domingo, 15 de novembro de 2015

Amo como o amor ama, Fernando Pessoa



Fernando Pessoa conheceu a impossibilidade do amor mas viveu-o no papel, “de todas as formas possíveis e imaginárias”. O romantismo confessado em “cartas de amor ridículas” a Ophélia, o seu “bebé pequenininho”, terá ficado platónico. A imagem de um Pessoa apaixonado, sedutor, dilui-se no retrato oficial do homem quase sempre vestido de escuro, de chapéu ligeiramente amachucado, óculos redondos de lentes grossas, reservado, tímido e solitário.
Magazine Cultural, Filbox produções, 2014.



Fernando Pessoa

MARIA: Amo como o amor ama.

                MARIA:
Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Não procures no meu coração...
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Quando há amor a gente não conversa:
Ama-se, e fala-se para se sentir.
Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,
Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.
Mas tu dizes palavras com sentido,
E esqueces-te de mim; mesmo que fales
Só de mim, não te lembras que eu te amo.
Ah, não perguntes nada, antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse toda com o coração.
Se te vejo não sei quem sou; eu amo.
Se me faltas, (...)
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas
Quando deves amar-me. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
O Alguém pra te falar de quem tu amas.
Diz-me porque é que o amor te faz ser triste?
Canso-te? Posso eu cansar-te se amas?
Ninguém no mundo amou como tu amas.
Sinto que me amas, mas que a nada amas,
E não sei compreender isto que sinto.
Dize-me qualquer palavra mais sentida
Que essas palavras que, como se as perderas,
                                                               buscas
E encontras cinzas.
Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há coisa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que não o fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro,
E com essas alegrias e esse prazer
Eu viria depois a amar-te. Quando,
Criança, eu, se brincava a ter marido,
Me faltava crescer e o não sentia,
O que me satisfazia eras já tu,
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma estrada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo
De ti, quando m'o digas com a alma.
Em palavras estranhas que m'o fales,
Eu compreenderei só porque te amo.
Se o teu segredo é triste, eu saberei
Chorar contigo até que o esqueças todo.
Se o não podes dizer, dize que me amas,
E eu sentirei sem qu'rer o teu segredo.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já hoje, mas de longe,
Como as coisas se podem ver de longe,
E ser-se feliz só por se pensar
Em chegar onde ainda se não chega.
Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!
                FAUSTO:
Compreendo-te tanto que não sinto.
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?
                MARIA:
Para que queres compreender
Se dizes qu'rer sentir?
s.d.
Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.
  - 99.
1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.126).





Fernando Pessoa

Amei-te e por te amar

Amei-te e por te amar
Só a ti eu não via...
Eras o céu e o mar,
Eras a noite e o dia...
Só quando te perdi
É que eu te conheci...
Quando te tinha diante
Do meu olhar submerso
Não eras minha amante...
Eras o Universo...
Agora que te não tenho,
És só do teu tamanho.
Estavas-me longe na alma,
Por isso eu não te via...
Presença em mim tão calma,
Que eu a não sentia.
Só quando meu ser te perdeu
Vi que não eras eu.
Não sei o que eras. Creio
Que o meu modo de olhar,
Meu sentir meu anseio
Meu jeito de pensar...
Eras minha alma, fora
Do Lugar e da Hora...
Hoje eu busco-te e choro
Por te poder achar
Não sequer te memoro
Como te tive a amar...
Nem foste um sonho meu...
Porque te choro eu?
Não sei... Perdi-te, e és hoje
Real no [...] real...
Como a hora que foge,
Foges e tudo é igual
A si-próprio e é tão triste
O que vejo que existe.
Em que és [...J fictício,
Em que tempo parado
Foste o (...) cilício
Que quando em fé fechado
Não sentia e hoje sinto
Que acordo e não me minto...
[...] tuas mãos, contudo,
Sinto nas minhas mãos,
Nosso olhar fixo e mudo
Quantos momentos vãos
Pra além de nós viveu
Nem nosso, teu ou meu...
Quantas vezes sentimos
Alma nosso contacto
Quantas vezes seguimos
Pelo caminho abstracto
Que vai entre alma e alma…
Horas de inquieta calma!
E hoje pergunto em mim
Quem foi que amei, beijei
Com quem perdi o fim
Aos sonhos que sonhei…
Procuro-te e nem vejo
O meu próprio desejo…
Que foi real em nós?
Que houve em nós de sonho?
De que Nós fomos de que voz
O duplo eco risonho
Que unidade tivemos?
O que foi que perdemos?
Nós não sonhámos. Eras
Real e eu era real.
Tuas mãos — tão sinceras…
Meu gesto — tão leal...
Tu e eu lado a lado...
Isto... e isto acabado...
Como houve em nós amor
E deixou de o haver?
Sei que hoje é vaga dor
O que era então prazer...
Mas não sei que passou
Por nós e acordou...
Amámo-nos deveras?
Amamo-nos ainda?
Se penso vejo que eras
A mesma que és... E finda
Tudo o que foi o amor;
Assim quase sem dor.
Sem dor... Um pasmo vago
De ter havido amar...
Quase que me embriago
De mal poder pensar...
O que mudou e onde?
O que é que em nós se esconde?
Talvez sintas como eu
E não saibas sentil-o...
Ser é ser nosso véu
Amar é encobril-o,
Hoje que te deixei
É que sei que te amei...
Somos a nossa bruma…
É pra dentro que vemos...
Caem-nos uma a uma
As compreensões que temos
E ficamos no frio
Do Universo vazio...
Que importa? Se o que foi
Entre nós foi amor,
Se por te amar me dói
Já não te amar, e a dor
Tem um íntimo sentido,
Nada será perdido...
E além de nós, no Agora
Que não nos tem por véus
Viveremos a Hora
Virados para Deus
E n'um (...) mudo
Compreenderemos tudo.
2-12-1913
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
  - 11.



Fernando Pessoa

O amor, quando se revela,

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
1928
Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). 
 - 92.


Bernardo Soares

Todo o homem de hoje, em quem a estatura moral...

L. do D.
Todo o homem de hoje, em quem a estatura moral e o relevo intelectual não sejam de pigmeu ou de charro, ama, quando ama, com o amor romântico. O amor romântico é um produto extremo de séculos sobre séculos de influência cristã; e, tanto quanto à sua substância, como quanto à sequência do seu desenvolvimento, pode ser dado a conhecer a quem não o perceba comparando-o com uma veste, ou traje, que a alma ou a imaginação fabriquem para com ele vestir as criaturas, que acaso apareçam, e o espírito ache que lhes cabe.
Mas todo o traje, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e em breve, sob a veste do ideal que formámos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em quem o vestimos.
O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão. Só o não é quando a desilusão, aceite desde o princípio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se renove o aspecto da criatura, por eles vestida.
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 267.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.


Bernardo Soares

ESTÉTICA DO ARTIFÍCIO

L. do D.
ESTÉTICA DO ARTIFÍCIO
A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um grande amor nunca o poderia contar.
Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia a meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir é — crede-me bem — para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas — onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza.
Penso às vezes no belo que seria poder, unificando os meus sonhos, criar-me uma vida contínua, sucedendo-se, dentro do decorrer de dias inteiros, com convivas imaginários com gente criada, e ir vivendo, sofrendo, gozando essa vida falsa. Ali me aconteceriam desgraças; grandes alegrias ali cairiam sobre mim. E nada de mim seria real. Mas teria tudo uma lógica soberba, séria, seria tudo segundo um ritmo de voluptuosa falsidade, passando tudo numa cidade feita da minha alma, perdida até [o] cais à beira de um comboio calmo, muito longe dentro de mim, muito longe... E tudo nítido, inevitável, como na vida exterior, mas, estética de Morte do Sol.
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 204.
"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.



Bernardo Soares

Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras...

L. do D.
Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras (...)
Mero perfil às vezes, mera atitude outras vezes, outras gesto lento apenas — és momentos, atitudes, espiritualizadas em minha(s).
Nenhum fascínio do sexo se subentende no meu sonhar-te, sob a tua veste vaga de madona dos silêncios interiores. Os teus seios não são dos que se pudesse pensar em beijar-se. O teu corpo é todo ele carne-alma, mas não é alma é corpo. A matéria da tua carne não é
espiritual mas é espiritualidade (És a mulher anterior à Queda) […]
O meu horror às mulheres reais que têm sexo é a estrada por onde eu fui ao teu encontro. As da terra, que para serem (...) têm de suportar o peso movediço de um homem — quem as pode amar, que não se lhe desfolhe o amor na antevisão do prazer que serve o sexo […]? Quem pode respeitar a Esposa sem ter de pensar que ela é uma mulher noutra posição de cópula... Quem não se enoja de ter mãe por ter sido tão vulvar na sua origem, tão nojentamente parido? Que nojo de nós não punge a ideia da origem carnal da nossa alma — daquele inquieto (...) corpóreo de onde a nossa carne nasce e, por bela que seja, se desfeia de origem e se nos enoja de nata.
Os idealistas falsos da vida real fazem versos à Esposa, ajoelham à ideia de Mãe... O seu idealismo é uma veste que tapa, não é um sonho que crie.
Pura só tu, Senhora dos Sonhos, que eu posso conceber amante sem conceber mácula porque és irreal. A ti posso-te conceber mãe, adorando-o, porque nunca te manchaste nem do horror de seres fecundada, nem do horror de parires.
Como não te adorar se só tu és adorável? Como não te amar se só tu és digna do amor?
Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás minha ali, num outro e puro mundo onde sem corpo táctil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse(s)? Quem sabe mesmo se não existias já e não te criei nem te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo? Quem sabe se o meu sonhar-te não foi o encontrar-te simplesmente, se o meu amar-te não foi o pensar-em-ti, se o meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amor não foram a obscura ânsia com que, ignorando-te, te esperava, e a vaga aspiração com que, desconhecendo-te, te queria?
Não sei mesmo já [se] não te amei já, num vago onde cuja saudade este meu tédio perene talvez seja. Talvez sejas uma saudade minha, corpo de ausência, presença de Distância, fêmea talvez por outras razões que não as de sê-lo.
Posso pensar-te virgem e também mãe porque não és deste mundo. A criança que tens nos braços nunca foi mais nova para que houvesses de a sujar de a ter no ventre. Nunca foste outra do que és e como não seres virgem portanto? Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.
Sê o Dia Eterno e que os meus poentes sejam raios do teu sol, possuídos em ti!
Sê o Crepúsculo Invisível e que as minhas ânsias e desassossegos sejam as tintas da tua indecisão, as sombras da tua incerteza.
Sê a Noite-Total, torna-te a Noite Única e que todo eu me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem, estrelas, no teu corpo de distância e negação...
Seja eu as dobras do teu manto, as jóias da tua tiarae o ouro outro dos anéis dos teus dedos.
Cinza na tua lareira, que importa que eu seja pó? Janela no teu quarto que importa que eu seja espaço? Hora (...) na tua clepsidra que importa que eu passe se por ser teu ficarei, que eu morra se por ser teu não morrer, que eu te perca se o perder-te é encontrar-te?
Realizadora dos absurdos, seguidora [?] de frases sem nexo. Que o teu silêncio me embale, que a tua (...) me adormeça, que o teu mero ser me acaricie e me amacie e me conforte, ó heráldica do Além, ó imperial de Ausência; Virgo-Mãe de todos os silêncios, Lareira das almas que têm frio, Anjo da guarda dos abandonados, Paisagem humana — irreal [?] de triste e eterna Perfeição.
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 256.
"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

http://arquivopessoa.net/

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 

sábado, 24 de outubro de 2015

Antipoemas de Daniel de Sá











Na próxima terça-feira, dia 27, pelas 19h30, vai decorrer na livraria Solmar uma sessão de apresentação de um livro que tem por tema aquele que, histórica e factualmente, é o primeiro livro de Daniel de SáEm Nome do Povo. Amem. O livro a apresentar tem como título Prós sem Contra traduzindo, de alguma forma, com cambiantes várias, o pensamento expresso nos textos de três autores diferentes que dão a sua opinião sobre o livro - Luiz Fagundes Duarte, Sidónio Bettencourt e quem assina estas linhas.
Em relação ao livro do Daniel – Em Nome do Povo. Amem – as considerações de maior interesse com que se pode abordar este livro podem reduzir-se a três.
Em primeiro lugar, não é, não pretendeu ser nunca, um livro de poesia, mas de antipoesia. O seu subtítulo di-lo expressamente   Antipoemas e outras palavras. E coerentemente com isto, em todo o livro, Daniel só usará por duas vezes a palavra poesia, mas sempre no sentido de a menorizar. Numa das vezes, para contrapô-la à prosa nos seguintes termos: “Porque a prosa é a arquitectura e a poesia é o ornato”. E carregará na minimização apodando-a do “belo superficial das coisas essenciais”. Doutra vez, para ironizar com os chavões desse simples ornato que é a poesia. Dirá num parêntese, que isolará o termo do restante texto, como para não o contaminar:
(Na poesia, quando há olhos
E alma,
Há quase sempre abrolhos
E calma).
É de salientar que esta consideração pejorativa desse artifício verbal, deste convencional e estereotipado jogo de consonâncias e rimas será precisamente um dos aspectos fulcrais realçado pela corrente da Antipoesia, nomeadamente do seu principal corifeu – o chileno Nicanor Parra.
Ainda com a mesma coerência, o livro não se compõe de poemas, mas de “Textos” que Daniel cataloga com a aridez pouco poética do número, contabilizando-os tabelionicamente de I a XXV.
A segunda observação a fazer deriva da anterior. Esta detinha-se na forma que assumia nos seus cultores a poesia tradicional. A poesia, segundo Parra tinha de libertar-se dos formalismos useiros e vezeiros da poética tradicional, porque ela já não correspondia às exigências de um mundo, em que a relação com a natureza, como objecto de contemplação, mais ou menos lírico, e a relação com a sociedade se transformara de um mundo de certeza e certezas e de ordem, num mundo de inquietação, dúvida e angústia . E esse mundo, nesta nova desarmonia, reclamava não o lirismo subjectivista, mas o pessimismo, o cepticismo e a crítica sarcástica. Em resumo, a alteração formal pretendia responder às novas exigências de uma alteração de fundo. Este fenómeno de rotura e mudança radical, no caso do Em Nome do Povo. Amem, não será ao nível da relação com a natureza, mas com a história e os acontecimentos dos tempos de então que Daniel vivia no seu quotidiano e revivia nos seus “textos”. A rotura será o abalo social e político do “25 de Abril” que exigia também outras formas de abordagem da sociedade e dos acontecimentos. Com este livro, Daniel traduz as etapas de uma ruptura social e política que assumiu, inicialmente, a magia de todas as mudanças radicais num contexto adverso e contraditório. Penso que poucos autores, em Portugal, terão traduzido como Daniel com vestes de antipoesia, ou mesmo de poesia, as vicissitudes, as contingências, a ambivalência, os avanços e recuos do chamado “PREC” e de todas as transformações ansiadas e sonhadas no 25 de Abril.
Todo o livro capta em cheio este sinuoso contexto e percurso sequente ao 25 de Abril de 74.
Apenas um exemplo a ilustrar o que fica dito:
“Achou-se que era velho demais um velho Estado Novo
E descobriu-se que um estado é a voz do povo.
E houve a sublime certeza
De que é o povo quem manda,
Sem clero nem nobreza.
Mas é com estes ainda que tudo anda”.
Finalmente, o terceiro aspecto. Trata-se de um livro que o Daniel retirou da sua bibliografia. Não creio que o tenha renegado, mas sem dúvida que o enjeitou.
Que alcance e significado se deve retirar desse facto? Em primeiro lugar, enquadrá-lo nos numerosíssimos exemplos de rejeições das suas Juvenílias ou primeiras obras por muitos autores. Desde Virgílio, que tentou queimar a Eneida por duas vezes, até autores que, em alguns casos, já depois de publicada a obra, tentarão fazê-la desaparecer, como Nathaniel Hawthorne, celebrado autor do século XIX com a sua Letra Escarlate, ou ainda como Vitorino Nemésio que “enjeitou” a sua obra de estreia. Em segundo lugar, que, na sua maturidade, e depois da sua evolução até à plena posse de todos os seus recursos de conteúdo e expressão, muitos autores tendem a condenar ao limbo obras de estreia que a seus olhos apenas sobressaem pelas insuficiências ou imperfeições.

Dionísio Sousa, 22.10.2015 (23h41).
“Daniel de Sá - o único grande nome da antipoesia na literatura açoriana”,
Correio dos Açores, Ano 96, n.º 30766, 2015-10-24








Poderá também gostar de:



O homem que escreveu uma carta de amor auma ilha”, Azorean Spirit Magazine – SATA Magazine n.º 58, 20 outubro / 20 dezembro 2013.

Verbete “Sá, Daniel Augusto Raposo de”, Enciclopédia Açoriana [em linha].