quinta-feira, 11 de abril de 2013

O ANANÁS DA ILHA DE SÃO MIGUEL, AÇORES




     

     

     
     
O ananás é o fruto emblemático da ilha de São Miguel(1) e encontra-se presente na vida económica, política, social e cultural micaelense, tendo a sua fama extravasado a fronteira local.

Ainda no século XIX, Eça de Queirós, haveria de louvar o fruto rei, o que aliás foi assinalado por João Carlos Macêdo em interessante referência feita no ano 2000(2).

 Mas ouçamos o genial romancista: 

«Carlos, alegremente, desembrulha o ananás – e na admiração dele todo o constrangimento se dissipou.
-Oh! É magnífico!
-Que cor, que luxo de tons!
-E que aroma! Veio perfumando a estrada toda.»
(3)


Mesmo da parte dos chamados poetas de intervenção, o ananás é cantado, como neste poema de José Carlos Ary dos Santos: 

«Tirando as aspas dos olhos
Do grande mar da minha distância
As aspas dos ananases 
São as espadas da minha infância»
(4)


Ou recentemente, pela escrita vinda da nossa diáspora, chegam-nos interessantes referências de carácter mais popular: 

«Eu já vi nascer o sol
Numa estufa de ananás;
Alegra-te rapariga
Que aí vem o teu rapaz

Eu já vi nascer o sol
Numa estufa de ananases
Inda te hás-de arrepender
Das repisas que me fazes»
(5)

         

Todas as referências culturais, mais ou menos eruditas, ficariam incompletas se não referíssemos aqui a celebrada Natália Correia que, na sua sublime Mãe Ilha, não esquece o fruto emblema da sua terra natal, porventura recordação de qualquer instante da sua vivência na ilha: 

«mãe volátil mãe correndo
no sangue voador dos rapazes
pela tarde dentro e eu escondida
entre as aspas dos ananases»
(6)






Cá dentro de portas, não podemos esquecer Manuel José de Morais Bernardo Cabral, que imortalizou o ananás através de documentário cinematográfico que aborda o percurso do rei fruto, numa perspectiva técnica e económica, conforme esclareceu o seu autor.(7)

Das mais variadas formas, o ananás impõe-se. No turismo, a Fajã de Baixo é hoje obrigatoriamente um ponto de paragem para quem visita os Açores, pois é lá que se encontra uma emblemática instituição turística, como é o caso da plantação de ananases “A. Arruda”, onde é dado a conhecer ao visitante todas as fases da cultura do ananás em estufas de vidro, única no mundo e típica da Ilha de São Miguel, singularidade importante que deve ser objecto de preservação.

Num bonito prédio, instalado junto ao Solar da Família de Augusto Rebelo Arruda, para além da visita às estufas, os turistas são brindados com uma prova de licor de ananás, de receita tradicional, tendo para além disso oportunidade de adquirir ananases, doces, compotas e rebuçados de ananás, tudo de fabrico caseiro, a que juntaram agora o serviço de distribuição de sumo natural do fruto, feito na hora, bem como uma quantidade admirável do mais bonito e diverso artesanato.

Augusto Arruda, advogado de profissão, foi também produtor de ananás e um dos pioneiros do desenvolvimento turístico dos Açores. É caso para dizer-se que o seu sentido de prever o futuro, aqui ficou marcado, pois a dita propriedade sita à Abelheira, na Fajã de Baixo é hoje uma referência no turismo açoriano, ou melhor, cumpre o «sonho do Dr. Augusto Arruda de ligar o ananás micaelense ao turismo.».(8)

Visitar as estufas micaelenses foi sempre uma forma de presentear – pelo exclusivo que isso representa – os mais ilustres visitantes da ilha de São Miguel. É o caso de Raul Brandão que de visita aos Açores e de passagem por São Miguel, tão impressionado ficou com a visita que fez às estufas de Alice Moderno na Fajã de Baixo que comentou no seu belo livro de viagens As ilhas desconhecidas que o que lhe interessava era «ir exausto pela floresta tropical, num dia de calor e deparar-se com uma família de ananases maduros.»(9) Ananases micaelenses, pois esclarece o escritor que estes exalam «um aroma que faz crescer água na boca.»(10)

Encontramos hoje o ananás representado na cerâmica regional, em porcelana importada e em peças de ourivesaria e joalharia.

As placas toponímicas da freguesia da Fajã de Baixo, produzidas em azulejaria regional micaelense, com os seus ananases pintados à mão, para além da beleza artística, são uma marca importante do ananás. Tal como a calçada tradicional portuguesa, da graciosa Rua Direita da Fajã de Baixo, que apresenta em grande profusão o ananás.





Por fim, na heráldica da Fajã de Baixo, com o seu Brasão, Bandeira e Selo, onde se lê:

«Escudo de prata, três ananases de ouro folhados e realçados de verde; em chefe, um açor de sua cor, segurando nas garras um escudete azul carregando de cinco besantes; coroa mural de prata de três torres; listel branco com a legenda a negro: “Fajã de Baixo”»(11)
     

Tudo aprovado, depois do parecer da Comissão de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses, nos termos da lei.


Nada do que foi feito teria sido possível sem o esforço dos incansáveis estufeiros que labutam nas estufas de vidro. Daí esta breve referência a uma classe que merece o nosso respeito e louvor. Durante anos esquecidos, aproveitaram as liberdades restituídas em 25 de Abril de 1974 e fazem surgir uma organização sindical, com Estatutos aprovados em 6 de Dezembro de 1974, pela Assembleia Geral dos Trabalhadores da Cultura do Ananás que cria o Sindicato dos Trabalhadores da Cultura do Ananás, que logo manterá correspondência com outras organizações sindicais de Lisboa, bem expressivas aliás no slogan que a organização remetente explícita com clareza num Unidade da Nação – A força dos trabalhadores, posto nos CTT do Terreiro do Paço em Lisboa ao 3.10.1977 e com destino à Fajã de Baixo.

Não se tratou de uma instituição ou luta pioneira, pois a atestar por relatos antigos (que ainda estudamos), por volta da década de trinta do século XX, deu-se uma revolta de estufeiros, liderada por Carlos Ferreira, com direito a homenagem em forma toponímica, atribuída pela Junta de Freguesia da Fajã de Baixo, ao tempo presidida por João Carlos Macêdo(12). Fica aqui o registo em jeito de preito.

Mas, o mais impressionante elogio ao trabalho dos micaelenses, com referência concreta ao ananás, vem do imortal Vitorino Nemésio, que elogia esses heróis incógnitos:


«[…]escolheram o ananás emalotado por suas mãos; carregaram-no a bordo; chegaram carvão às caldeiras que o transportam ao Havre e a Londres. Aquele ninguém que esbraceja em direcção ao portaló do nosso paquete, e quer ser o primeiro a lançar o croque à escada, larga uma praga – corisco! – que ficou de brasão ao povo micaelense […] E quem sabe se a alma daquela gente de honra e nervo não foi feita do raio que abrasa os preguiçosos e os hipócritas?»(13)








(1) Maria de Fátima Silva de Sequeira Dias, Ascensão e declínio de uma cultura agrícola na ilha de S.Miguel, arquipélago dos Açores: o ananás (dos finais do século XIX aos inícios do século XXI), fotocópia, p.4, Universidade dos Açores, 2008.
(2) João Carlos Macêdo, «Eça de Queirós, Apreciador de Ananases», Boletim da Freguesia da Fajã de Baixo nº 67, p. 1, 2000.
(3) Eça de Queirós, Os Maias, Colecção Clássicos da Literatura Portuguesa, Porto Editora, p. 431.
(4) José Carlos Ary dos Santos, As palavras das Cantigas, Editora Avante, Lisboa, s/d, p. 127.
(5) Ferreira Moreno, Atlântico Expresso, 13.Outubro.2008.
(6) Natália Correia, Mãe Ilha, in O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I, p. 425, Circulo de Leitores, Março de 1993.
(8) Maria de Fátima Silva de Sequeira Dias, Ascensão e declínio de uma cultura agrícola na ilha de S.Miguel, arquipélago dos Açores: o ananás (dos finais do século XIX aos inícios do século XXI), (policopiado), p.15, Universidade dos Açores, 2008.
(9) Raul Brandão, As lhas Desconhecidas, notas e paisagem, p. 66, 3ª Edição, Livraria Francisco Alves, 1926.
(10) Raul Brandão, As lhas Desconhecidas, notas e paisagem, p. 66, 3ª Edição, Livraria Francisco Alves, 1926.
(11) Diário da República, nº 278, III Série, 30 de Novembro de 2001.
(12) João Carlos Macêdo nasceu na Fajã de Baixo em 17.01.1943. Estudou no ensino primário na freguesia do Livramento. De 1953 a 1959, frequentou a Escola Industrial e Comercial de Ponta Delgada, onde concluiu o Curso de Formação Geral do Comércio. Fez o Curso de Filosofia do Seminário Maior de Angra do Heroísmo. Em 1963, publicou o volume de poemas «Em Comum Com a Noite». Fez o serviço militar em Moçambique como oficial miliciano, ingressando após os eu regresso como técnico do Serviço Nacional de Emprego. Em 1971, figura como co-fundador da Cooperativa Livreira Sextante, extinta administrativamente pelo Ministro do Interior. No mesmo ano concorre, em lista de oposição, ao cargo de Presidente da Junta de Freguesia de Fajã de Baixo, sua terra natal, onde se manteve até 2005, depois de sucessivas reeleições como candidato do Partido Socialista, facto assinalado na toponímia de Fajã de Baixo. Em 1975, foi candidato à Assembleia Constituinte, como independente, em lista do Movimento Democrático Português. Foi deputado regional nas legislaturas de 1984/1988 e de 1996/2000, integrando o Grupo Parlamentar do Partido Socialista e cabendo-lhe, nomeadamente, as iniciativas referentes ao «Dia do Poder Local» e à protecção das estufas de produção de ananás, nomeadamente a que resultou no Decreto Legislativo Regional 22/88/A de 3 de Maio. Na legislatura de 1996/2000, teve várias intervenções sobre a política cultural, o património edificado e a organização arquivística regional e fez parte de uma missão parlamentar que se deslocou às comunidades açorianas do Canadá e Bermudas. Foi agraciado pelo Presidente da República, em 1997, com a insígnia de Oficial da Ordem de Mérito. Foi membro da Mesa do Congresso e do Conselho Geral da Associação Nacional de Freguesias e do Conselho Regional de Concertação Social. É associado do Fórum Açoriano, da Sociedade Afonso de Chaves, do Instituto Açoriano de Cultura, do Instituto Cultural de Ponta Delgada e do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território (Geota). Tomou parte, em Outubro de 2000, no Encontro Nacional de Museologia e Autarquias, na cidade de Santarém. Em Abril de 2001, foi distinguido, pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, com o Diploma de Mérito Municipal. Em Novembro de 2002, presidiu à Comissão Organizadora da Semana Cultural do Ananás. Em Maio de 2003, tomou parte, como conferencista, no Seminário Luso-Espanhol sobre po Desenvolvimento das Regiões Desfavorecidas no Contexto da Globalização, promovido pelo Centro de Estudos para o Desenvolvimento Regional e Local. Exerce actualmente o cargo de Juiz Social no Tribunal de Família e Menores de Ponta Delgada. Em 2006, fundou, com alguns amigos, a Part’Ilha – Associação de Cultura e Desenvolvimento Local, AC, que publica um boletim mensal e tem como objectivo mais visível a criação de um Centro Interpretativo da Cultura do Ananás nas antigas instalações da Casa do Povo da Fajã de Baixo. É o 1º Confrade Honorário da Confraria do Ananás.
(13) Vitorino Nemésio, Primeiro Corso, pp.52-53, Printer Portuguesa, Lisboa, 1996.

Luís Jaime do Couto Linhares de Deus
ANANÁS DE SÃO MIGUEL, 145 Anos de luta.
Sua importância para a economia e sociedade micaelense
Fajã de Baixo, 2013.

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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/04/11/ananas.aspx]

sexta-feira, 22 de março de 2013

EPIDAURO (Sophia de Mello Breyner Andresen)




EPIDAURO

O cardo floresce na claridade do dia. Na doçura do dia se abre o figo. Eis o país do exterior onde cada coisa é:

     trazida à luz
     trazida à liberdade da luz
     trazida ao espanto da luz


Eis-me vestida de sol e de silêncio. Gritei para destruir o Minotauro e o palácio. Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele é insaciável. Ele come dia após dia os anos da nossa vida. Bebe o sacrifício sangrento dos nossos dias. Come o sabor do nosso pão a nossa alegria do mar. Pode ser que tome a forma de um polvo como nos vasos de Cnossos. Então dirá que é o abismo do mar e a multiplicidade do real. Então dirá que é duplo. Que pode tornar-se pedra com a pedra alga com a alga. Que pode dobrar-se que pode desdobrar-se. Que os seus braços rodeiam. Que é circular. Mas de súbito verás que é um homem que traz em si próprio a violência do toiro.

Só poderás ser liberta aqui na manhã d’Epidauro. Onde o ar toca o teu rosto para te reconhecer e a doçura da luz te parece imortal. A tua voz subirá sozinha as escadas de pedra pálida. E ao teu encontro regressará a teoria ordenada das sílabas — portadoras limpas da serenidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Geografia, 1967

Teatro de Epidauro

Na sua Obra poética, a escritora oferece indícios de que é na declamação, ou na leitura que nos penetra os ouvidos, que reside a “sorte de conhecer o poema”, estando também presente o aprendizado da sílaba e o da poesia de Sophia: “A tua voz subirá sozinha as escadas de pedra pálida. E ao teu encontro regressará a teoria ordenada das sílabas – portadoras limpas da serenidade” (ANDRESEN, 1991b, p. 65). A presença de um princípio teórico em Sophia de Mello Breyner Andresen expressa-se, no poema “Epidauro”, retirado da obra Geografia (1967), através de uma “teoria ordenada das sílabas”, articulada com uma linguagem rica em símbolos da Antiguidade clássica, dado que se estabelece em relação ao título do poema e à presença de certas evocações da cultura grega ao longo do discurso. Segundo Alfredo Bosi (2000), a concepção de som no poema pode ser associada à voz: “a voz abre caminho para que se dê uma nova presença dos seres: a re-presentação do mundo sob as espécies de significados que o espírito descola do objeto. A voz produz, no lugar da coisa, um fantasma sonoro, a palavra” (BOSI, 2000, p. 72). A palavra tem um sentido de voz na poesia de Andresen, conforme a escritora informa aos leitores no trecho final em “Arte Poética V”:

 

Tempos depois, escrevi estes três versos:

 

A voz sobe os últimos degraus

Oiço a palavra alada impessoal

Que reconheço por não ser já minha.

 

Essa palavra, representada na voz desprendida do sujeito lírico, que sobe sozinha as escadas no antigo teatro, chama atenção para os primeiros conceitos de poesia lírica no mundo antigo, para os conceitos de som, de metro e de ritmo, para a concepção de movimento, dos quais a lírica de Sophia pode tomar corpo: “Só poderás ser liberta aqui na manhã d’Epidauro” (ANDRESEN, 1991b, p. 65). Por outro lado, as sílabas “portadoras limpas da serenidade” também fazem alusão à poesia produzida pelos gregos, cuja técnica utilizava um sistema quantitativo para medir os versos pela unidade de tempo, já que, por meio delas, é possível conhecer a alternância entre sons fortes e fracos, podendo-se sentir a cadência do verso e estabelecer um sentido. O ensinamento sobre uso da voz e o recebimento de uma teoria das sílabas aproximam-se da concepção da arte como inspiração das musas, representada na voz alta e livre, destinada a um público, uma arte produzida para uma ocasião de recitação e de performance, de interiorização e de exteriorização, como ressalta Johannes Pfeiffer (1966):

 

[...] o metro é o exterior e o ritmo o interior; o metro é a regra abstrata, o ritmo a vibração que confere vida; o metro é o Sempre, o ritmo o Aqui e o Hoje; o metro é a medida transferível, o ritmo é animação intransferível e incomensurável (PFEIFFER, 1966, p. 18, apud CHOCIAY, 1974, p. 3).

 

Na Obra poética, o metro e o ritmo são analisados e entendidos como a música da poesia, pois se manifestam em um arranjo de sons, em uma melodia de sílabas átonas e de sílabas tônicas, para representar a visão de mundo da escritora, como assinala Sophia Andresen em “Arte poética II”, do livro Geografia (1967), para alertar o leitor acerca da questão: “Se um poeta diz ‘obscuro’, ‘amplo’, ‘barco’, ‘pedra’, é porque estas palavras nomeiam a sua visão de mundo, a ligação com a coisas” (ANDRESEN, 1991b, p. 96).

Rosa Maria Martelo (2005, p. 61) considera que é uma característica da poesia de Andresen traçar uma sequência organizada de sons, salientando que essa teoria não implica a assimilação tradicional de um sistema, nem pode ser compreendida como algo imposto ao poema, mas refere-se a uma peregrinação ou um desfile solene. Segundo a pesquisadora, é importante compreender o pensamento da escritora, quando ela procura demonstrar a teoria através da distinção entre declamar e ouvir. Nesse sentido, Sophia Andresen enfatiza o valor atribuído ao som produzido no anfiteatro de Epidauro para sua criação poética, conforme pode ser analisado no trecho final do texto “Arte poética V”: “Um dia em Epidauro – aproveitando o sossego deixado pelo horário de almoço dos turistas – coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz livre, desligada de mim” (ANDRESEN, 1991b, p. 349, apud MARTELO, 2005, p. 61). No Epidauro está “a teoria ordenada das sílabas”, que é revelada não só na audição de sons dos fonemas, mas, principalmente, na relação dos sons entre si, que se ordenam ou se organizam, com o fim de mostrar um sentido ao leitor. Este pode ser percebido verso a verso, na repetição de sílabas e no interior dos versos, sendo preciso ainda comparar suas repetições e suas variações, para melhor compreender os diferentes significados do texto poético: “trazida à luz/ trazida à liberdade da luz/ trazida ao espanto da luz” (ANDRESEN, 1991b, p. 65).

A Poética Musical de Sophia de Mello Breyner Andresen, Karoline Pereira. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2021


sporadicq:  Minotaur in Labyrinth, Roman mosaic at Conímbriga, Portugal.:
Minotauro, Conimbriga


“…sob os muros de Cnossos”: o Minotauro e o labirinto 

Como é sabido, o Minotauro era um monstro com cabeça de touro e corpo de homem, fruto da relação entre a mulher do rei Minos, Pasifae, com um touro; a criatura foi encerrada num labirinto construído por Dédalo, e todos os anos sete jovens e sete donzelas eram trazidas de Atenas para que o monstro as devorasse; mais tarde, com a ajuda de Ariadne, o Minotauro seria morto pelo herói Teseu (Grimal, 1999: 314). Este mito interessa particularmente a Sophia e, num poema em prosa de Geografia intitulado “Epidauro”, o sujeito poético, que parece identificar-se com a autora (reparese no feminino “vestida”) assume-se como uma espécie de Teseu (“Gritei para destruir o Minotauro”), procurando vencer o monstro não através da espada, mas da representação:

 

(…) Eis-me vestida de sol e de silêncio. Gritei para destruir o Minotauro e o palácio. Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele é insaciável. Ele come dia após dia os anos da nossa vida. Bebe o sacrifício sangrento dos nossos dias. Come o sabor do nosso pão a nossa alegria do mar. Pode ser que tome a forma de um polvo como nos vasos de Cnossos. Então dirá que é o abismo do mar e a multiplicidade do real. Então dirá que é duplo. Que pode tornar-se pedra com a pedra alga com a alga. Que pode dobrar-se que pode desdobrar-se. Que os seus braços rodeiam. Que é circular. Mas de súbito verás que é um homem que traz em si próprio a violência do toiro. (…) (Andresen, 1996: 65).

 

O Minotauro simboliza o medo, que é vencido quando representado; e daí o título do poema, Epidauro, o mais famoso dos teatros gregos. Assim se retoma o tema da origem do género trágico, bem explicada por Friedrich Nietzsche (1844-1900) no seu famoso ensaio O nascimento da tragédia, de 1872. Aí, o autor refere que a Grécia Antiga não era só feita de claridade apolínea, mas também de força dionisíaca, e explica como ambas se conjugaram para dar origem à tragédia. Sophia, no ensaio O Nu na Antiguidade Clássica, torna muito clara essa relação:

 

O espírito apolíneo aparece sempre conjugado com a força dionisíaca. (...) A claridade grega é uma claridade que reconhece a treva e a enfrenta. A claridade daqueles que interrogam a esfinge e que penetram no labirinto para combater a escuridão e a violência do toiro. Os Gregos inventam a tragédia porque sabem que a treva existe e a interrogam e a enfrentam (Andresen, 1992: 23).

 

No poema acima transcrito, o medo constante (“come dia após dia os anos da nossa vida”), que também pode ser simbolizado por um “polvo” rodeando o homem por todos os lados, é infundido, conclui Sophia, não tanto pelos monstros exteriores ao homem mas pelos seus próprios labirintos interiores e pela violência com que trata o seu semelhante – “é um homem que traz em si próprio a violência do toiro”. Assim, a representação do medo, através da tragédia, foi um excelente método para o exorcizar, como constatamos num outro poema de Dual, intitulado “O poeta trágico”:

No princípio era o labirinto

O secreto palácio do terror calado

Ele trouxe para o exterior o medo

Disse-o na lisura dos pátios no quadrado

De sol de nudez e de confronto

Expôs o medo como um toiro debelado

                               (Andresen 2004: 60)

 


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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Poema destinado a haver domingo (Natália Correia)


Helena Oliveira: Voz
Natália Correia: Poema 
Aníbal Raposo: Música
Carlos Frazão: Arranjo e Piano
Joaquim Teles (Quiné): Bateria
Manuel Rocha: Violinos
Mike Ross: Contrabaixo (2007)
            
            
          
          
            
          
POEMA DESTINADO A HAVER DOMINGO

Bastam-me as cinco pontas de uma estrela
E a cor dum navio em movimento.
E como ave, ficar parada a vê-la
E como flor, qualquer odor no vento.

Basta-me a lua ter aqui deixado
Um luminoso fio do cabelo
Para levar o céu todo enrolado
Na discreta ambição do meu novelo.

Só há espigas a crescer comigo
Numa seara para passear a pé
Esta distância achada pelo trigo
Que me dá só o pão daquilo que é.

Deixem ao dia a cama de um domingo
Para deitar um lírio que lhe sobre.
E a tarde cor-de-rosa de um flamingo
Seja o tecto da casa que me cobre

Baste o que o tempo traz na sua anilha
Como uma rosa traz Abril no seio.
E que o mar dê o fruto duma ilha 
Onde o Amor por fim tenha recreio.
         
Natália CorreiaPassaporte. Lisboa, Ed. Gráf. Portuguesa, 1958
         


       
LINHAS DE LEITURA
        
“E que o mar dê o fruto duma ilha 
Onde o Amor por fim tenha recreio.”
Na Ilha de Natália, assim como numa certa Ilha referenciada em Os Lusíadas,habita o Amor.
“De longe a Ilha viram fresca e bela,
Que Vénus pelas ondas lha levava
(Bem como o vento leva branca vela)
Para onde a forte armada se enxergava;
[…]” (IX, 52, 1-4)
Repare-se em certos sentidos que ambos os poemas comungam:
‑ No poema de Natália, o campo lexical de “navegação” comunica com o de Camões: “estrela”, “navio em movimento”, “ave”, “vê-la” (parónimo de vela de uma embarcação), “vento”, “céu”, “mar”, “ilha”.
‑ O ponto de ancoragem é comum: uma ilha onde se recreia o Amor: a formosa ilha alegre e deleitosa” (IX, 54, 4), onde “Vénus com prazeres inflamava” (IX, 83, 6).
A Ilha de Natália, “Onde o Amor por fim tenha recreio”, é vista como um “fruto”, uma compensação (“por fim”) desejada.
Num domingo, normalmente destinado a relaxar (v.13), a poetisa mostra-se confiante no devir (“Baste o que o tempo traz na sua anilha”, v. 17), de modo que assim “Como uma rosa traz Abril no seio” (v.18) também ela antevê o seu fruto merecido: a ilha (mitificada no ideário de Natália Correia).
O eu poético está consciente do aqui e agora do poema: “Na discreta ambição do meu novelo // Só há espigas a crescer comigo” (vv. 8-9). Repare-se no estado de introspeção e ensimesmamento (“meu novelo”, “crescer comigo”) que leva a poetisa a desejar evadir-se com o mínimo de estímulos externos: “Bastam-me as cinco pontas de uma estrela /E a cor dum navio em movimento” (vv. 1-2), “Basta-me a lua ter aqui deixado / Um luminoso fio do cabelo” (vv. 5-6); “Baste o que o tempo traz na sua anilha” (v.17): “o fruto duma ilha” (v. 19).
Para enriquecer esta leitura, proponho ao leitor que proceda à interpretação de marcas espiritualistas no poema de Natália Correia. (Sugiro também como leitura extensiva os estudos sobre os valores espiritualistas portugueses e a sua tradução na cultura portuguesa com incidência no culto do Espírito Santo.)

José Carreiro, “Poema destinado a haver domingo (Natália Correia)” in Folha de Poesia, 2013-02-04, <https://folhadepoesia.blogspot.com/2013/02/poema-destinado-haver-domingo-natalia.html>

         
NATÁLIA CORREIA (Furnas, 1975)
in Retratos de Família, Ana Isabel Serpa, Ângela Furtado Brum, Eduarda Silva Melo,
José Maria de Aguiar Carreiro, Mário Félix do Couto,
Ponta Delgada, Escola Secundária Domingos Rebelo, 2008
   

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 O panteísmo pentecostal de Natália Correia e o culto do Espírito Santo nos Açores: análise de um inédito, Ângela Almeida, 2005. (Tese de doutoramento apresentada no Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade de Lisboa) 





[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/02/04/PoemaDestinadoAHaverDomingo.aspx]