A Grécia teve Homero e Roma teve
Vergílio. Itália teve Dante. Na literatura portuguesa, há um autor que não fica
um milímetro abaixo destes três génios supremos da arte poética: Luís de
Camões. Na verdade, os três génios supremos da poesia são quatro: Homero,
Vergílio, Dante e Camões.
Sabemos que Dante nasceu em
Florença e que Vergílio veio ao mundo perto de Mântua. Até sabemos a data exata
em que Vergílio nasceu: 15 de Outubro de 70 a.C. Mas, na incerteza sobre o
lugar do seu nascimento, Camões é um pouco como Homero. Havia tradicionalmente
sete cidades gregas que reivindicavam a honra de terem sido o berço de Homero;
mas, na realidade, ninguém sabia onde e quando o grande poeta grego nascera. No
caso de Camões, não serão sete as cidades que reclamam (de forma realista...) a
sua naturalidade: na contenda estão apenas Coimbra (referida como local do seu
nascimento por Domingos Fernandes em 1607); e Lisboa (referida nas biografias
que vieram depois).
Nenhum dos primeiros biógrafos de
Camões sabia ao certo o ano e o dia em que o poeta nascera. Acabou por se
convencionar 1524 ou 1525 como os anos mais prováveis para o seu nascimento,
por causa de um alegado indício documental (referido por Manuel de Faria e
Sousa no século XVII) de que Camões teria 25 anos em 1550; mas não podemos ter
a certeza. Teorias astrológico-astronómicas como as de Mário Saa (1940) e, mais
recentemente, de Carlota Simões apontam a possibilidade fascinante de Camões
ter nascido a 23 de Janeiro de 1524. Mas, para essa teoria ter chão em que se
possa apoiar, é preciso aceitar como autêntico um soneto cuja autoria camoniana
já foi posta em dúvida: o magnífico poema «O dia em que eu nasci moura e
pereça» (por «moura» entenda-se «morra»), do qual podemos dizer que, se não foi
Camões que o escreveu, decerto não se importaria de o ter escrito.
Para a celebração dos 500 anos do
poeta, porém, não interessa tanto o rigor (impossível de estabelecer) da data
real do seu nascimento, mas sim a oportunidade que esta comemoração oferece aos
povos lusófonos de relerem o maior autor da sua língua. Porque, na realidade, a
melhor homenagem que podemos fazer a Camões é relermos a sua obra.
E no que consiste essa obra? À
semelhança de outros poetas portugueses no século XVI, Camões morreu sem que a
sua grande produção lírica (sonetos, canções, elegias, odes, éclogas,
redondilhas) tivesse sido publicada. Mas ele teve a sorte de ter conseguido
imprimir, em 1572, a sua obra-prima: «Os Lusíadas». Esta epopeia em 10 cantos
sobre a primeira viagem à Índia de Vasco da Gama representa um conseguimento
extraordinário. Embora muitos outros poetas, depois de Homero e Vergílio,
tenham tentado o género épico (tanto em grego e latim como nas línguas
vernáculas), o único que (na minha opinião) conseguiu compor um poema que está
no mesmo nível da «Ilíada», da «Odisseia» e da «Eneida» foi Camões.
A grande beleza de «Os Lusíadas»
está no manejo da língua portuguesa, veículo de expressão que Camões enriqueceu
com inúmeros latinismos - como demonstrou, há quase 100 anos, Carlos Eugénio
Corrêa da Silva. Antes dele, é claro, outros estudiosos já tinham posto em
relevo a matriz latina de «Os Lusíadas», sobretudo Manuel de Faria e Sousa (no
século XVII) e Augusto Epifânio da Silva Dias (no início do século XX). Uma das
consequências lamentáveis da insuficiente exposição dos portugueses atuais à
língua da Roma antiga é que ficam limitados na sua compreensão da brilhante
pirotecnia verbal de «Os Lusíadas».
Mas também não faltaram, sobretudo
na segunda metade do século XX, estudiosos de Camões que se situaram no
espectro oposto de Corrêa da Silva e dos seus antecessores. Estes opositores da
ideia de um Camões culto e erudito gostaram mais de ver no nosso Poeta um génio
destravado e ininstruído. O mais curioso é que esta oposição entre a leitura
humanística de Camões e a (digamos assim) «romântica» é reflexo da capacidade
da obra camoniana para provocar paixões: as quais propiciam, por sua vez,
olhares profundamente divergentes (porque subjetivos) sobre o poeta.
Eu diria que a obra de Camões é tão
proteica que acaba por funcionar como uma espécie de borrão de Rorschach, em
que cada pessoa vê aquilo que quer. O Estado Novo exaltou «Os Lusíadas» como
epopeia patriótica que justificava o Império português; mas outros leitores de
Camões (com destaque para António José Saraiva) conseguiram ver no poema marcas
de crítica ao imperialismo. A respeito da poesia lírica camoniana,
desenvolveram-se teorias atrás de teorias sobre as mulheres da vida de Camões.
Mas como os textos propriamente ditos não confirmam nem refutam a ideia de uma
mulher em especial que teria inspirado a poesia amorosa do poeta, cada leitor
vê o que quer ver.
Assim, o monárquico José Maria
Rodrigues, professor e amigo do rei D. Manuel II, escreveu um livro (dedicado à
memória do assassinado infante D. Luís Filipe) em que defendeu a teoria de que
a grande paixão de Camões fora por uma infanta.
No século anterior, o alemão Storck
insistira que a mulher era D. Catarina de Ataíde. No final do século XX, José
Hermano Saraiva irritou alguns professores universitários com um livro (a que
Américo da Costa Ramalho chamou «ignorante») em que defendia a ideia de que
Camões se apaixonou primeiro pela condessa de Linhares (D. Violante) e depois
por uma filha dessa condessa. Eu próprio escrevi um romance em que Camões teria
estado apaixonado por um filho da mesma D. Violante. Se alguma coisa disto
fosse verdade, teríamos na vida de Camões uma situação picantíssima, precursora
do filme «Teorema» de Pier Paolo Pasolini.
Mas não me parece que as tentativas
de vislumbrar o «Luís real» por trás da poesia de Camões valham a pena, nem que
possam alguma vez obter confirmação objetiva. Porquê? Porque a obra camoniana é
ao mesmo tempo velada e aberta. Acena com o artifício da confissão íntima, para
nos tirar sempre o chão debaixo dos pés, mercê das suas muitas contradições,
ambiguidades e vaguezas. Para mim, esta qualidade misteriosa constitui o maior
atrativo da lírica camoniana, do mesmo modo que me deslumbra a qualidade
polifónica e pictórica de «Os Lusíadas» (e não vou esconder que adoro os
latinismos...).
Camões, 500 anos. Neste centenário
de Camões, é minha intenção partilhar convosco, de várias maneiras, os
pensamentos e as interrogações que a obra camoniana me suscita. Até breve!
“Rumo ao 5.º centenário de Camões | Camões: 500
anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 24-03-2024
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