário do amante exemplar com” (17) e “cem modelos de
cartas e as diferentes maneiras de” (18) os vocábulos assinalados, embora
possuam classificação gramatical diferente, não se flexionam para indicar o
gênero masculino ou feminino, sendo que a indicação de gênero ocorre por meio
de modificadores.
(
) O sinal gráfico ( [ ) nos
versos 4, 6, 18 e 19, usado para intercalar as estruturas poéticas – versos,
assume uma outra função, a de reforçar o descomprometimento com as regras
gramaticais, conferindo à nova forma de escrever também um novo valor poético e
literário.
(
) No verso “Quero antes o lirismo
dos loucos” (20) o verbo, quanto à transitividade, é bitransitivo, pois tem
como complementos verbais objeto direto – lirismo, e objeto indireto dos
loucos.
Assinale a alternativa correta,
de cima para baixo.
A) F – F
– F – V – F
B) V – V
– V – F – F
C) V – V
– F – V – F
D) V – F
– V – V – F
E) F – F
– V – F – F
Resposta: alínea D.
(Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC. Questões 38 e 39 do
vestibular 2018.1, de 26 de novembro, disponível em https://www.udesc.br/arquivos/udesc/id_cpmenu/5978/CADERNO_MANH__COM_GABARITO_15117379179292_5978.pdf;
gabarito disponível em https://arquivos.qconcursos.com/prova/arquivo_gabarito/58486/udesc-2017-udesc-vestibular-primeiro-semestre-manha-gabarito.pdf?_ga=2.69263824.1987684596.1702589541-1009661154.1702589541)
Proposta de escrita
criativa
Já estudamos a construção e o
objetivo de um manifesto. A proposta de produção será: vamos reescrever o
“Poema-manifesto” de Manuel Bandeira. Sabemos que o poeta, quando escreveu o
poema, estava farto das propostas que representam o pensamento estético
predominante na época. E, hoje, o que nos deixam fartos, quais situações de
nossa época estamos condenando. Considere a estrutura do poema, a nossa
realidade, faça as suas críticas e adaptações no poema.
Poética
ou ____________
Estou farto ____________
Do(da) ____________
Do (da) ____________
Estou ____________
Abaixo os(as) ____________
[...]
Quero ____________
O(a) ____________
O(a) ____________
O (a) ____________
- Não quero mais saber do(da) ____________
(Josely Cristiane Telles, Formação continuada – SEEDUC. Disponível
em https://canal.cecierj.edu.br/012016/47e2af0d48886eb3d1feff02a52356e8.pdf)
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