(Recitando o texto de Eurípedes.) «Jasão, perdoa-me
o que disse. Tens
de suportar este génio violento. Partilhamos tantas
recordações do nosso amor!» Eu ralho comigo mesma,
«Como és doida,
Medeia, teimas em te queixar, quando o que os outros pretendem
é levar a vida da melhor maneira possível, teimas em te queixar,
erguendo-te contra o Rei e contra o teu próprio marido.»
[…]
«A vossa mãe está fora do Mundo»,
dizes calmamente enquanto enches o cachimbo, «e
há quase vinte anos que anda agarrada como um abutre à carcaça de
Medeia. Como e dorme com os seus demónios,
de que outra coisa quer ela saber?» E
os pequenos ouvem-te.
O mais velho pelo menos ainda te presta atenção,
vendo
no pai aquilo que pretende ser, um «pragmático» com a ambição toda que cabe
nesta palavra»
[…]
«A chuva desta noite espalhou pela terra as azeitonas antes que amadurecessem.»
O texto de Eurípedes não contém, mas deveria conter,
uma fala assim. Bem mais felizes terão sido
essas mulheres antigas, descidas de um reino de taças de veneno e
de tronos derrubados, desgrenhando
a cabeleira no ventre dos seus amantes.
Pariam em sangue, em sangue assassinavam.
[…]
Durante muitos anos tive aquele pesadelo.
O homem, jovem de mais para mim, erguia-se
na última fila da plateia.
Disparava três vezes. Eu caía na grande luz do palco.
E o público levantava-se para me aplaudir.
António Botto, por João Abel Manta. MC.DES.1004 Museu de Lisboa
Nãoqueiras vê-lo,
Nemperguntes o que
eu fiz
Quandohá pouco fui
olhar-me
Depoisde falar contigo
E em que chorei
de saudade!
Quebrei-o porque
não quero
Aceitara realidade!
Nãodigas, — não vás
supor
Quefoi uma cobardia,
Ounervos, ou
pessimismo,
Ouuma simples
fantasia!...
Não, amor: o
nosso drama
— O meu!, tem
essa tragédia
Da consciência
que eu ponho
Semquerer, sem a
chamar,
Paraouvir o que eu
digo
E para ver o que
eu faço...
Sou o rastro de
um sorriso,
Umgesto do teu
cansaço...
Sou a música
perdida
De um lamento que
foi alma
Na letra de uma
cantiga
Cantadapor um mendigo
Numa estrada
solitária
Ondenão passa
ninguém!
Quebrei-o e fiz
muito bem.
Quebrei-o como
quem parte
A vida que
idealizou:
— Não posso
ver-me qual fui,
Nãoquero ver-me qual
sou.
António
Botto,CuriosidadesEstéticas(1924)poema 24 inCançõese Outros
Poemas, Ed. Quasi, 2008
AS
CARTAS DEVOLVIDAS
17
Ainda bem que nos afastámos. Ainda bem que o fizemos. Eu
não podia mais… Era impossível, acredita. Se continuássemos a viver como
vivíamos — e mudar, dificílimo seria, — se nós desistíssemos desta separação ou
dêste sacrifício, apartávamos, certamente, as nossas almas, e para sempre!
Ainda bem que nos afastámos. Ainda bem que o fizemos. Dizes-me na tua carta
relida já quatro vezes que a tranqüilidade da nossa vida vale mais que tôdas as
paixões, que todos os desejos… Tu dás-lhe êsse nome; mas, para mim, tem outro:
— sim; chamemos-lhe egoismo. O teu é sacrificar todos os prazeres para evitar
uma dor; — és cobarde e comodista. O meu, tambem se chama egoismo, porém, é
egoismo diferente, é egoismo ideal: — sacrificar tudo ainda que o sacrifício
possa destruir a minha vida e essa destruïção entristeça para sempre a minha
alma. Ah!, como nós somos opostos! Tu acabaste para esquecer ou pôr de parte a
minha camaradagem; eu, acabei para te lembrar continuamente e para mais te
pertencer. Tinha que ser: está bem. A vida é uma sucessão de imagens; se umas
se apagam há outras que permanecem…
18
Notícias da minha vida — para quê? O que tu possas
imaginar dela talvez tenha mais encanto. Notícias minhas? Caberiam em três
palavras: — Tento, apenas, esquecer-te!
19
Eu não devia responder á tua carta; nem sei dizer porque
o faço. Também de que servia dizer-te? A verdade parece traição àqueles que
vivem da mentira. Tentei esclarecer-te, para meu sossêgo e minha tranqüilidade
êsse desagradável mal entendido que deu origem á nossa frieza actual, tão
firme, segundo parece. Não quizeste escutar-me. Pouco depois, saías, — sem me
deixar sequer a esmola de uma palavra… Dias passaram, longos dias decorreram, e
hoje, a tua carta de quatro linhas vem dizer-me que te arrependes da simpatia que
me déste… E num tom sêco terminas: que eu que sou bem diferente daquele que tu
julgaras… Nada respondo. Apenas te lembro que a vida é cruel, imensamente
cruel; e a sua maior crueldade é não permitir que pessoas da nossa estima
possam conhecer a verdade dos nossos pensamentos e a verdade do nosso sentir.
Adeus. As grandes paixões são para as grandes almas.
António Tomás Botto nasceu em
Concavada (Abrantes), em 1897. Amigo de Fernando Pessoa, colaborou em várias
revistas de vanguarda, como a Athena, A Águia, a Contemporânea, a Presença,
etc. Embora inveteradamente boémio, chegou a alto funcionário em Angola
(África), na qualidade de Chefe da Repartição Política e Civil do Zaire. Vindo
para o Brasil, entrou a viver uma vida desregrada e anárquica. Faleceu no Rio
de Janeiro, em 1959.
Escreveu poesia e contos. No
primeiro caso, temos: Trovas (1917), Cantigas da Saudade (1918), Motivos de
Beleza (1923), Curiosidades Estéticas (1924), Pequenas Esculturas (1925),
Olimpíadas (1927), Dandismo (1928), Ciúme (1934), Baionetas da Morte (1936), A
vida que te dei (1938), Sonetos (1938), - reunidos no volume As Canções de
António Botto (1941, primeiro volume das Obras Completas), ódio e Amor (1947),
etc. Contos: Os Contos de António Botto, para crianças e adultos (1942), etc.
A poesia de António Botto pende
sempre entre dois pólos líricos: de um lado, coloca-se um erotismo exacerbado
até o máximo possível, graças às febres duma incrível imaginação e duma
privilegiada sensibilidade, e por isso mesmo invertendo o sinal do apelo
físico: em lugar de dirigir-se a uma mulher, dirige-se a um adolescente. O tom
é apolíneo, clássico, paganizante, em que se cultua a beleza masculina por seu
equilíbrio de formas e a harmonia das linhas fundamentais. Do outro lado, uma
poesia aparentemente antagónica, dado o seu carácter socialmente
"realista": o poeta põe-se a retratar o baixo-mundo lisboeta onde
impera o "fado", canção de escorraçados. Nessa poesia voltada para o
quotidiano de Lisboa perpassa um eco longínquo de Cesário Verde. No movimento
pendular - de carácter feminino-masculino -, o "outro" do poeta é já
mulher, donzela ou fadista, como a compensar a tendência oposta: "Anda um
ai na minha vida / Que me lembra a cada passo / A distância que separa / O que
eu digo do que eu faço".
Os contos parecem testemunhar uma
espécie de paisagem moral sobre a qual balançam e se compensam mutuamente as
duas tendências marcantes do temperamento de António Botto.
Ambiguamente escritos para crianças
e adultos, pois servem a todos com seu intuito pedagógico, os contos tem
qualidades e defeitos resultantes desse mesmo carácter moralizante: assumindo
atitudes à La Fontaine e à Esopo, o contista cometeu erros de base que por
pouco não anulam completamente o sentido da obra toda. Noutros termos:
procurando manter-se equidistante entre falar às crianças e aos adultos,
algumas vezes o narrador se derrama piegasmente, ou se torna artificial quando
pretende inserir notas de ingenuidade na moral com que coroa as narrativas. Com
isso, parece comunicar-se apenas com o público infantil, pois para os adultos
não satisfaz o conteúdo ético das conclusões. E mesmo para crianças, havia que
ponderar a ocasional ausência de moral ou a sua impropriedade. Sempre, contudo,
temos um prosador de primeira água, dotado de transparência, fulgor,
simplicidade e variedade. A tais dotes soma-se o pendor inato para a poesia: é
justamente a prosa poética, que adquire por vezes um tom de apólogo, ou de
linguagem oracular, o superior mérito dos Contos, que se aparentam a Os Meus
Amores, de Trindade Coelho, sobretudo pela esvoaçante fantasia que lhes serve
de lastro, expressão de crença no mundo dos sonhos ou duma ânsia de fuga para
atmosferas de beleza exclusivamente imaginativa.
Massaud Moisés, A
Literatura Portuguesa
São Paulo, Editora Cultrix
VIRILIDADES
ANTÓNIO Botto foi, como é sabido, um
poeta capaz do melhor e do pior. Do pior retenhamos, por exemplo, o desastrado
e genuflectido Fátima - Poema do Mundo (1955) ou a quase totalidade dos
poemas recolhidos em Ainda
Não Se Escreveu (1959). Como testemunhos do
melhor, ficaram as Cartas Que Me Foram Devolvidas (1932), a peça Alfama
(1933) ou As Canções agora reeditadas. Recorde-se que estas últimas
mereceram de Pessoa não apenas o apoio editorial (na edição inaugural de 1922,
que viria a ser ampliada em 1930 e 1940) como ainda um ensaio pródigo em
encómios e o exemplar Aviso por Causa da Moral, endereçado por Álvaro de
Campos às mentes susceptíveis dos estudantes de Lisboa.
O
manifesto de Campos vinha precisamente em defesa das Canções após um
pedido público de apreensão e proibição da sua venda. Era de facto um livro
que, para além de um vigor poético que em nada perdeu actualidade, denotava uma
coragem rara e frontal - tanto pela homossexualidade assumida ao longo das suas
páginas como (ou talvez sobretudo) pela concepção que veicula do corpo como
princípio e fim do prazer: «Se os nossos corpos se entendem// Nada mais nos é
preciso» (pág. 37); «Não vale a pena ter alma» (pág. 137). Com uma veemência
que quase poderíamos considerar inédita entre nós, Botto atreve-se a louvar o
«largo aprumo viril» (pág. 69) dos corpos, sem a mínima ambiguidade, recorrendo
com frequência a deliciadas descrições que nos obrigam a ter presente a
«visualidade trágica do amor» (pág. 132): «Moreno! Um todo excitante;/ Rapaz do
povo, lavado,/ Viril, saudável - um corpo// Já batido na bigorna// Dos amores
proibidos» (pág. 214). A mestria com que convoca o corpo desejado atinge nas Canções
não apenas um elevado conseguimento estilístico mas também (o que é mais raro
no nosso lirismo amoroso) uma felicidade provocatoriamente despreocupada, que
não resiste a partilhar o deslumbramento erótico em que se firma: «Venham ver a
maravilha/ Do seu corpo juvenil!// O sol encharca-o de luz,/ E o mar de rojo
tem rasgos/ De luxúria provocante». Em todas as circunstâncias (se exceptuarmos
os poucos monólogos dramáticos em que o sujeito é feminino), o amor a que este
livro procura dar voz inteira confessa e reclama a sua virilidade: a evidência
de acontecer «entre dois homens».
A
singularidade das Canções não se prende, porém, apenas com a opção
sexual que claramente reivindica e que na altura não podia deixar de
escandalizar. É verdade que o autor (ou a personagem por ele criada) adopta a
atitude de quem «zomba e ri da moral imposta» (pág. 215), rejeitando de modo
inexoravelmente sereno (embora por vezes irónico ou até magoado) o papel de
vítima moral ou social: «Deixá-los dizer -/ Que somos dois amantes; faz-me
rir,/ Mesmo até sem ter vontade...// - Uma verdade na vida,/ De qualquer modo
que a vejam/ É sempre a mesma verdade» (pág. 189). Mas talvez a ousadia maior
de Botto tenha sido a reiterada tentativa de se colocar «à margem da moral»
(pág. 218), cujos princípios normativos procurou submeter a uma espécie de
indiferença hedonista que parece apostada em sacralizar e democratizar a carne,
dado que «- A carne do assassino/ É como a do virtuoso» (pág. 15). Esta
tentação de privilegiar o «encantamento carnal» (pág. 50) tem, aliás,
consequências estéticas, na medida em que o desejo é perspectivado/sublimado
como algo de supra-estético, capaz de se bastar na violência com que eclode e
reclama cumprimento: «A beleza -/ Não é mais do que o desejo/ Fremente que nos
sacode.../ - O resto é literatura».
Tudo
isto contribuiu, naturalmente, para que a obra de Botto se fizesse rodear de
uma aura de polémica ainda não de todo extinta. Basta que pensemos na
indisfarçada misoginia que serve de contraponto ao elogio rasgado da carne
trigueira e viril. Quando surge nas Canções, a figura da mulher é
associada ou à débil servidão conjugal ou à mais rude prostituição. De resto -
e por mais que pese a qualquer leitura de inspiração politicamente correcta -,
é no final de um dos melhores poemas deste livro que vamos encontrar o paroxismo
glacial desse desprezo pela mulher: «Acabo, aos beijos, num quarto/ Sobre uma
espécie de mulher» (pág. 189). De certo modo, é como se no universo erótico
intensamente viril das Canções a mulher fosse vista como portadora de um
estigma, da possibilidade de corromper o corpo masculino idealizado, por
exemplo, nas «Olimpíadas»: «- Carne divina/ Sem a mácula do abraço feminino/
Que a torna/ Doente, sacrificada».
Não
é apenas o receio da debilitação (e o consequente elogio da juventude) que vem
perturbar o apaixonado louvor do corpo. De facto, a poesia de Botto pauta-se às
vezes por uma melancolia de tonalidades frias e elegíacas: «De quanto quanto
nós fomos,// Apenas sei que sou triste» (pág. 104); «Tudo foge ao nosso olhar»
(pág. 154). O que se deve também ao facto de nos melhores poemas do autor o ser
do amor ser incansavelmente questionado e, de quando em quando, desacreditado
ou corroído pela dúvida: «Anoitece nos meus olhos./ - Se vens falar-me de amor/
Vê lá bem se isso é verdade». Esta conseguida «singeleza» de expressão não
renega, evidentemente, um forte parentesco com o fado, com a quadra popular ou
até com o ambiente mítico de uma Alfama que não era ainda degradado pasto de
turistas. A força e a fraqueza de Botto encontram-se, aliás, nessa peculiar
facilidade de concentrar a intensidade expressiva num registo populista (a
roçar por vezes o melodrama ou o lirismo de manjerico): «Quem mais ama mais
padece;/ Eu hei-de amar poucochinho» (pág. 75). São de lamentar, esteticamente,
os momentos em que essa veia populista cai numa estéril autocomplacência ou se
afivela a um patriotismo rudimentar (para não dizer saloio). Tal como se nos
pode revelar fruste e convencional a maneira como é cantada «a doutrina/
Bendita de Jesus - esse tesoiro» (pág. 157).
Seja
como for, tanto como pelos matizes vários que da temática amorosa nos oferece,
é pela força e pela elegância do versilibrismo de Botto que o fascínio das Canções
se mantém irredutível. E muito deve esse fascínio ao talento com que nos é
proposto um coloquialismo despojado, assente numa sintaxe primorosamente
descuidada que faz de travessões, reticências e pontos de exclamação elementos
de expressividade maior. Ao que se alia uma preferência por frases e versos
curtos, claros e contundentes. Sirvam de exemplo os versos que, em jeito de
despedida, rematam certos poemas: «Não dizes nada?/ Fazes bem. Adeus!» (pág.
221). O que nos leva a pensar que a poesia de Botto é tanto melhor quanto mais
intensamente requer um interlocutor (ou destinatário-em-corpo) que dota certos
textos de um quase sufocante realismo emocional (e os dispensa, ao mesmo tempo,
dos solipsismos e frouxas grandiloquências que vieram a caracterizar o pior do
que o poeta escreveu).
Numa
época em que a «complexidade» mantém ainda um tirânico poder de sedução e
prestígio, talvez não seja descabido observar que a poesia de António Botto,
não exigindo excessivas manobras hermenêuticas, não deixa por isso de poder ser
(como no caso das Canções) grande poesia. Podemos, aliás, inseri-lo
nessa estirpe de poetas (em que se contam, por exemplo, Irene Lisboa ou Raul de
Carvalho) para quem o dizer claro e um fértil «prosaísmo» se revelaram a mais
grave, profunda e urgente razão de escrever versos.
“El
semiheterónimo Antonio Botto”, José Luís Garcia Martín. Archivum: Revista de la Facultad de Filología,ISSN0570-7218,Tomo 36, 1986(Ejemplar dedicado a: Miscelanea
Filológica dedicada al profesor Jesús Neira) ,págs.381-408
“António Botto”. In:Wikipédia,
a enciclopédia livre[Em
linha]. Flórida: Wikimedia Foundation, rev. 5 outubro 2014.
2018
“António Botto não foi só amigo de Fernando Pessoa. Foi o
primeiro (do mundo) a escrever poesia homoerótica sem véus”, Rita Cipriano.
Observador, 2018-08-11
2018
“Obras de António Botto vão voltar às livrarias ainda
este ano”, Rita Cipriano. Observador, 2018-08-01
2018
“O Mundo Gay de António Botto”, Anna M. Klobucka. Sistema Solar, 2018-06-11
2019
“A maior felicidade é
ser-se compreendido. Sete poemas para recordar António Botto”, Rita
Cipriano. Observador, 2019-03-16
2019
“Como a existência
dramática de António Botto acabou numa avenida de Copacabana”, Rita
Cipriano. Observador, 2019-03-16
2019
“Um colóquio para ficar a conhecer melhor António Botto”,
Rita Cipriano. Observador, 2019-03-15
2019
“Dois dias para celebrar António Botto e Fernando Pessoa,
amigos e poetas”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-05
2019
“Anna Klobucka: António Botto e Fernando Pessoa beneficiaram
de forma igual e recíproca da sua
relação de amizade”, Rita Cipriano, Observador, 2019-03-16
FERNANDO PESSOA OU ANTÓNIO MORA, O OFICIALMENTE LOUCO.
Cascais, disse Pessoa, Cascais, que belo sítio, eu também lá passei alguns dias, não mais de duas semanas, é a primeira vez que falo disto a alguém e de boa vontade lhe confesso a si que é meu amigo, meu caro Soares, fui a uma consulta na clínica psiquiátrica de Cascais; foi lá que conheci António Mora, o filósofo panteísta, e devo dizer que passei nessa pequena vila os dias mais serenos da minha vida, porque uma onda negra tinha-se abatido sobre mim e tinha-me arrastado e eu só tinha vontade de morrer, mas conheci António Mora, que me deu confiança na Natureza.
António Mora?, perguntou Bernardo Soares. Nunca me tinha falado nele, gostaria de saber alguma coisa a seu respeito.
Bem, disse Pessoa, António Mora é louco, pelo menos oficialmente é louco. Mas é um louco lúcido, que reflectiu muito sobre o paganismo e o cristianismo. Posso dizer-lhe que se veste com uma túnica como os antigos romanos, uma túnica branca que lhe desce até aos pés, calça sandálias à maneira antiga e raramente fala, mas comigo falou.
E o que é que ele lhe disse?, perguntou Bernardo Soares.
Disse-me muitas coisas, respondeu Pessoa. Disse-me primeiro que os deuses voltarão, porque essa história de uma alma única e de um único deus é uma coisa passageira que está a acabar no final de um curto ciclo de história. E quando os deuses voltarem perderemos essa unicidade da alma, e a nossa alma poderá de novo ser plural, como a Natureza quer.
Antonio Tabucchi, in Os Últimos Três Dias de Fernando Pessoa,
Quetzal Editores, 1994, pp. 48-50
Fernando Pessoa, Bernardo Soares, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Caricatura por por Rui Pimentel.
O CASO CLÍNICO DE FERNANDO PESSOA
A sua poesia exprime sempre os seus sentimentos ou as suas crenças, sejam no que for. Fernando Pessoa não sabe e não quer mentir, embora minta e se contradiga. Não é então eleque fala ou escreve, porque realmente não existe ele.
Quando afirma ou nega pronuncia-se somente uma parte dele, uma fracção ocasional do seu eu. A dissociação mental de que é vítima despersonaliza-o. Então a perda da integridade psíquica fá-lo sentir-se outro, ou outros, conforme as fracções próprias que o determinam.
Vivem em nós inúmeros, Se penso ou sinto, ignoro Quem é que pensa ou sente. Sou somente o lugar Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma Há mais eus que eu mesmo.[1]
Na normal evolução da doença esquizofrénica[2] vai-se acentuando a progressão da dissociação psíquica até chegar à dissolução completa da personalidade, que é a demência ? Fernando Pessoa, falecendo aos 47 anos de idade, não teve tempo de chegar lá.
Sendo um psicopata hebefrénico[3], está implicitamente entendido que Fernando Pessoa não era o que se chama um louco. Padecia dessa nosofobia[4] porque, como é próprio da hebefrenia, conservava a inteligência e a lucidez do seu estado a agravar-se progressivamente e sabia o fim evolutivo que fatalmente o aguardava no avanço da idade.
No sofrimento atroz que lhe provocava à consciência da desagregação do pensamento, provavelmente terá (ainda que temido) desejado a loucura, porque a perda de lucidez do seu estado lhe seria uma libertação. No relâmpago de uma crise, algures chegou a exclamar: «Graças a Deus que estou doido!» Não o estava, claro. Nenhum doido (demente) diz que o é, pois que não reconhece o seu estado. Mas estava, isso sim, no caminho da demência e, nalguns momentos, muito próximo dela.
Psicopata profundamente atingido, e com a obstinação de escrever, fatalmente que Fernando Pessoa haveria de transmitir ao papel as vicissitudes dramáticas do seu espírito.
Mário Saraiva (médico), O caso clínico de Fernando PessoaLisboa, Edições Referendo, 1990 – texto com supressões
[3] Hebefrenia: uma categoria de esquizofrenia que começa, habitualmente, na adolescência e é caracterizada por inércia, embotamento da afectividade, autismo, bizarria de comportamento, delírios, dissociação intelectual da coesão íntima da personalidade.
[4] Nosofobia: horror excessivo às doenças; medo mórbido de adoecer. (Do gr. nósos, «doença» + phobe¸n, «ter horror a» + -ia)
EXPLICAÇÕES POSSÍVEIS DA HETERONÍMIA
Vários caminhos convergentes, assinaláveis nas prosas inéditas, nos levam a explicações possíveis da heteronímia – como se a pluralidade estivesse realmente no cerne do "caso" literário de Fernando Pessoa e a consciência disso manejasse os fios do seu pensamento.
Eis algumas dessas explicações:
1ª) A constituição psíquica de Pessoa, instável nos sentimentos e falho de vontade, teria gerado a multiplicação em personalidades ou personagens do drama em gente.
Pessoa explica o aparecimento dos heterónimos dizendo que a origem destes reside na sua histeria, provavelmente histeroneurastenia[1], logo numa "tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação".
Vários fragmentos das Páginas Íntimas atendem "à dispersão do eu".
2ª) A qualidade de poeta de tipo superior levá-lo-ia à despersonalização. Com efeito, na concepção de Fernando Pessoa, segundo um fragmento inédito, há quatro graus de poesia lírica e no cume da escala, onde ele se coloca, o poeta torna-se dramático por um dom espantoso de sair de si.
No segundo grau, o poeta ainda mais intelectual, começa a despersonalizar-se, a sentir, não já porque não sente, mas porque pensa que sente, a sentir estados de alma que realmente não tem, simplesmente porque os compreende. Estamos na antecâmara da poesia dramática, na sua essência íntima. O temperamento do poeta, seja qual for, está dissolvido pela inteligência. A sua obra é unificada só pelo estilo, último reduto da sua unidade espiritual, da sua coexistência consigo mesmo.
“O quarto grau da poesia lírica é aquele muito mais raro, em que o poeta, mais intelectual ainda, mas igualmente imaginativo, entra em plena despersonalização."
Não só sente, mas vive os estados de alma que não tem directamente, supondo que o poeta, evitando sempre a poesia dramática, externamente, avança ainda um passo na escala da despersonalização.
Certos estados de alma, pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos tenderão a definir, para ele, uma pessoa fictícia que os sentisse sinceramente.
Não se detém Pessoa precisamente no limiar do seu caso excepcional de poeta múltiplo, autor de autores?
A heteronímia seria o termo último de um processo de despersonalização inerente à própria criação poética e mediante o qual Pessoa estabelece uma axiologia literária.
O poeta será tanto maior quanto mais intelectual, mais impessoal, mais dramático, mais fingidor – é o sentido pleno da "Autopsicografia".
O progresso do poeta dentro de si próprio, realiza-se pela autoria sobre a sinceridade, pela conquista (lenta, difícil), da capacidade de fingir: "A sinceridade é o grande obstáculo que o artista tem de vencer. Só uma longa disciplina, uma aprendizagem de não sentir senão literariamente as coisas, pode levar o espírito a esta culminância. "
Exprimir poeticamente significa fingir.
3ª) A qualidade de português levaria o poeta a despersonalizar-se, a desdobrar-se em vários.
"O bom português é várias pessoas – reza um fragmento inédito. Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim – Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa e quantos mais haja havidos ou por haver".
Se um indivíduo deve despersonalizar-se para seu progresso interior, uma Nação deve desnacionalizar-se – e esta é em particular a vocação portuguesa.
O ideal que Pessoa inculca a Portugal, é consequentemente o que se propõe a si próprio: "Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa" – o pluralismo, o politeísmo.
4ª) A multiplicidade do escritor seria o produto necessário de uma nova fase de civilização – fase que Fernando Pessoa caracteriza ao explicar o Orfeu e o sensacionismo dum ângulo sociológico.
A decadência da fé, quebra de confiança na ciência, a complexidade de opiniões traduz-se pela ânsia actual de "ser tudo de todas as maneiras".
A poesia poderá entender-se também como resposta a um estado colectivo de crise, mas em sentido diferente, isto é, como antídoto, como bálsamo espiritual.
Caeiro, libertador imaginário, um remédio (provisório) para a dor de pensar de que sofre Pessoa ortónimo, uma fuga.
Pessoa ter-se-ia dividido para se compensar.
Heteronímia seria um modo de suprir a carência, verificada na época, de personalidades superiores, e em especial de grandes personalidades na literatura portuguesa: "Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de génio fazer senão converter-se ele só em literatura?".
[1]No seu Tratado de Psiquiatria Clínica, vol. I, o inglês W. Mayer Gross diz, na página 401: «Os hebefrénicos podem seguir um caminho por largos tempos diagnosticados de "neurasténicos" e "neuróticos"... Sentem-se atraídos por ideias pseudo-científicas e pseudo-filosóficas, sentem-se capazes de grandes descobrimentos e invenções.» Por sua vez, afirma-se no Dicionário Enciclopédico de Medicina(p. 871) que «os enfermos (esquizofrénicos na forma hebefrénica) entregam-se a excessos de romantismo, de filosofismo ou de misticismo.»