«Olympia», Édouard Manet |
Apesar
das suas muitas afinidades com os dois maiores poetas da Roma antiga, Camões
foi mais longe do que Vergílio e Horácio. Mais longe na poesia e mais longe na
vida. Vergílio nunca escreveu poesia lírica; Horácio nunca escreveu poesia
épica: mas Camões triunfou nos dois géneros. Na vida, Vergílio e Horácio
viajaram de Itália para a Grécia e voltaram depois a Itália. Mas Camões foi o
primeiro génio da literatura ocidental a passar a linha do Equador: foi o
primeiro a conhecer o hemisfério sul. Viu gentes e paisagens novas; sentiu
climas diferentes; e experimentou costumes com que nenhum Grego ou Romano
alguma vez sonhara. Além disso, Camões foi o primeiro autor europeu a escrever
um poema de amor dedicado a uma mulher não-europeia.
Mas vamos
por partes. Ao contrário de «Os Lusíadas» (1572), a poesia lírica de Camões só
foi publicada quinze anos depois da morte do poeta (Camões morreu, como
sabemos, a 10 de junho de 1580). Quem comprasse a primeira edição das «Rimas»
camonianas em 1595 (o livro tem o título helenizante «Rhythmas») teria
encontrado, quase no fim do livro, um poema surpreendente.
A
explicitação de que o poema se encontra quase no fim do livro (no fólio 159; os
poemas acabam no fólio 166) é relevante. Porque todo o livro, nos seus géneros
poéticos canónicos (sonetos, canções, etc.), enaltece uma figura feminina de
classe aristocrática, elogiada pela sua brancura de neve e pelos seus cabelos
louros. No fólio 159, porém, deparamos com uma figura feminina bem diferente.
«Pretos
os cabelos, / onde o povo vão / perde opinião / que os louros são belos». O
poeta que escreve estes versos tem consciência de que está a impugnar o
estereótipo dos cabelos louros.
«Pretidão
de amor, / tão doce a figura, / que a neve jura / que trocara a cor». Com estes
versos, contraria-se o lugar-comum da pele branca. A mulher por quem o autor
destes versos se declara apaixonado é negra.
O poema
que estou a citar tem, na primeira edição de 1595, a epígrafe «Endechas a uma
cativa com que andava de amores na Índia, chamada Bárbara». (Por «endechas»
entenda-se uma estrofe de quatro versos.) O próprio poema salienta o estatuto
de pessoa escravizada logo nos versos iniciais: «Aquela cativa, / que me tem
cativo...» Foi o próprio Camões que escreveu «Transforma-se o amador na coisa
amada». Neste poema, mercê do seu amor por uma escrava, ele incorpora a
identidade da amada como pessoa escravizada e define-se a si mesmo como
escravo.
Mas em
Camões, nada é tão simples como parece à primeira vista. E quanto mais nos
debruçamos sobre a análise da sua poesia, mais nos damos conta de que há
camadas quase infinitas de sentido; e que descodificar Camões não é possível se
não nos lembrarmos de que Luís era leitor obcecado de Vergílio, Horácio e
Petrarca. Quanto aos dois romanos, têm o hábito curioso de serem o gato
escondido com o rabo de fora - mesmo em poemas que, à partida, pensaríamos
estarem muito longe das poéticas vergiliana e horaciana.
No poema
dedicado à escrava Bárbara, o elegante poeta toscano Francesco Petrarca está
bem presente: como afirmei, o poema assume-se como refutação do cânone de
beleza feminina que Petrarca glorificou na figura de Laura, mulher branca e
loura.
Vergílio
e Horácio estão presentes de modo mais subtil. Qual é a tipologia de beleza que
é superior? A beleza da pessoa branca ou a da pessoa negra? Vergílio colocou
essa pergunta em dois passos das suas Bucólicas; e dá, em ambos, a mesma
resposta: a beleza da pessoa negra está no mesmo plano de atractividade da
beleza da pessoa branca.
Em
Vergílio, o pastor apaixonado Córidon recorda os tempos em que teve um namorado
negro, chamado Menalcas; e faz questão de explicitar que não vê diferença entre
negro («niger») e branco («candidus»: Bucólica 2.16). No último poema da
colectânea das Bucólicas, o aristocrata Cornélio Galo exprime o seu interesse
amoroso num jovem negro chamado Amintas e comenta que «também negras são as
violetas» (Bucólica 10.39).
Quanto a
Horácio, escreveu uma ode célebre (2.4) em que diz a um amigo «Que o amor de
uma escrava não te envergonhe». Toda a ode procura valorizar a mulher
escravizada e apoiar o amor que um tal Xântias sente por ela. (Na minha edição
de Horácio, chamei a esta ode «Aquela cativa que te tem cativo».)
Mas esta
ode de Horácio apresenta uma diferença fundamental em relação ao poema de
Camões. Pois o elogio que Horácio faz da escrava amada por Xântias assenta no
facto de ela ser... branca e loura.
Camões,
como sempre, partilha com Vergílio uma sensibilidade especial. E o seu poema
dedicado a Bárbara segue a defesa vergiliana da beleza negra.
Ora, esta
declaração de amor por uma mulher negra mexeu com as ideias feitas e com os
preconceitos dos estudiosos de Camões. O trabalho mais volumoso alguma vez
dedicado a este poema é o livro de Xavier da Cunha: um livro com mais de 800
páginas, publicado em Lisboa, em 1893. Embora o título do livro seja «Pretidão
de Amor», qual não é o nosso espanto quando nos apercebemos de que a intenção
do autor é tentar provar que Bárbara não era negra!
Confundindo
a imitação do estereótipo de Petrarca (da mulher branca e loura) nos outros
poemas líricos de Camões com o gosto pessoal do homem verídico Luís de Camões,
Xavier da Cunha perguntou: «E seria lícito então admitir que um admirador do
loiro, como Camões se prezava de confessar-se a cada passo, viesse pôr em
relevo o horroroso topete de uma horrorosíssima etíope?» (p. 152).
Na p.
156, Xavier da Cunha escreveu: «aquilo que em linguagem de povos civilizados se
entende por amor não creio e não crê ninguém que seja sentimento atribuível a
indivíduos que nascem, vivem, e se conservam numa situação de selvagens boçais;
e nessas circunstâncias de animalidade está invariavelmente o preto de África.»
Era assim
que, para nossa vergonha, se escrevia sobre Camões, em 1893, num livro
publicado pela Imprensa Nacional.
Voltemos
às palavras do próprio poeta, para nos desintoxicarmos:
«Pretidão
de amor, / tão doce a figura, / que a neve lhe jura / que trocara a cor. / Leda
mansidão / que o siso acompanha; / bem parece estranha, / mas bárbara não.»
“Luís e Bárbara
| Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 14-04-2024
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