ROSA PARKS:
A ROSA NEGRA NORTE-AMERICANA
Quando Rosa nasceu, pensou que o
faria, apenas, daquela vez. Mas Rosa não sabia que estava destinada a renascer.
E foi isto o que Rosa fez. Quando nasceu pela primeira vez, estava em Tuskegge,
Alabama, sul dos Estados Unidos e, naquele dia, 4 de fevereiro de 1913, a
menina franzina, quase um nada na mão da parteira, foi batizada Rosa Louise
McCauley.
Era negra; no sul dos Estados Unidos.
Aí começava toda a diferença. Foi assim que a angústia pela falta de respostas
às suas dúvidas tomou conta da vida de Rosa. Por que ela não podia brincar com
meninas brancas? Por que não podia sentar em qualquer banco, mesmo quando este
estava vazio? Por que não podia estudar na escola que quisesse? Por que não
podia ir sozinha à padaria? Por que os brancos estupravam e, às vezes, até
matavam, as meninas negras que assim o faziam?
Mais ainda: por que seus pais ficavam
de cabeça baixa quando um branco passava? Por que não podiam andar na calçada
quando fora do bairro em que moravam? Por que não podiam ir ao bairro, ou ao
bar, ou ao baile, ou ao banheiro que quisessem, ou conviver com gente preta
fora de onde eles, também pretos, moravam com outros pretos?
Além disto, havia Malcom X
vociferando contra os brancos. Havia os Panteras Negras vociferando contra os
brancos, enquanto Billie Holiday, chorando, cantava Strange Fruit, porque
estranhos eram os frutos negros que apareciam pendurados, enforcados, nos
galhos das árvores dos caminhos por onde passavam. Por quê?
Sem respostas, as perguntas apenas
aumentavam a angústia de Rosa. Já não mais menina. Mas ainda negra. Ainda
morando no sul do país norte-americano, o que fazia toda a diferença.
Rosa, agora moça, 19 anos, era
costureira e, morando em Montgomery, capital do estado do Alabama, estava
casada com Raymond Parks, membro ativo da NAACP – associação que combatia as
chamadas Leis Jim Crow, que privavam os negros dos direitos civis.
Esta a associação que havia sido
fundada em 1910, ano do centenário de Lincoln, ex-presidente norte-americano
que promoveu a abolição da escravatura naquele país e que, talvez por isto,
tenha-se tornado o primeiro grande mártir da discriminação racial, visto que
assassinado em 15 de abril de 1865, enquanto assistia a uma peça de teatro.
Pois bem: com esta convivência, Rosa
somente ampliou suas angústias, porque não obtinha respostas para a manutenção
da violenta segregação. E essas angústias só aumentavam seu cansaço, posto que
potencializavam o desgaste físico, resultado das horas seguidas frente à máquina
de costura.
Naquele 1.º de dezembro em que Rosa,
angustiada e cansada, voltava para casa, apenas seu corpo buscava descanso,
porque a mente, desgastada, lhe toldava o pensamento enquanto a atenção, nos
olhos baços, se esvaía.
O ano era 1955 e Rosa estava sentada
na primeira fila da seção dos fundos do ônibus em que sempre viajava na volta
para casa, conforme determinavam as famigeradas Jim Crow que, desde 1900,
segregavam negros e brancos no transporte público, sendo a estes reservada a
parte da frente do coletivo.
Foi quando, um pouco à frente, o
ônibus parou; três brancos entraram; não havia lugar para sentarem; o motorista
decidiu resolver a questão, colocando o início da seção dos negros uma fileira
para trás.
Os negros que se sentavam à esquerda
de Rosa, percebendo que sua fileira, agora, estava reservada aos brancos,
levantaram-se. Assim também o companheiro de Rosa que, sentado à janela,
deixou seu lugar vazio. Ela, distraída, com a atenção toda voltada às suas
angústias, talvez nem tenha notado que o motorista havia modificado o início da
seção destinada à negritude. Rosa apenas ocupou o lugar, à janela, que seu ex-companheiro
de banco havia deixado vago.
Foi quando aquela Rosa, a da angústia
e do cansaço, começou a morrer. Porque, naquele exato momento, nova Rosa
resolveu renascer em seu lugar. Assim se deu o fato: ao perceber que Rosa não
havia-se levantado, o branco que estava, em pé, a seu lado, preferiu permanecer
em pé, porque não se via maculando sua brancura sentando-se ao lado de uma negra.
Diante do fato James F. Blake, o
motorista, cumprindo com seu dever de botar ordem na viagem, dirigiu-se a Rosa
e, acintosamente, lhe perguntou:
– Por que você não se levanta?
– Eu não deveria ter que me levantar
– respondeu ela, com o corpo “tomado por uma determinação que a envolvia como
uma colcha numa noite de frio”, segundo declarou, tempos depois.
Era a angústia de Rosa que se
materializava, trocando o cansaço pela raiva, a impotência pelo desafio, a
exigir, apenas, justiça. Mas, não eram justas, para os negros, as leis do sul
dos Estados Unidos, onde ser negro, naquele ambiente racista, fazia toda a
diferença. Por isto, Blake resolveu chamar a polícia.
– Por que vocês mexem com a gente
assim? – Rosa perguntou.
– Eu não sei – disse o policial – mas
é a lei. E você está presa.
Porém preso foi, apenas, o corpo
cansado de Rosa. Aquele corpo cansado, cansado de tanto trabalho, de tanta
humilhação, de tantas dúvidas. De tantas angústias. Solto e gestado naquela
cela, que serviu de útero frio para o novo corpo, altivo, que deixava morta
toda a humilhação de, apenas, ser negra, nasceu o novo espírito de Rosa. Da
nova Rosa.
Da militante. Daquela Rosa Parks que
acenderia o pavio da vela que pôs fogo na tocha que incendiou o farol do sonho
de Martin Luther King, que iluminaria, ofuscando, a Washington que, oito anos
depois, viu tantos negros a invadirem em 28 de agosto de 1963.
Era Rosa a primeira parte do sofrido
parto que Kennedy depois faria. Do parto tirado a fórceps e sem anestesia, que
foi a luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos. O efetivo parto
desta nova Rosa deu-se pelas mãos da sede local da NAACP, que pagou a fiança e
a libertou. Então, a partir daquele momento, a revolta e a indignação tomaram
conta do povo negro da cidade de Montgomery, Alabama, sul dos Estados Unidos. O
que fazia toda a diferença.
Foi Martin Luther King, o pastor
pacifista negro norte-americano quem tomou a frente da luta e, como Gandhi, não
propôs qualquer ação violenta: apenas sugeriu que o povo preto escancarasse seu
inconformismo diante de tanta e injustificada discriminação; materializando a
ideia, propôs que os negros não mais se utilizassem do transporte coletivo para
qualquer tipo de locomoção.
O boicote, a partir de então iniciado
sob o incontestável comando de Luther King, retirou, das linhas de ônibus e,
consequentemente, dos cofres da concessionária que explorava este serviço, algo
em torno de 40 mil usuários; e durou mais de um ano: É de se crer que a dor no
bolso fez com que a segregação racial no transporte coletivo de Montgomery
oficialmente cessasse: em 1956, a Suprema Corte americana julgou
inconstitucional a lei que sustentava o abominável costume, transmitindo, aos
negros, a visualização de que o enfrentamento aos efeitos perniciosos das leis
Jim Crow e tudo o que a elas se assemelhasse, era possível.
Foi assim, como efeito direto da ação
de Rosa Parks que a marcha sobre Washington aconteceu, porque, dela, partiu a
argamassa que, batida por King e revirada por Malcolm X e Panteras Negras, foi
assentada por] Kennedy, tornando parte do sonho de King materializado e
possível.
– I have a dream! Mesmo que em
pensamento, quase em uníssono, respondemos:
– So do I, boss! We have the same,
too!
Portanto, há que se reconhecer que
Rosa talvez tenha sido a primeira voz, negra e norteamericana, a dizer:
Yes, we can!
De onde é possível crer que é a voz
de Rosa a que ecoa nas paredes do salão oval da Casa Branca, levando-nos, os
negros, a repetir o mantra.
Yes, we can!
Porém, para Rosa, pouca coisa restou
na continuidade de seus dias: se é verdade que continuou como ativista dos
direitos da negritude, havendo sido honrada por diversos modos, tais como com a
Medalha de Ouro do Congresso, recebida em 1999 das mãos do então presidente
Bill Clinton, onde consta a inscrição “Mãe do Movimento] dos Direitos Civis dos
dias atuais”; de ter sido agraciada pela NAACP em 1979, com a Spingarn Medal, a
mais elevada distinção que esta entidade concede; de ver seu nome batizar
diversos logradouros, e de ter recebido diversas outras honrarias, também é
verdade que precisou mudar-se para Hampton, Virgínia, à vista das constantes
ameaças de morte; depois, para Detroit.
Já viúva e com imensas dificuldades
financeiras, envelhecida e sem qualquer amparo, Rosa foi despejada, em 2002, dez
anos após publicar sua biografia. Só não se tornou indigente e moradora de rua
porque a igreja batista Hartford Memorial a ajudou e, diante da comoção
nacional que a possibilidade de sua redução a pedinte causou, o banco em que
sua casa estava penhorada perdoou sua dívida, permitindo-lhe viver, sem
custos, até o final da vida.
Por fim, já acometida por doenças
mentais, Rosa, em outubro de 2005 e aos 92 anos, deixou o corpo, morto, ser
velado, com honras, pela Guarda Nacional. Mas isto, apenas depois de acender o
pavio da vela que pôs fogo na tocha que incendiou o farol do sonho de Martin
Luther King, que iluminou, ofuscando, a Washington invadida por negros, em 28
de agosto de 1963, quando reivindicaram o reconhecimento de direitos civis para
os negros, o que ecoou e se perpetuou pelo mundo, denunciando a injusta
discriminação racial.
Mas, infelizmente Rosa, atualmente,
além de morta para a vida, apenas perambula, moribunda, pela história.
ROSA
Rosa
How she sat there,
the time right inside a place
so wrong it was ready.
That trim name with
its dream of a bench
to rest on. Her sensible coat.
Doing nothing was the the
doing:
the clean flame of her gaze
carved by a camera flash.
How she stood up
when they bent down to
retrieve
her purse. That courtesy.
POEM INTRODUCTION: In my 1999 book On
the Bus with Rosa Parks in this sequence, the titular sequence, I
speculate not only on Rosa Parks' historic nondoing, her refusing to give up
her seat on the segregated bus in Montgomery, Alabama, 1955, but also speculate
on any moment in history when one is suddenly confronted with a choice what
would one do. (Rita Dove)
EDIÇÃO EXTRA: A CAUSA
VEJA, Abril de 1968
Boicote ao transporte público segregado de uma cidade do
Alabama foi o ponto de partida para solidificar a liderança de
Martin Luther King na causa dos direitos civis nos EUA
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Saboreando a vitória: o pastor Abernathy (à esq.) e King (no segundo banco) num ônibus após o fim da segregação no transporte |
Aos olhos e ouvidos de todo o mundo, a cena de um oceano de pessoas diante do Memorial Lincoln, na marcha de Washington em 1963, e os vibrantes discursos pela harmonia social e econômica nos Estados Unidos são as mais belas lembranças do que a soul force ("força da alma") de Martin Luther King era capaz de realizar. O maior feito de sua trajetória, contudo, é menos simbólico e muito mais prático. Ao lutar até o fim pelo direito de uma mulher negra se manter sentada em um ônibus de uma pequena cidade no Alabama, sem precisar entregar seu lugar a um passageiro branco, o até então desconhecido pastor batista desafiou o estado e conseguiu uma vitória impensável em um país ainda rachado pela segregação. Foi o primeiro passo de uma histórica jornada pela liberdade, que fez de King o grande líder da comunidade negra e um ícone da batalha ideológica pelos direitos civis ao redor do planeta.
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Vitória no tribunal: com a mulher, Coretta, King comemora suspensão de condenação |
Em 1º de dezembro de 1955, a costureira Rosa Parks recusou-se a ceder seu assento (na seção reservada aos negros) a um homem branco em um ônibus municipal de Montgomery, no Alabama, conforme determinavam as leis segregacionistas do estado. Informada pelo motorista que acabaria presa caso não repensasse sua decisão, a mulher de 42 anos preferiu ser levada para a cadeia - e, posteriormente, a julgamento. Sua prisão silenciosa fez o Conselho Político Feminino da cidade propor aos negros da cidade um dia de boicote aos ônibus municipais, na exata data em que Rosa Parks deveria comparecer ao tribunal, 5 de novembro. Sua esdrúxula condenação pelo júri levou à formação imediata da Montgomery Improvement Association (MIA), para coordenar as ações seguintes, incluindo a extensão do boicote e o questionamento legal da constitucionalidade da lei de segregação no transporte público. Para não melindrar nenhum ativista local, a presidência da entidade foi entregue a Martin Luther King, que desembarcara havia pouco na cidade como pastor da Igreja Batista da Avenida Dexter. O líder viu a missão como uma oportunidade de melhorar as relações entre as raças e, por tabela, a situação de Montgomery.
Naquela mesma tarde, King discursou para uma multidão reunida diante da Igreja Batista da Rua Holt, já revelando o poder retórico invejável que o faria célebre. "Quero assegurar a todos que trabalharemos com vontade e determinação para fazer prevalecer a justiça nos ônibus da cidade. Não estamos errados. Se estivermos errados, a Suprema Corte desta nação está errada. Se estivermos errados, a Constituição dos Estados Unidos está errada. Se estivermos errados, Deus Todo-Poderoso está errado." Já nesse primeiro encontro, o pastor pediu um compromisso pela não-violência no protesto, traço que marcaria todas as outras manifestações, assim como os valores da ética cristã propagados por King. Poucos dias depois, a MIA tornou pública suas reivindicações: ocupação dos assentos de acordo com a ordem de chegada do passageiro, motoristas negros em rotas predominantemente negras e tratamento cortês pelos funcionários.
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O estopim: Rosa Parks é detida em 1956 |
Conspiração e multa - A prefeitura de Montgomery não atendeu aos apelos da entidade, que decidiu continuar o boicote. Motoristas de táxi negros organizaram-se para ajudar a comunidade, e foram penalizados pela prefeitura; com isso, organizou-se uma extensa rede de caronas que mobilizou mais de 300 carros. No início de 1956, bombas foram atiradas contra as casas de Martin Luther King e E. D. Nixon, outro líder negro local, sem deixar vítimas. Em fevereiro, invocando uma lei de 1921, que proibia a conspiração contra negócios lícitos, a prefeitura indiciou mais de 80 líderes e participantes do boicote. King foi condenado e teve de pagar uma multa de 500 dólares para evitar um ano de encarceramento. Apesar disso, o boicote continuou, e atraiu a atenção nacional. Pacifistas famosos como Bayard Rustin e Glenn Smiley passaram a aproximar-se de King e apoiar o movimento.
Em 5 de junho de 1956, uma corte federal enfim determinou que a segregação nos ônibus era inconstitucional, decisão ratificada em 13 de novembro pela Suprema Corte. Houve intensa comemoração entre a comunidade negra da cidade, mas a MIA decidiu manter o boicote e o sistema de caronas até que a dessegregação realmente fosse implantada no transporte de Montgomery. Um mês depois, em 20 de dezembro, Martin Luther King anunciou o fim do movimento; no dia seguinte, ele, E. D. Nixon, Glenn Smiley e o pastor Ralph Abernathy embarcaram em um ônibus já integrado. No total, foram 381 dias de boicote, com o apoio de mais de 42.000 negros. Rosa Parks, que no meio do processo perdeu seu emprego numa loja de departamentos, tornou-se alvo de hostilidades de segregacionistas e mudou-se para Detroit em 1957, onde segue envolvida com a causa. Atualmente empregada no gabinete do deputado John Conyers, Rosa, conhecida como a "mãe do movimento pelos direitos civis", perde um de seus principais parceiros, que seguiu pelo resto da vida o lema dos manifestantes: "Melhor andar com dignidade que rodar na humilhação."
http://origin.veja.abril.com.br/historia/morte-martin-luther-king/causa-direitos-civis-onibus-rosa-parks.shtml