O ananás é o fruto emblemático da ilha de São Miguel(1) e encontra-se presente na vida económica, política, social e cultural micaelense, tendo a sua fama extravasado a fronteira local.
Ainda no século XIX, Eça de Queirós, haveria de louvar o fruto rei, o que aliás foi assinalado por João Carlos Macêdo em interessante referência feita no ano 2000(2).
Mas ouçamos o genial romancista:
«Carlos, alegremente, desembrulha o ananás – e na admiração dele todo o constrangimento se dissipou.
-Oh! É magnífico!
-Que cor, que luxo de tons!
-E que aroma! Veio perfumando a estrada toda.»(3)
Mesmo da parte dos chamados poetas de intervenção, o ananás é cantado, como neste poema de José Carlos Ary dos Santos:
«Tirando as aspas dos olhos
Do grande mar da minha distância
As aspas dos ananases
São as espadas da minha infância»(4)
Ou recentemente, pela escrita vinda da nossa diáspora, chegam-nos interessantes referências de carácter mais popular:
«Eu já vi nascer o sol
Numa estufa de ananás;
Alegra-te rapariga
Que aí vem o teu rapaz
Eu já vi nascer o sol
Numa estufa de ananases
Inda te hás-de arrepender
Das repisas que me fazes»(5)
Todas as referências culturais, mais ou menos eruditas, ficariam incompletas se não referíssemos aqui a celebrada Natália Correia que, na sua sublime Mãe Ilha, não esquece o fruto emblema da sua terra natal, porventura recordação de qualquer instante da sua vivência na ilha:
«mãe volátil mãe correndo
no sangue voador dos rapazes
pela tarde dentro e eu escondida
entre as aspas dos ananases»(6)
Cá dentro de portas, não podemos esquecer Manuel José de Morais Bernardo Cabral, que imortalizou o ananás através de documentário cinematográfico que aborda o percurso do rei fruto, numa perspectiva técnica e económica, conforme esclareceu o seu autor.(7)
Das mais variadas formas, o ananás impõe-se. No turismo, a Fajã de Baixo é hoje obrigatoriamente um ponto de paragem para quem visita os Açores, pois é lá que se encontra uma emblemática instituição turística, como é o caso da plantação de ananases “A. Arruda”, onde é dado a conhecer ao visitante todas as fases da cultura do ananás em estufas de vidro, única no mundo e típica da Ilha de São Miguel, singularidade importante que deve ser objecto de preservação.
Num bonito prédio, instalado junto ao Solar da Família de Augusto Rebelo Arruda, para além da visita às estufas, os turistas são brindados com uma prova de licor de ananás, de receita tradicional, tendo para além disso oportunidade de adquirir ananases, doces, compotas e rebuçados de ananás, tudo de fabrico caseiro, a que juntaram agora o serviço de distribuição de sumo natural do fruto, feito na hora, bem como uma quantidade admirável do mais bonito e diverso artesanato.
Augusto Arruda, advogado de profissão, foi também produtor de ananás e um dos pioneiros do desenvolvimento turístico dos Açores. É caso para dizer-se que o seu sentido de prever o futuro, aqui ficou marcado, pois a dita propriedade sita à Abelheira, na Fajã de Baixo é hoje uma referência no turismo açoriano, ou melhor, cumpre o «sonho do Dr. Augusto Arruda de ligar o ananás micaelense ao turismo.».(8)
Visitar as estufas micaelenses foi sempre uma forma de presentear – pelo exclusivo que isso representa – os mais ilustres visitantes da ilha de São Miguel. É o caso de Raul Brandão que de visita aos Açores e de passagem por São Miguel, tão impressionado ficou com a visita que fez às estufas de Alice Moderno na Fajã de Baixo que comentou no seu belo livro de viagens As ilhas desconhecidas que o que lhe interessava era «ir exausto pela floresta tropical, num dia de calor e deparar-se com uma família de ananases maduros.»(9) Ananases micaelenses, pois esclarece o escritor que estes exalam «um aroma que faz crescer água na boca.»(10)
Encontramos hoje o ananás representado na cerâmica regional, em porcelana importada e em peças de ourivesaria e joalharia.
As placas toponímicas da freguesia da Fajã de Baixo, produzidas em azulejaria regional micaelense, com os seus ananases pintados à mão, para além da beleza artística, são uma marca importante do ananás. Tal como a calçada tradicional portuguesa, da graciosa Rua Direita da Fajã de Baixo, que apresenta em grande profusão o ananás.
Por fim, na heráldica da Fajã de Baixo, com o seu Brasão, Bandeira e Selo, onde se lê:
«Escudo de prata, três ananases de ouro folhados e realçados de verde; em chefe, um açor de sua cor, segurando nas garras um escudete azul carregando de cinco besantes; coroa mural de prata de três torres; listel branco com a legenda a negro: “Fajã de Baixo”»(11)
Tudo aprovado, depois do parecer da Comissão de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses, nos termos da lei.
Nada do que foi feito teria sido possível sem o esforço dos incansáveis estufeiros que labutam nas estufas de vidro. Daí esta breve referência a uma classe que merece o nosso respeito e louvor. Durante anos esquecidos, aproveitaram as liberdades restituídas em 25 de Abril de 1974 e fazem surgir uma organização sindical, com Estatutos aprovados em 6 de Dezembro de 1974, pela Assembleia Geral dos Trabalhadores da Cultura do Ananás que cria o Sindicato dos Trabalhadores da Cultura do Ananás, que logo manterá correspondência com outras organizações sindicais de Lisboa, bem expressivas aliás no slogan que a organização remetente explícita com clareza num Unidade da Nação – A força dos trabalhadores, posto nos CTT do Terreiro do Paço em Lisboa ao 3.10.1977 e com destino à Fajã de Baixo.
Não se tratou de uma instituição ou luta pioneira, pois a atestar por relatos antigos (que ainda estudamos), por volta da década de trinta do século XX, deu-se uma revolta de estufeiros, liderada por Carlos Ferreira, com direito a homenagem em forma toponímica, atribuída pela Junta de Freguesia da Fajã de Baixo, ao tempo presidida por João Carlos Macêdo(12). Fica aqui o registo em jeito de preito.
Mas, o mais impressionante elogio ao trabalho dos micaelenses, com referência concreta ao ananás, vem do imortal Vitorino Nemésio, que elogia esses heróis incógnitos:
«[…]escolheram o ananás emalotado por suas mãos; carregaram-no a bordo; chegaram carvão às caldeiras que o transportam ao Havre e a Londres. Aquele ninguém que esbraceja em direcção ao portaló do nosso paquete, e quer ser o primeiro a lançar o croque à escada, larga uma praga – corisco! – que ficou de brasão ao povo micaelense […] E quem sabe se a alma daquela gente de honra e nervo não foi feita do raio que abrasa os preguiçosos e os hipócritas?»(13)
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/04/11/ananas.aspx]