(Camões e o jau António, pelo pintor belga Ernest Slingeneyer) |
Uma das
razões pelas quais a vida de Camões continua a ser um objeto de permanente
fascínio é o facto de sobre ela sabermos quase nada. Além da realidade material
do livro «Os Lusíadas» publicado em 1572, são poucas as provas documentais que
atestam acontecimentos na vida de Camões (note-se que, na sequência do Concílio
de Trento, a obrigatoriedade dos registos de batismo só entrou em vigor no
reinado do cardeal D. Henrique). O que temos então de concreto? Há o documento
do perdão concedido por D. João III (7 de março de 1553), depois de Camões ter
sido preso por causa da briga em que se envolveu perto do Rossio (em Lisboa),
documento esse que também refere a partida iminente de Luís para a Índia. E há
vários documentos relacionados com a pensão («tença») que lhe foi concedida por
D. Sebastião.
Estes
documentos (conservados na Torre do Tombo) registam os nomes dos pais de Camões
(Simão e Ana). O documento de D. João III descreve o pai de Camões como
«cavaleiro fidalgo»; Camões é descrito como «mancebo». Especialmente
significativo é um dos documentos (1582) que confirma o pagamento da tença à
mãe de Camões, porque regista a data em que o poeta morreu: 10 de junho de
1580.
Além
destas informações muito parcas, tudo o que sabemos sobre a vida de Camões
baseia-se: (1) numa breve passagem sobre Camões na obra historiográfica do seu
amigo Diogo do Couto; (2) numa breve anotação de Domingos Fernandes (1607), que
dá o lugar do seu nascimento como sendo Coimbra; (3) em quatro biografias
escritas no século XVII, mais de três décadas após a morte de Camões.
Os
autores dessas biografias foram Pedro de Mariz (1613), Manuel Severim de Faria
(1624) e Manuel de Faria e Sousa (1639); e temos ainda uma segunda biografia
(póstuma) do mesmo Faria e Sousa (1685), diferente da primeira.
Assim, ao
tentarmos reconstituir a vida de Camões, vemo-nos logo confrontados com
informações contraditórias. Vejamos estes exemplos.
Quanto ao
ano em que Camões nasceu, o primeiro biógrafo (Mariz) nada nos diz (nem regista
o ano em que Camões morreu). Informa apenas que o poeta era filho de Simão Vaz
de Camões, «natural desta cidade». Qual cidade? O livro em que figura a
biografia de Mariz foi publicado em Lisboa (mas Mariz era de Coimbra). Severim
de Faria regista que Camões nasceu em 1517, em Lisboa («e não em Coimbra, como
alguns cuidaram»). Faria e Sousa (1639) regista também 1517 como o ano do
nascimento do poeta, não se comprometendo com o local de nascimento (em vez
disso, faz uma comparação entre Camões e o rio Nilo: de um e de outro,
desconhece-se o lugar do nascimento).
Mas, na
sua segunda biografia de Camões (1685), Faria e Sousa decidiu-se por Lisboa
como o lugar em que o poeta nasceu; e afirma que viu um documento de 1550 onde
se fazia menção de «Luís de Camões, filho de Simão Vaz e Ana de Sá, moradores
de Lisboa na Mouraria; escudeiro de 25 anos, barbiruivo». Conclui que Camões
nasceu em 1524.
Ora Faria
e Sousa (fidalgo e erudito de Felgueiras, que viveu em Espanha e em Roma) foi
um comentador brilhante de Camões, mas é tudo menos fidedigno. Na mesma página
em que alvitra 1524 como ano do nascimento do poeta, propõe que Camões veio
estudar na Universidade de Coimbra em 1534. Temos logo dois problemas: o
caloiro Luís teria então dez anos de idade; além disso, em 1534, a Universidade
estava sediada em Lisboa (viria para Coimbra em 1537).
Quanto ao
documento que Faria e Sousa afirma ter visto, não inspira muita confiança. Nos
seus comentários à obra de Camões, Faria e Sousa está sempre a propor
alterações ao texto camoniano com base em manuscritos que ele diz ter visto
(sem explicitar onde nem quando; nem que manuscritos seriam). Teve também o
péssimo hábito de atribuir a Camões poemas de outros autores; e de lhes alterar
os textos a seu bel-prazer. A verdade é esta: apesar de ter sido um comentador
genial de Camões (sobretudo por causa da sua espantosa erudição nas letras
latinas), Faria e Sousa não é de fiar quando se trata de factos concretos. Esse
documento que ele alega ter visto é uma «prova» de facticidade muito duvidosa.
Assim, o
dado mais concreto que temos sobre a vida de Camões é a carta de perdão de D.
João III (1553), da qual extraímos um elemento curioso sobre a personalidade de
Camões: o nosso Poeta fervia em pouca água e era um brigão. Por desconcertante
coincidência, este facto verídico (a rixa depois da qual Camões foi preso) não
é referido em nenhuma das primeiras quatro biografias de Camões.
O outro
facto verídico (a pensão ou tença concedida por D. Sebastião) é referido de
forma contraditória. Pedro Mariz (1613) dá a entender que a tença de 15.000
reis seria uma pensão de miséria. Mas Faria e Sousa (1685) exprime a opinião de
que era uma excelente pensão. Uma coisa em que todos os biógrafos concordam é a
pobreza em que Camões viveu toda a sua vida, devido à sua incapacidade de
segurar e gerir o dinheiro. Quanto mais tinha, mais gastava. Nisto, Camões
faz-nos pensar em Mozart (que ganhou tanto dinheiro, mas que viveu e morreu
esmagado por dívidas).
Destas
quatro biografias seiscentistas de Camões ressalta o enorme contraste entre a
alegada nobreza da sua linhagem (o poeta é referido como aparentado com os
maiores fidalgos de Portugal) e a pobreza na qual sempre viveu. Os biógrafos
também salientam as invejas e perseguições de que foi vítima, assim como a
ingratidão que Portugal lhe demonstrou enquanto era vivo. Pedro Mariz acertou
em cheio quando criticou a «natural propriedade Portuguesa de estimarem mais as
coisas de estrangeiros que as suas». Já éramos assim em 1613...
Foi Pedro
Mariz (1613) a registar pela primeira vez a figura do escravo que Camões trouxe
da Índia para Lisboa: se o Poeta «não tivera um jau, chamado António, que da
Índia trouxe, que de noite pedia esmola para o ajudar a sustentar», não teria
sobrevivido. Por «jau» deve entender-se «javanês» (Faria e Sousa [1685]
explicita que era «um escravo, cujo nome era António, natural de Java»).
Neste
quinto centenário de Camões, penso com muito carinho neste António, javanês,
que tratou de Luís quando ele estava prostrado pela miséria e pela doença.
Embora Camões tenha morrido sem um tostão num hospício de pobres, ainda bem que
houve um António («Jau») no fim da sua vida.
“Camões e Jau | Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 31-03-2024
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