AO ACASO DA ESTANTE
Abro um livro
de poesia, gasto pelos anos,
e de dentro dele saem dois bilhetes de cinema
e uma fotografia. Já não me lembro que filme
foi esse que vimos, numa tarde de outono; mas
o teu rosto, de súbito, ganha uma realidade que
o tempo gastou, tanto como esse livro de poesia,
que nunca cheguei a ler. No entanto, se esses
poemas não me ficaram na memória, o teu nome,
os teus olhos, as tuas mãos que escorregavam
pelo amor de uma tarde de cinema, ainda
hoje permanecem comigo. Onde estás? Que
fazes? Que voltas deste na tua vida? Mas
não procuro respostas: e assim te voltei
a guardar, nesse livro que já não sei
onde está, na mesma página em que pus
os bilhetes de um cinema que há muito fechou.
Nuno Júdice, Uma Colheita de Silêncios, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2023, p.
44.
1. Refira de que modo os
objetos encontrados dentro de «um livro de poesia» (verso 1) contribuem para a evocação
do passado, tendo em conta os versos 1 a 7.
2. Explicite o contraste
entre esquecimento e memória sugerido nos versos 3 a 11, com base em dois exemplos.
3. Analise o valor expressivo
das perguntas presentes nos versos 11 e 12.
4. Explique a importância das
referências ao «livro» (versos 1, 6 e 14) para o desenvolvimento temático do poema,
destacando dois aspetos pertinentes.
Chave
de correção
1. Na
resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros
igualmente relevantes.
Os objetos
encontrados dentro de «um livro de poesia» (v. 1) contribuem para a evocação do
passado do modo seguinte:
- fornecem um contexto espácio-temporal ao episódio evocado
(«cinema» ‒ v. 2; «tarde de outono» ‒ v. 4);
- possibilitam a reconstituição do rosto do «tu», através da
memória («o teu rosto, de súbito, ganha uma realidade» ‒ v. 5).
2. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou
outros igualmente relevantes.
O
contraste entre esquecimento e memória sugerido nos versos 3 a 11 pode ser
explicitado com base nos exemplos seguintes:
- o «filme» (v. 3),
enquanto elemento esquecido («Já não me lembro que filme / foi esse que vimos» ‒ vv. 3-4), é
apresentado como contraponto da figura rememorada pelo sujeito poético(«mas / o
teu rosto, de súbito,
ganha uma realidade» ‒
vv. 4-5);
- os «poemas» (v. 8),
que não «ficaram na memória» (v. 8), contrastam com a identidade e os traços da
figura evocada («o teu nome, / os teus olhos, as tuas mãos» ‒ vv. 8-9), que são
relembrados pelo sujeito poético («ainda / hoje permanecem comigo» ‒ vv. 10-11).
3. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou
outros igualmente relevantes.
O
valor expressivo das perguntas presentes nos versos 11 e 12 pode ser analisado
do modo seguinte:
- as interrogações,
formuladas na ausência de um interlocutor, exprimem desconhecimento acerca do
percurso e da situação atual da figura evocada;
- as três perguntas
realçam a presença do «tu», através da interpelação.
4. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou
outros igualmente relevantes.
A
importância das referências ao «livro» (vv. 1, 6 e 14) para o desenvolvimento
temático do poema pode ser explicada com base nos aspetos seguintes:
- o livro é associado
aos momentos de abertura e de fecho do poema («Abro um livro» ‒ v. 1; «assim te voltei / a guardar, nesse livro» ‒ vv. 13-14);
- a possibilidade de
nele guardar os objetos que evocam acontecimentos passados confere ao livro um
relevo que contrasta com o carácter acidental da ação que dá início ao poema
(igualmente sugerido pelo título) e com a aparente desvalorização do seu
conteúdo literário («esse livro de poesia, / que nunca cheguei a ler» ‒ vv. 6-7).
Fonte: Exame Final
Nacional de Literatura Portuguesa (Prova 734) - Ensino Secundário (11.º Ano de
Escolaridade - Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º
62/2023, de 25 de julho). Portugal, IAVE, 2025 (1.ª Fase)

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