O ponto
de encontro para a nossa entrevista foi o Danúbio, o
café-restaurante da Rua Passos Manuel, nascido logo no pós-25 de abril,
contou-nos Adília Lopes, que já nos esperava quando chegámos, pelo menos vinte
minutos mais cedo do que o combinado. Levámos perguntas e fizemos a entrevista
planeada, mas também aproveitámos para ficar a conversar sobre o bairro, sobre
o próximo livro dedicado a Lucinda, sobre os choupos e as cerejeiras da Rua
José Estêvão, sobre sonhos e pesadelos, e ainda sobre a descaracterização (a
falta daqueles espelhos!) da pastelaria Tarantela (agora com
filas de pré-pagamento que dão para a rua) e sobre comer bons bolos antes de
apreciar a beleza das catedrais.
Jogos
Florais: Adília ou Maria José?
Adília
Lopes: Adília, porque é as poesias, não é?
JF: Poeta
ou poetisa?
AL: Poetisa.
JF: Porquê?
AL: Porque
a palavra existe em português e é o feminino.
JF: Gosta
de poesia?
AL: [risos]
Às vezes não gosto, às vezes não gosto...
JF: Isto
assumindo que um escritor, uma poetisa, neste caso, gosta do que faz...
AL: Eu
gosto muito de poesia quando é boa poesia, quando... Muitas vezes lêem-se
livros maus, e eu também escrevi poemas maus, e há coisas más. Mas, por
exemplo, ontem li um livro do Frederico Lourenço de que gostei muito, Santo
Asinha e outros poemas, e fiquei muito contente por ler um livro tão bom.
Às vezes lê-se um poema, leio um poema que acho muito bom e fico contente com
isso. Mas há muitas coisas de que eu não gosto, claro.
JF: Gosta
mais de escrever poesia do que prosa?
AL: Eu
escrevo versos, não escrevo propriamente parágrafos, isso é uma coisa natural
em mim, não é uma questão de opção, é assim.
JF: Mas
chegou a escrever crónicas...
AL: Sim,
escrevi crónicas, mas acho que não resultaram muito bem, porque não é a minha
maneira de pensar. Eu penso por versos, muito por versos.
JF: Tem
uma rotina diária?
AL: Sim,
tenho hábitos rígidos de ir ao café a tantas horas, de fazer certas coisas
sempre às mesmas horas, sempre da mesma maneira, e depois, como não tenho uma
vida muito fácil... o que consigo fazer é com esforço e então nem sempre consigo
fazer o que quero, não é?, o que gostaria de fazer, e assim nem sempre leio os
livros todos que queria ler, nem sempre escrevo o que queria escrever, é uma
luta, é o que consigo fazer.
JF: Escreve
à mão?
AL: Eu
não tenho computador. Escrevo à mão e à máquina, numa máquina que não é
eléctrica. É uma Olivetti.
JF: De
que cor?
AL: Eu
escolhi a cor, é azul turquesa.
JF: E
não se imagina a escrever a computador?
AL: Eu
já escrevi a computador, mas não gostei... E eu não tenho ninguém que me ajude
com o computador, era eu que me desemburrava sozinha. Se havia algum problema
com o computador, tinha de ir de táxi à loja, não tinha ninguém que me
ajudasse. Eu escrevia a computador as crónicas, numa disquete. Mas o que eu
notei é que escrevia pior, os textos ressentem-se, saem piores.
JF: Mas
porquê? Por ser mais rápido?
AL: Porque
no computador parece tudo muito fácil, sabe bem, a pessoa gosta de estar ali a
dedilhar... Parece fácil, a pessoa está ali a escrever e até dá a ideia de que
a está a escrever um romance. Noutros casos sairá muito bem, no meu não sai. Eu
acho que preciso de tempo e de alguma resistência do material. Sinto isso.
JF: Diga-nos
um poema de que goste muito.
AL: Dos
meus? Ou de outra pessoa? [risos]
JF: Dos
dois. [risos] Na verdade, é a isto que tentamos responder nos Jogos
Florais.
AL: Um poema de que goste
muito... Gosto muito do “Nocturno” de Álcman, do “Nocturno” de Álcman gosto
muito, porque fala dos animais, do sono dos animais, da natureza à noite, que
está em repouso (nem toda está em repouso), mas fala do repouso da natureza, fala
da natureza. E gosto muito desse poema.
POEMA FAVORITO
Álcman, “Nocturno”
Dormem os píncaros das montanhas e as ravinas,
os promontórios e as torrentes,
e todas as raças rastejantes que a terra negra alimenta:
as feras das montanhas e a raça das abelhas
e os monstros nas profundezas do mar purpúreo;
dormem as raças das aves de longas asas.
Poesia Grega. De Álcman a Teócrito, organização, tradução e notas de Frederico Lourenço, Lisboa, Cotovia, 2006.
JF: E
dos seus?
AL: Dos
meus não há um poema de que eu goste assim em especial, mas há dois livros que
eu acho que ficaram bem: O Poeta de Pondichéry, acho que ficou bem
esse livro, e fico muito contente com a edição da Assírio, com as ilustrações
do Pedro Proença, acho que ficou muito bonito; e o livro Manhã,
acho que o livro Manhãtambém saiu bem, correu bem, pronto, foi uma
sorte, correu bem.
JF: Esse
temos aqui para autografar. [risos] Diga-nos um poeta que considere
subvalorizado.
AL: Eu
acho que às vezes o Ruy Belo é subvalorizado. Eu acho o Ruy Belo subvalorizado,
porque as pessoas têm relutância em relação a certas referências religiosas e
assim, e então não o consideram muito ou não o consideram tanto como outros que
eu acho que não são tão bons.
JF: Vamos
ter de fazer uma pergunta irresistível... Acha que há poetas sobrevalorizados?
AL: Acho...
JF: Se
não quiser, não tem de nomear.
AL: Não
queria nomear.
JF: Usa
a poesia no seu dia-a-dia?
AL: Sim,
muitas vezes, há versos de que me lembro, que me vêm à cabeça, não os vou
procurar, eu lembro-me desses versos em várias circunstâncias. Outras vezes,
quando não me sinto bem ou assim, geralmente leio poemas da Sophia de Mello
Breyner. Há poemas, como eu os li quando era muito nova e como gostava daqueles
poemas... Há um poema que leio muito dela, talvez não seja dos melhores poemas
que ela escreveu sobre os quadros da Maria Helena Vieira da Silva, mas é um
poema de que eu gosto que é “Landgrave ou Maria Helena Vieira da Silva”, não
sei se está primeiro o nome do quadro se primeiro o nome da pintora, mas é um
poema que eu gosto muito. Eu acho que esse poema sobre o quadro da Maria Helena
Vieira da Silva “Landgrave” não me parece tão conseguido como outro que ela
escreveu sobre outro quadro da Vieira da Silva que é o “Itinerário inelutável”,
mas eu afetivamente gosto mais do “Landgrave”.
JF: Sabe
então muitos versos de cor?
AL: Não,
não sei muitos versos de cor. É assim: eu tenho uma imagem do poema, lembro-me
de muitas coisas do poema e depois preciso de chegar a casa e de ir verificar
no livro, isso preciso.
JF: Pensamos
muitas vezes na posteridade dos poetas. Como é que se imagina daqui por cem
anos num verbete de uma enciclopédia literária?
AL: Não
me imagino, não.
JF: Não
haveria nada que gostasse de ler sobre si?
AL: Não,
nunca imagino isso. Há uma frase do Fernando Pessoa que diz que Milton não
fazia nada sem que pensasse na sua fama futura. Eu nunca penso na fama futura.
Eu penso no presente, nem penso muito no futuro, eu penso no presente.
JF: E
relativamente ao presente, costuma ler alguma crítica literária sobre a sua
obra?
AL: Algumas
leio, mas não leio todas, acho que algumas são maldosas e infundadas, então eu
não leio. Leio só assim algumas que me parecem mais justificadas.
JF: Acha
que algumas acertam?
AL: Acho
que sim.
JF: E
que tipo de crítica é que gosta de ler, mesmo sobre outros poetas? O que é que
gosta de ler na crítica literária?
AL: Gosto
quando vejo que há uma leitura dos poemas, que tem entendimento do poeta e que
faz descobrir coisas que eu não tinha descoberto ou que me dá informações que
eu não tinha. É isso que gosto de ver. E também quando me dá indicação de um
livro que eu não conhecia e que passo a conhecer pela crítica. Isso também
acontece.
JF: O
Alexandre O’Neill disse numa entrevista que achava muito mais tocante para um
poeta o aperto de mão de um leitor que a crítica de um crítico. O que prefere?
AL: Também
acho que sim.
JF: Já
teve reações de leitores?
AL: Sim,
sim, isso é muito mais gratificante.... Às vezes, ter pessoas, até sobretudo
pessoas que não têm conhecimentos literários ou assim... que houve qualquer
coisa que leram meu e que gostaram, que entenderam muito bem – quem sou eu para
dizer que entenderam muito bem –, isso é muito mais gratificante.
JF: Pensamos
muitas vezes em qual seria uma boa forma de se ensinar um poema. Tem alguma
ideia sobre o ensino da poesia?
AL: Acho
que se pode aprender poesia, é preciso que os alunos encontrem poemas de que
gostem muito. Às vezes o professor pode não conseguir transmitir isso, mas um
bom professor encontra poemas de que os alunos gostam, acho que encontra. O
problema talvez hoje é o ensino... é muito competitivo, as pessoas pensam muito
em entrar para a faculdade, entrar para estes cursos e assim, isso prejudica
muito essa leitura mais aberta, mais livre, em que há tempo, em que há tempo
livre. Sem tempo livre não há poemas, nem se lê nem se escrevem.
JF: Tem
alguma embirração linguística ou poética? Uma palavra de que não goste, por
exemplo.
AL: Não, não
tenho. Não há assim nenhuma... não.
JF: Mas
tem um poema que me parece não simpatizar muito com palavras caras.
AL: Sim
[risos].
JF: Porquê?
[risos]
AL: É
não simpatizar sobretudo com pessoas arrogantes, com pessoas que usam a
linguagem para se promoverem, para maltratarem os outros ou para se
empoderarem, isso não é bonito, claro.
JF: Isso
também acontece nalguma poesia?
AL: Sim,
também, também isso acontece.
JF: Tem
alguma figura de estilo preferida?
AL: Nunca
pensei nisso, nunca pensei nisso....
JF: Que
perguntaria a outro poeta? Se houvesse alguém que admirasse, que perguntas lhe
faria?
AL: Acho que
não perguntava nada, dizia bom dia ou boa tarde, como faço nos cafés, não
perguntava nada, não sei...
JF: Quando
lê um poeta de que gosta, não pensa se gostaria de lhe ter perguntado ou dito
alguma coisa?
AL: Não,
acho que não, acho que não. Eu percebo que se entrevistem os escritores, os que
escrevem os romances, os poemas. Podem dizer sobre o que escreveram, o que
fazem, o que vivem, como vêem as coisas, mas eu acho que não ia perguntar...
Falo com um poeta ou com um romancista como falo com a padeira, com o empregado
do café, com o carteiro. É assim.
JF: Todos
têm coisas interessantes a dizer.
AL: Sim,
todos têm coisas interessantes a dizer.
JF: Perguntámos
a algumas pessoas que admiram a sua obra se tinham perguntas para si. Por exemplo,
uma costureira perguntou se a Adília podia descrever um vestido com que sempre
tenha sonhado e que nunca tenha tido. Se existiria algum...
AL: [risos]
Quando eu tinha 30 anos e assim, eu gostava daquele costureiro francês,
Christian Lacroix. É claro que nunca teria dinheiro para comprar um vestido
dele nem me passaria pela cabeça gastar dinheiro num vestido, mas eu gostava
daquelas roupas muito coloridas, que lembram trajes folclóricos espanhóis,
russos... Eu não andava assim vestida, mas gostava desses fatos... de teatro,
de ópera.
JF: Temos
uma secção no site sobre curiosidades literárias. Não sabemos se gosta de
curiosidades literárias e se se lembra de alguma que gostasse de partilhar
connosco. Por exemplo, o Lord Byron, quando estudou em Trinity, tinha um urso
nos aposentos. Ele gostava muito de animais e era o único que não estava
nomeado na lista de animais domésticos proibidos.
AL: Gosto
de saber essas coisas, sim.
JF: Tem
alguma?
AL: O
poeta com quem convivi mais foi o José Blanc de Portugal. Estou a pensar se ele
contava assim alguma coisa... Ele tinha, mas isto talvez não se possa dizer...
Ele tinha uma casa muito grande e tinha um quarto interior que chamava “O
Inferno” e punha lá os livros de que não gostava, que eram geralmente dos
neo-realistas. Não era só dos neo-realistas que ele não gostava, mas punha lá
os livros de que não gostava. Chamava “O Inferno”.
JF: Gostou
de conviver com o José Blanc de Portugal?
AL: Sim,
gostava da poesia dele.
JF: A
poesia dele também parece subvalorizada.
AL: Também,
também está. Na geração dele talvez seja o mais esquecido.
JF: Gosta
de escrever noutras línguas? Já experimentou escrever numa língua que não
conhece bem e depois traduzir para a língua materna?
AL: Já
escrevi noutras línguas, nas línguas que aprendi no Liceu: Francês e Inglês.
Mas assim traduzir depois o meu poema para a minha língua não, isso não.
JF: Mas
tem os seus poemas traduzidos em várias línguas?
AL: Sim,
em algumas línguas.
JF: Já
se leu nessas outras línguas?
AL: Nas
que conheço, sim [risos]. Há muitas que não conheço.
JF: E
nas que conhece, acha que a poesia se perde na tradução?
AL: Se
for uma boa tradução, não se perde. Claro que se é má, perde-se, mas se é uma
boa tradução, não se perde. Às vezes o que acontece é que fica outro poema, que
não é bem o que a pessoa escreveu, mas partiram do poema da pessoa.
JF: Vimos que
gostava de dar de comer aos pombos quando era criança. Ainda gosta?
AL: Sim.
Eu tenho uma varanda com plantas, dar de comer não dou, porque talvez os
vizinhos não gostassem, mas dou água, porque eles com o calor têm muita sede e
ponho água num vaso na varanda, num cachepot, para eles terem água
para beber, e eles vão lá. É engraçado, eu estou às vezes em casa sentada,
tenho a varanda fechada, mas tenho cortinas transparentes, e vejo chegarem
pombos, pardais, melros... Uma vez vi um pássaro muito bonito com penas azuis.
Gosto disso.
JF: Quem
é que gostaria que a representasse num filme sobre si?
AL: Uma
actriz? Estou a pensar, leva tempo... Já não pode ser, que já morreu, mas eu
gostava muito de uma actriz americana, Lillian Gish, de filmes mudos e assim.
Gostava muito dela. É claro que não é nada parecida comigo, mas eu gosto muito
dela nos filmes mudos e assim. Talvez gostasse de ser representada num filme
mudo.
JF: Tem
passatempos?
AL: Faço
palavras cruzadas.
JF: De
algum jornal em particular?
AL: Do Expresso,
faço as do Expresso. Compro o Expresso ao Sábado e
faço as palavras cruzadas do Expresso. E acho que assim passatempo
convencional é o único que tenho. De resto, como a vida não é fácil, é sempre
lutar... Oiço música à noite, mas isso não é um passatempo, é uma coisa que
gosto de fazer, oiço a Antena 2, oiço o concerto às 9:00 da noite. Às 9.00 da
noite há um concerto e costumo ouvir esse concerto durante a semana, quando
estou bem, que às vezes estou muito atormentada, e estou com sono e maldisposta
e não estou a ouvir música, não tenho cabeça para ouvir música nem para ler. É
assim.
JF: Quando
diz que a vida não é fácil, é no sentido que às vezes é triste?
AL: Sim,
cresci num ambiente muito deprimente, e isso prejudicou-me, quer dizer,
marcou-me. E depois o trabalho literário é muito mal pago, isso não dá
esperança, não dá esperança... É uma vida que... Pensa-se sempre que é um beco
sem saída. Pronto, isso não dá esperança, realmente.
JF: Tem
alguma relação com o meio literário?
AL: Eu
não me dou com o meio literário, não tenho assim muitos contactos, nem nenhuns,
não tenho contactos com o meio literário, não tenho.
JF: E
tem interesse por ele?
AL: Não,
também não tenho. Tenho uma ideia que é um meio de intrigas e assim, como todos
os meios profissionais, como todos os meios humanos, e não só profissionais,
tudo. E isso não me interessa.
JF: Quais
são as suas influências?
AL: A
primeira é a Sophia de Mello Breyner, sim. Geralmente as pessoas aparentam-me
com o Alexandre O’Neill, mas eu não tinha lido o Alexandre O’Neill e não é o
Alexandre O’Neill. Eu gosto muito do Alexandre O’Neill, mas não é o Alexandre
O’Neill. É muito mais a Sophia de Mello Breyner e o Ruy Belo, foram os que li,
que me fizeram desemburrar, perceber. Primeiro a Sophia, porque ela escrevia
contos para crianças, e eu quando era criança lia os contos e assim, depois o
Ruy Belo, no fim da adolescência, o Ruy Belo. E também a Sylvia Plath, que eu
sei muito pouco inglês, mas conseguia ler em inglês. Eu acho que ela de facto é
muito extraordinária, porque eu sabendo tão pouco conseguia ler os poemas dela
em inglês. E aprendi, aprendi muito com ela. Mas quem depois me faz escrever
poemas, não o conheço, mas li poemas dele, é o João Miguel Fernandes Jorge. Li
poemas dele e foi a partir daí que passei a escrever poemas, mas eu acho que
aqueles que me influenciaram mesmo, que me marcaram, foram a Sophia, o Ruy Belo
e a Sylvia Plath.
JF: E porque
é que acha que há esse parentesco com o O’Neill?
AL: Porque há
ironia, eu uso ironia, sou às vezes sarcástica. E também porque... Eu nunca
trabalhei em publicidade, mas às vezes há coisas que lembram a publicidade. Ele
trabalhou em publicidade, talvez por isso as pessoas pensem que há uma relação.
JF: Há
pouco disse que era difícil viver da literatura... Tem projectos para breve?
Num curto espaço de tempo, publicou vários livros.
AL: Sim,
eu em menos de 3 anos escrevi seis livros. Só falta publicar um, que sai este
ano. E depois ainda há contos que eu gostava de escrever, mas é preciso que
haja estímulos, apoios, incentivos. Se não há, também a pessoa não consegue
raciocinar.
JF: De
todas as perguntas que fizemos, qual foi a sua favorita?
AL: Se usa a poesia no
dia a dia.
INTERVIEWING ADÍLIA LOPES
LISBON,
AUGUST 2017
For our interview, we met at café Danúbio,
in Lisbon. The Portuguese poet Adília Lopes was already waiting for us
there (she’d arrived at least 20 minutes before the time we agreed on). We
brought the questions we prepared, the interview went as planned, but we also
talked about her neighbourhood, about poplars and cherry trees, about dreams
and nightmares, and about eating cakes before enjoying the beauty of
cathedrals.
Jogos
Florais: Do you like poetry?
Adília Lopes: [laughs] Sometimes I don’t, sometimes I don’t….
JF: We
often think about the posterity of poets. How do you see yourself in a hundred
years, in a literary encyclopaedia entry?
AL: I
don’t see myself like that, no.
JF: Isn’t
there something you’d like to read about yourself?
AL: No,
I never imagine that. There’s a sentence where Fernando Pessoa says that Milton
didn’t do anything without thinking about his future fame. I think about the
present, I don’t really think about the future, I think about the present.
JF: What
would you ask another poet? If there was someone you admired, what questions
would you ask them?
AL: I
don’t think I’d ask them anything. I would say “good morning” or “good
afternoon”, like I do at coffee shops. I wouldn’t ask anything, I don’t know…
JF: When
you read poets you like, do you not wonder about something you’d like to ask
them or tell them?
AL: No,
I don’t think so. I understand why people would interview writers, the ones who
write novels, poems. They may talk about what they wrote, what they do, what
they live, how they see things, but I don’t think I’d ask… I talk to a poet or
a novelist like I talk to the baker, to the waiter, to the postman. That’s how
it is.
JF: All
of them have interesting things to say.
AL: Yes,
all of them have interesting things to say.
JF: We
asked some people who admire your work whether they had questions for you. For
instance, a costume designer asked if you could describe a dress with which
you’ve always dreamed, but never had. If there was any…
AL: [laughs]
When I was 30 years old and such, I liked that French couturier, Christian
Lacroix. Of course I would never have enough money to by one of his dresses,
nor would spending money on a dress would ever cross my mind, but I liked those
really colourful clothes that remind us of Spanish or Russian folklore
costumes… I wouldn’t go out wearing something like that, but I enjoyed those
garments… from the theatre, the opera.
JF: Who
would you like to play you in a film about your life?
AL: An
actress? I’m thinking, this takes some time… It can’t be her, because she
already died, but I liked this American actress very much, Lillian Gish, from
silent films and such. I liked her very much. Of course she doesn’t resemble me
one bit, but I really like her in silent films and the like. Maybe I would enjoy
being portrayed in a silent film.
JF: Do
you have any relation with the literary scene?
AL: I
don’t really connect with the literary scene, I don’t know many people, nor
any, I don’t know anyone in the literary scene, I don’t.
JF: And
do you care for it?
AL: No,
I don’t. I have this idea that it is full of gossip and such, like in every
profession, or any other human scene, not just in jobs, everywhere. And I
don’t care for that.
Quem
vive numa ilha quer saber dos seus vizinhos, das jangadas de pedra, das
garrafas com mensagens, dos destroços da distância, a contar a profundidade do
mundo. Nunca estamos verdadeiramente sozinhos, sabemos que os vulcões trabalham
por nós, mantendo o tamanho das outras ilhas, acrescentando pedra sobre fogo,
fogo sobre pedra, de modo que o mar um dia ainda pede licença, para atravessar
este arquipélago e levar o rasto da atlântida de volta a casa.
Em
Santa Maria também somos micaelenses. Todavia, a ilha grande está longe, não
nos chegam as asas nem os braços, e precisamos dos olhos bem abertos, do vento,
do sol poente, da pedra pomes, para acreditar que ela está lá. De vez em quando
assoma como um dorso cansado no horizonte. Um azul escuro que escorre da noite,
lento e silencioso como uma fera triste. Somos micaelenses nesta valsa de
esperarmos pelas coisas boas: já lá vai o tempo de São Miguel nos matar a sede,
mas aí segue o tempo desta ilha nos dar quase tudo o resto. Não há mariense que
não ame alguém do lado de lá, num amor seguro e recíproco. Aliás, o sonho de
todo o mariense é ter São Miguel no lugar do Ilhéu da Vila, à distância de um
salto, de uma correria de pés descalços, sobre a água mansa de um sonho de
verão. O podermos acenar às saudades, em frente ao espelho, e despedir os
helicópteros, os aviões, as lanchas, os cargueiros. Ter São Miguel tão perto,
mas ainda assim com um resto de mar, para não ser tão fácil, ter acesso ao que
nos faz falta, só para que continue fazendo falta, e lhe demos esse valor, que
todas as coisas têm, se não nos são dadas de graça.
Nesta
ilha primeira, sobra-nos a saudade das outras ilhas. Depois de São Miguel há
todo um mundo vulcânico que não cabe no horizonte. Está lá, no meio, em cima, a
chover primeiro que nós, a avisar do mau tempo, que sempre desce pelas escadas
abaixo, até nos alagar o terreiro, que todo o Sul é. Graças a Deus, a chuva
chega cansada, sempre cansada, de tanta coisa linda que cada ilha tem pendendo
sobre o mar. Não há amor como este, ser açoriano num arquipélago que não se vê
todo, que demora sob o sol da tarde, tanto que quase todos adormecemos primeiro
que o Corvo e as Flores. Mas não somos nada uns sem os outros. Sem orgulho, sem
modéstia, sem enredos. Somos raízes de Portugal, crescendo para cima, enquanto
houver céu que aguente, esta lira de dois corações, suspirando pelo outro, que
sempre há de vir, com graças novas, para nos entreter a solidão.
Daniel Gonçalves, http://www.9idazoresnews.com/2017/09/12/as-outras-ilhas/
Santa Maria vista de São Miguel (foto: Sancho Eiró)
São Miguel visto de Santa Maria
ilheu de Vila Franca do Campo com a ilha de Santa Maria no horizonte. Foto: Manuel Oliveira, 24-04-2017
“As outras ilhas” texto de Daniel Gonçalves. Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 19-09-2017. Disponível em:https://folhadepoesia.blogspot.com/2017/09/as-outras-ilhas.html
A
poesia não tem lugar nobre para acontecer, não é só o mármore, como os
parnasianos, como os cultores do monte Parnaso, pensavam. A poesia não só tem
locais ou materiais nobres. Ela usa os mais diferentes materiais. Não há
vulgaridade para ela. Você pode restaurar. É um trabalho intenso. É um trabalho
construtivista. Não um construtivismo de cem anos atrás. É um construtivismo
dos nossos tempos. De quem está com os olhos novos para o novo, com os ouvidos
abertos. E também com capacidade de estar lendo diferentes tradições. Não ficar
ensimesmado, isolado.
Waly Salomão, documentário
Pan-Cinema Permanente, dir. Carlos
Nader, 2008
At the
center of an Ashbery poem isn’t usually a subject (à la Philip Larkin) but a
feeling (à la Jackson Pollock). . . The best thing to do, then, is not to try
to understand the poems but to try to take pleasure from their arrangement, the
way you listen to music. (See Meghan
O’Rourke, How to Read John Ashbery, Slate (March 9, 2005) available at
www.slate.com/id/2114565/.)
MY EROTIC DOUBLE
He says he doesn’t feel like working
today.
It’s just as well. Here in the shade
Behind the house, protected from
street noises,
One can go over all kinds of old
feeling,
Throw some away, keep others.
The
wordplay
Between us gets very intense when
there are
Fewer feelings around to confuse
things.
Another go-round? No, but the last
things
You always find to say are charming,
and rescue me
Before the night does. We are afloat
On our dreams as on a barge made of
ice,
Shot through with questions and
fissures of starlight
That keep us awake, thinking about the
dreams
As they are happening. Some
occurrence. You said it.
I said it but I can hide it. But I
choose not to.
Thank you. You are a very pleasant
person.
Thank you. You are too.
John Ashbery, “My Erotic Double”, As We
Know, 1979
MEU SÓSIA ERÓTICO
Ele diz que hoje não está a fim de trabalhar.
Tudo bem. Aqui na sombra
Atrás da casa, protegido dos ruídos da rua,
A gente pode revisar todo tipo de velhos sentimentos,
Jogar uns fora, guardar outros.
O jogo de palavras
Entre nós se intensifica quando há
Menos sentimentos ao redor pra confundir as coisas.
Outra rodada? Não, mas as últimas coisas
Que você sempre acha pra dizer são um charme, e me
resgatam
Antes que a noite o faça. Nós derivamos
Nos nossos sonhos como num bote de gelo,
Lançados através de perguntas e fissuras de estrelas
brilhantes
Que não nos deixam dormir, pensando nos sonhos
Enquanto acontecem. Algum evento. Você que disse.
Eu disse mas não guardei pra mim. Achei melhor assim.
Obrigado. Você é uma pessoa agradável.
Obrigado. Você também.
John
Ashbery
(Tradução:
Rodrigo Garcia Lopes in Vozes e Visões, São
Paulo, Editora Iluminuras, 1996)
PARADOXES AND OXYMORONS
This poem is concerned with language
on a very plain level.
Look at it talking to you. You look
out a window
Or pretend to fidget. You have it but
you don't have it.
You miss it, it misses you. You miss
each other.
The poem is sad because it wants to be
yours, and cannot.
What's a plain level? It is that and
other things,
Bringing a system of them into play.
Play?
Well, actually, yes, but I consider
play to be
A deeper outside thing, a dreamed
role-pattern,
As in the division of grace these long
August days
Without proof. Open-ended. And before
you know
It gets lost in the steam and chatter
of typewritters.
It has been played once more. I think
you exist only
To tease me into doing it, on your
level, and then you aren't there
Or have adopted a different attitude.
And the poem
Has set me softly down beside you. The poem is you.
PARADOXOS
E OXÍMOROS
Este
poema se ocupa da linguagem num nível muito simples.
Observe-o
falando com você. Você observa além de uma janela
Ou
finge se inquietar. Você o entende. Você o entende mas você não o entende.
Você
o perde, ele perde você. Vocês se perdem um do outro.
O
poema é triste porque ele quer ser seu, e não pode.
O
que é um nível simples? É aquele e outras coisas mais,
Pondo
um sistema deles em jogo. Jogo?
Bem,
na verdade, sim, mas eu considero jogo como sendo
Uma
coisa exterior mais intensa, um fantasioso papel-padrão,
Como
na divisão de virtudes destes longos dias de agosto
Sem
garantias. Ilimitado. E antes que você o perceba
Ele
se perde no vapor e tique-taque das máquinas de escrever.
O
jogo foi feito mais uma vez. Acho que você só existe
Pra
me fazer querer jogá-lo, no seu nível, e depois nem ligar
Ou
ter adotado uma atitude diferente. E o poema
Me
registrou suavemente a seu lado. O poema é você.
John
Ashbery, Shadow Train (1980)
(Tradução de Dony Antunes.
Publicado no caderno Folhetim, Folha de
S. Paulo, 1988-10-15)
SYRINGA
Orpheus
liked the glad personal quality
Of
the things beneath the sky. Of course, Eurydice was a part
Of
this. Then one day, everything changed. He rends
Rocks
into fissures with lament. Gullies, hummocks
Can’t
withstand it. The sky shudders from one horizon
To
the other, almost ready to give up wholeness.
Then
Apollo quietly told him: “Leave it all on earth.
Your
lute, what point? Why pick at a dull pavan few care to
Follow,
except a few birds of dusty feather,
Not
vivid performances of the past.” But why not?
All
other things must change too.
The
seasons are no longer what they once were,
But
it is the nature of things to be seen only once,
As
they happen along, bumping into other things, getting along
Somehow.
That’s where Orpheus made his mistake.
Of
course Eurydice vanished into the shade;
She
would have even if he hadn’t turned around.
No
use standing there like a gray stone toga as the whole wheel
Of
recorded history flashes past, struck dumb, unable to
utter an intelligent
Comment
on the most thought-provoking element in its train.
Only
love stays on the brain, and something these people,
These
other ones, call life. Singing accurately
So
that the notes mount straight up out of the well of
Dim
noon and rival the tiny, sparkling yellow flowers
Growing
around the brink of the quarry, encapsulizes
The
different weights of the things.
But
it isn’t enough
To
just go on singing. Orpheus realized this
And
didn’t mind so much about his reward being in heaven
After
the Bacchantes had torn him apart, driven
Half
out of their minds by his music, what it was doing to them.
Some
say it was for his treatment of Eurydice.
But
probably the music had more to do with it, and
The
way music passes, emblematic
Of
life and how you cannot isolate a note of it
And
say it is good or bad. You must
Wait
till it’s over. “The end crowns all,"
Meaning
also that the “tableau”
Is
wrong. For although memories, of a season, for example,
Melt
into a single snapshot, one cannot guard, treasure
That
stalled moment. It too is flowing, fleeting;
It
is a picture of flowing, scenery, though living, mortal,
Over
which an abstract action is laid out in blunt,
Harsh
strokes. And to ask more than this
Is
to become the tossing reeds of that slow,
Powerful
stream, the trailing grasses
Playfully
tugged at, but to participate in the action
No
more than this. Then in the lowering gentian sky
Electric
twitches are faintly apparent first, then burst forth
Into
a shower of fixed, cream-colored flares. The horses
Have
each seen a share of the truth, though each thinks,
“I’m
a maverick. Nothing of this is happening to me,
Though
I can understand the language of birds, and
The
itinerary of the lights caught in the storm is
fully apparent to me.
Their
jousting ends in music much
As
trees move more easily in the wind after a summer storm
And
is happening in lacy shadows of shore-trees, now,
day after day.”
But
how late to be regretting all this, even
Bearing
in mind that regrets are always late, too late!
To
which Orpheus, a bluish cloud with white contours,
Replies
that these are of course not regrets at all,
Merely
a careful, scholarly setting down of
Unquestioned
facts, a record of pebbles along the way.
And
no matter how all this disappeared,
Or
got where it was going, it is no longer
Material
for a poem. Its subject
Matters
too much, and not enough, standing there helplessly
While
the poem streaked by, its tail afire, a bad
Comet
screaming hate and disaster, but so turned inward
That
the meaning, good or other, can never
Become
known. The singer thinks
Constructively,
builds up his chant in progressive stages
Like
a skyscraper, but at the last minute turns away.
The
song is engulfed in an instant in blackness
Which
must in turn flood the whole continent
With
blackness, for it cannot see. The singer
Must
then pass out of sight, not even relieved
Of
the evil burthen of the words. Stellification
Is
for the few, and comes about much later
When
all record of these people and their lives
Has
disappeared into libraries, onto microfilm.
A
few are still interested in them. “But what about
So-and-so?”
is still asked on occasion. But they lie
Frozen
and out of touch until an arbitrary chorus
Speaks
of a totally different incident with a similar name
In
whose tale are hidden syllables
Of
what happened so long before that
In
some small town, one indifferent summer.
John Ashbery, Houseboat Days (1957)
JOHN ASHBERY: UM MÓDULO PARA O VENTO
(Viviana Bosi Concagh)
Ao relatar, no poema
"Syringa", o erro de Orfeu em querer trazer Eurídice de volta à vida,
revela sua visão da passagem do tempo na arte e na vida, ao mesmo tempo em que
adverte o leitor a precaver-se contra as interpretações fixas:
“[…]
Todas
as outras coisas também têm que mudar.
As
estações já não são o que eram,
Mas
é da natureza das coisas só serem vistas uma vez,
Enquanto
vão acontecendo, chocando-se com outras coisas, prosseguindo
De
alguma forma. Foi aí que Orfeu se equivocou.
É
claro que Eurídice se evaporou na sombra;
Teria
evaporado mesmo que ele não se tivesse virado.
De
nada vale ficar aí como uma toga cinzenta de pedra enquanto a roda inteira
Da
história guardada lampeja emudecida, incapaz de pronunciar um comentário
Inteligente
sobre o elemento mais intrigante do seu cortejo.
Só
o amor fica na cabeça, e algo que essas pessoas,
Essas
outras, chamam de vida. […]”
(Tradução de Waly Salomão
e António Cícero, Caderno Mais!, Folha de
São Paulo, 1993-10-24, p. 7. Extraído do volume de poemas HouseboatDays.)
Assim, cada leitura pode
ser diferente da anterior, visto o poema saber-se não fossilizável em relação
ao que "representa". O próprio Ashbery recomenda a relação com seus
poemas como vivências de instantes, sem preocupações com sínteses definitivas.
A dificuldade de apreender
plenamente os acontecimentos da vida é tematizada de diversas formas pelo
poeta. Ele parece acreditar que a poesia precisa do leitor para exprimir ou construir
a tradução do que experimenta. Mais do que isso, sem o leitor o poema não
respira, pois vida e arte se mesclam na mesma inquietação. Em outra chave, as
reflexões de Merleau-Ponty, ao recusar as imagens ideais ou
"essências" das coisas, aproximam-se desta procura existencial: o eu
presente, não redutível à ilusão de perfeita e englobada representação, pois
procura o mundo e o outro.
No longo poema "Daffy
Duck in Hollywood", Ashbery começa como se apresentasse uma situação de
desenho animado, imitando a velocidade típica com que os objetos se entulham e
desaparecem da tela, e as personagens são deformadas e recompostas. Isto o leva
a divagar sobre a vida na metrópole e, por extensão, sobre a velocidade e
incompletude da experiência:
“[…] You meet
Enough vague people on this emerald
traffic-island — no,
Not people, comings and goings, more:
mutterings, splatterings, […]”
“[…] Você encontra
demasiadas
Pessoas
vagas nesta ilha-tráfego esmeralda — não,
Não
pessoas, idas e vindas, ou melhor: sussurros, salpicos, […]”
A seguir, ao tematizar a
mutação constante da paisagem, o poeta desenvolve o motivo que mais o inquieta:
o deslizar do tempo e do homem em meio a fragmentos:
“[…] This whole moment is the groin
Of a borborygmic giant who even now
Is rolling over us in his sleep
…
[…] I have
Only my intermitent life in your
thoughts to live
Which is like thinking in another
language. Everything
Depends on whether somebody reminds
you of me.
…
It's all bits and pieces, spangles,
patches, really; nothing
Stands alone. What happened to
creative evolution?
…
[…] since all
By definition is completeness (so
In utter darkness they reasoned), why
not
Accept it as it pleases to reveal
itself. As when
Low skyscrapers from lower-hanging
clouds reveal
A turret there, an art-deco escarpment
here, and last perhaps
The pattern that may carry the sense,
but
Stays hidden in the mysteries of
pagination.
Not what we see but how we see it
matters; all's
Alike, the same, and we greet him who
announces
The change as we would greet the
change itself.
All life is a figment; conversely, the
tiny
Tome that slips from your hand is not
perhaps the
Missing link in this invisible picnic
whose leverage
Shrouds our sense of it. […]
…
[…]
Morning is
Impermanent.
[…]”
…
“[…] Todo este momento é a
virilha
De
um gigante borborígmico que agora mesmo
Está
rolando sobre nós em seu sono. [...]
…
[…]
Eu tenho
Apenas
minha vida intermitente em teus pensamentos para viver
O
que é como pensar em outra língua. Tudo
Vai
depender de alguém te lembrar de mim.
…
Na
verdade, tudo são bugigangas, lantejoulas, retalhos; nada
É
único. O que aconteceu com a evolução criadora?
…
pois
que tudo
Por
definição é plenitude (assim
Raciocinavam
completamente no escuro), por que não
Aceitá-lo
tal como lhe apraz revelar-se a si mesmo? Como quando
Baixos
arranha-céus de nuvens que pairam baixas revelam
Acolá
um torreão, aqui uma escarpa art deco,
e talvez por fim
O
padrão que poderá conter o sentido, mas
Permanece
escondido nos mistérios da paginação.
Não
o que vemos mas como o vemos é que interessa: tudo é
Parecido,
idêntico, e nós saudamo-lo, a esse que anuncia
A
mudança tal como saudaríamos a própria mudança.
A
vida toda é um fingimento; por outro lado, o pequenino
Tomo
que te desliza da mão não é talvez o
Elo
que falta neste invisível piquenique cuja potência
Dissimula
a nossa noção dela. [...]
…
[…]
A manhã é
Impermanente.
[...]”
(John Ashbery, "Patolino em
Hollywood". A partir do trecho
que começa no verso "pois que tudo..." transcrevo a tradução de A. M.
Feijó, que preferiu intitular o poema como "O Pato Maluco em
Hollywood", op. cit., pp. 201-207. Originalmente publicado no livro Houseboat Days.)
Este lugar entre o padrão
e a impermanência, pouco resolvido, é uma das questões centrais de sua poesia.
A consciência da dificuldade de apreensão de um todo mutante e misterioso
coaduna-se com um certo senso de humor relativizante que não descamba nem para
o completo niilismo nem para o dogma.
Não se trata aqui de "truth carried alive into the heart by
passion" (Wordsworth). Nem "fonte que no finito colhe o infinito" (Croce).
Nem sempre a poesia é "concreta", no sentido hegeliano de movimento
entre geral e singular. Conceitos como verdade, infinito, universal, coesão,
parecem um tanto deslocados nesse contexto mas não podem ser completamente
descartados. Elizabeth Bishop chamou a poesia de Ashbery de "semi-abstrata",
definição de muito interesse, pois ela oscila do detalhe opaco e imanente à
argumentação generalizante. Se encontramos, por vezes, baixa mimese prosaica,
em outros momentos, deparamo-nos com um tipo de abstração que tende ao
filosófico. Trabalham juntos, no poema, uma forte tendência associativa para a
miudeza hiperbólica dos particulares e uma inteligência que busca acompanhar a
paisagem em movimento com hipóteses em formação.
Adorno já nos advertiu, em
sua Teoria Estética, que, na arte
moderna, não se deve procurar um todo simbólico que aglutine partes
perfeitamente interligadas, pois o objeto artístico tornou-se menos orgânico.
Assim, o receptor, ao interagir com o texto, procura deduzir a sua própria
experiência da obra. A passagem do particular ao geral e do todo à parte
necessita ser mediada pela leitura, pois o sentido sobrevoa, fruto da interação
relativa de fragmentos. Os significados precisam ser extraídos, conjugando-se dissonância
e unidade. Por isso mesmo, penso que a interpretação torna-se cada vez mais
indispensável, ainda que toda beleza e verdade tenham sido fendidas por
contradições:
“Aimer Ia perfection parce qu'elle est
le seuil,
Mais
Ia nier sitôt connue, l'oublier morte,
L'imperfection
est Ia cime.”
(Yves Bonnefoy. "L'imperfection est Ia cime"
em Hier régnant désert, citado por
Michael Hamburger em La Verdad de Ia
Poesia (Tensiones en Ia Poesia Moderna de Baudelaire a los Años Sesenta),
p. 247.)
Ainda uma palavra sobre a
visão que Ashbery tem da crítica: em seu poema dialogado "Litany" —
são duas colunas paralelas de versos, com tipos gráficos diferentes, na forma
de uma oração com responsório — ele sugere uma relação necessária de leitura
crítica e criação poética. Desconfiado de alguns tipos de crítica, propõe um
resgate de sua função, purgando-a de excessos estéreis e procurando ampliar seu
lugar de reflexão e encontro:
“Just one minute of contemporary
existence
Has so much to offer, but who
Can evaluate it, formulate
The appropriate apothegm, show us
In a few well-chosen words of wisdom
Exactly what is taking place all about
us?
…
[…] It behooves
Our critics to make the poets more
aware of
What they are doing, so that poets in
turn
Can stand back from their work and be
enchanted by it
And in this way make room for the
general public
To crowd around us and be enchanted by
it too,
And then, hopefully, make some sense
of their lives
Bring order back into the disorderly
house
Of their drab existence.
…
Therefore a new school of criticism
must be developed.
First of all, the new
Criticism should take into account
that it is we
Who made it, and therefore
Not be too eager to criticize us:
We could do that for ourselves, and
have done so.
Nor
Should it take itself as a fitting
subject
For a critical analysis, since it
knows
Itself only through us, and us
Only through being part of ourselves,
the bark
Of the tree of our intellect. What
then
Shall it criticize, in order to dispel
The quaint illusions that have been
deluding us,
The pictures, the trouvailles, the
sallies
Swallowed up in the howl? Whose subjects
Are these? Yet all
IS by definition subject matter for
the new
Criticism, which is us: to inflect
Is to count our own ribs, as though
Narcissus
Were born blind, and still daily
Haunts the mantled pool, and does not
know why.”
“Um
só momento de existência contemporânea
Tem
tanto a oferecer, mas quem
Pode
avaliar isso, formular
O
aforismo apropriado, mostrar-nos
Em
poucas e bem escolhidas palavras de sabedoria
Exatamente
o que está acontecendo à nossa volta?
…
Cumpre
aos
Nossos
críticos tornar os poetas mais conscientes do
Que
estão fazendo, de maneira que os poetas, por sua vez
Possam
distanciar-se de sua obra e ser encantados por ela
E
desta forma abrir espaço para o público em geral
Se
reunir à nossa volta e também ser encantado por ela,
E
então, quem sabe, dar algum sentido às suas vidas
Trazer
a ordem de volta à casa desordenada
De
suas existências insípidas.
…
Portanto,
uma nova escola crítica precisa ser desenvolvida.
Em
primeiro lugar, a nova
Crítica
deveria levar em conta que somos nós
Que
a fwcmos, logo
Não
ficar tão ansiosa para nos criticar:
Poderíamos
fazer isso por nós mesmos, e temos feito isso.
Nem
Deveria
tomar a si mesma como um objeto adequado
Para
uma análise crítica, pois ela só se
Conhece
através de nós, e nós
Somente
através de ser parte de nós, a casca
Da
árvore de nosso intelecto. O que, então,
ela
irá criticar, a fim de dispersar
As
ilusões esquisitas que vêm nos iludindo,
As
figuras, os achados, os ímpetos
Reprimidos
sob o uivo? De quem são
Esses
assuntos? Porém, tudo
É
por definição assunto para a nova
Crítica,
que somos nós: infletir
É
contar nossas próprias costelas, como se Narciso
Tivesse
nascido cego e ainda assim, diariamente,
Rodeasse
o lago encoberto, e não soubesse porquê.
("Litania", II, As We Know)
Narciso é cego e a água,
escura. Este papel da crítica, que seria um tipo de anamnese, ou um outro olhar
sobre si mesma, continua latente como um desejo que não cumpre seu alvo. O
próprio eu não se reconhece porque espelho e visão se embaçaram (por essa
Platão não esperava...): mimese difícil. Assim também, em
"Self-Portrait", veremos que Narciso não enxerga mais somente a si
mesmo nem é o seu próprio centro. Em estilhaços, ronda o espelho para mirar sua
ex-imagem, agora achatada, esmaecida, evanescente. Perambula sem Ítaca, e não
pode voltar para o passado destruído, uma identidade falsa e parcial, que o
tempo alterou. Mal se reconhece, ainda que leve a memória como cicatriz. No
entanto, nunca desiste de refletir (-se), mesmo escapando de si próprio todo o
tempo: "this profile at the window that moves, and moves on,/ Knowing that
it moves, and knows nothing else" (em "Houseboat Days").
O eixo central de nossa
leitura de Ashbery será o entroncamento entre identidade e representação, que
faz confluir questões psicológicas, estéticas e históricas, todas bastante
complexas. Embora sua poesia não possa ser inteiramente capturada apenas sob
esse aspecto, consideramos fecundo determo-nos no tema. Sem a pretensão
impossível de "possuir totalmente o objeto", que possamos
considerá-lo um convite para perceber além, como propõe Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepção. Encontramos
no próprio Ashbery consolo para nossos limites e justificativa para a
impossibilidade de descrever em toda a extensão e profundidade a interpretação
de cada possibilidade que aflora em sua obra. Escrever, diz ele, envolve deixar
para fora muitas coisas, que espreitam dos cantos do texto:
“I thought that if l could put it all
down, that would be one way. And next the thought came to me that to leave all
out would be another, and truer, way.
clean-washed sea
The flowers were.
These are examples of leaving out.
But, forget as we will, something soon comes to stand in their place. Not the
truth, perhaps, but — yourself. It is you who made this, therefore you are
true. But the truth has passed on
to divide all.”
("The New Spirit", Three Poems, p. 3)
“Eu
pensei que, se pudesse colocar tudo por escrito, esta seria uma forma. E a
seguir me veio o pensamento que deixar tudo por dizer seria uma outra forma,
mais verdadeira.
limpo
e lavado oceano
As
flores eram.
Estes
são exemplos de deixar por dizer. Mas, mesmo que esqueçamos, logo alguma coisa
vem tomar o seu lugar. Não a verdade, talvez, mas — você. É você que fez isso, portanto
você é verdadeiro. Mas a verdade seguiu adiante
para
dividir tudo.”
("O Novo Espírito")
Como se ele reconhecesse a
imensidade das formas da vida e só pudesse representá-las em parte, correndo
assim mesmo o risco de conter as constantes transformações do eu e do mundo. A
escolha que o escritor/ leitor faz do texto é relativa, mas rica, pois revela
um mundo espesso, ainda que aparentemente limitado.
Em outro trecho, igualmente
elucidativo, que tomo como paradigma da dificuldade de representar pela
escrita, quando não há um a priori selecionando o que deve ser incluído e o que
não, o poeta contrasta a corrente sinuosa da sua narrativa, que se confunde com
a paisagem, com o discurso rígido e inalterável do pregador convencido de
antemão de sua verdade:
“There were so many things held back,
kept back, because they didn't fit into the plot or because their tone wasn't
in keeping with the whole. So many of these things have been discarded, and
they now tower on the brink of the continuity, hemming it in like dark crags
about a valley stream. [...] The rejected chapters have taken over. For a long
time it was as though only the most patient scholar or the recording angel himself
would ever interest himself in them. Now it seems as though that angel had
begun to dominate the whole story: he who was supposed only to copy it all down
has joined forces with the misshapen, misfit pieces that were never meant to go
into it but at best to stay on the sidelines so as to point up how everything
else belonged together, and the resulting mountain of data threatens us; one
can almost hear the beginning of the lyric crash in which everything will be
lost and pulverized, changed back into atoms ready to resume new combinations
and shapes again, new wilder tendencies, as foreign to what we have carefully
put in and kept out as a new chart of elements or another planet —
unimaginable, in a word.”
("The System", Three
Poems, pp. 103-104)
“Tantas
coisas foram reprimidas e ocultadas porque não encaixavam no enredo ou o tom
não se coadunava com o todo. Tantas foram descartadas, e agora elas se elevam à
beira da continuidade, rodeando-a como penhascos escuros sobre um regato do
vale. […] Os capítulos rejeitados
assumiram o comando. Por um longo tempo foi como se apenas o erudito mais
paciente ou o próprio anjo registrador fosse se interessar por elas. Agora
parece que aquele anjo começa a dominar toda a estória: ele que deveria somente
transcrever tudo se aliou às partes
deformadas, desajustadas, que nunca foram destinadas a ser incluídas mas, na
melhor das hipóteses, ficar à margem, de forma a ressaltar como tudo o mais se
coadunava, e a montanha de informações resultante nos ameaça; quase conseguimos
ouvir o começo do colapso lírico quando tudo será perdido e pulverizado,
transformado de novo em átomos prontos a recomeçarem em novas combinações e
formas, novas tendências mais ousadas, tão estranhas ao que nós havíamos colocado
cuidadosamente ou excluído, como uma nova tabela de elementos ou outro planeta
— inimagináveis, numa palavra.”
("O Sistema")
Ao comparar a continuidade
narrativa a um caudal ou corrente, que incluiria a margem, englobando as pedras
antes rejeitadas, aproxima a criação da poesia a uma verdadeira reconfiguração
geológica, anunciando mesmo uma nova terra para a língua.
Em muitos momentos,
Ashbery explicita que o poema é parte de algo maior. Seu método consiste em
incluir ingredientes até incompatíveis, para alterar a composição básica da
escrita. Um elemento pode, inclusive, neutralizar o outro, de forma a
desfigurar a possibilidade de sentido. Isso provoca a impressão de um contínuo
tirar o tapete, e escorregamos entre as imagens sem apreender uma intenção
global. A presença indiscriminada quebra a relação de coerência entre as partes
e evoca justamente a ausência, o vazio de significado convencional em meio ao
fluxo hiperbólico de palavras.
Porém, quanto mais aumenta
a digressão inclusiva, mais o poeta se torna consciente das exclusões
inevitáveis, "this leaving-out business":
“[…] the carnivorous
Way of these lines is to devour their
own nature, leaving
Nothing but a bitter impression of absence,
which, as we know
involves presence, but
still.
Nevertheless these are fundamental
absences, struggling to
get up and be off themselves.”
("The Skaters", l, Rivers and Mountains)
“a carnívora
Forma
destes versos consiste em devorar sua própria natureza, nada
Deixando
a não ser uma amarga impressão de ausência, que, como sabemos
envolve presença, mas
enfim.
No
entanto estas são ausências fundamentais, lutando para
se levantarem e partirem por conta
própria.”
("Os Patinadores")
Ao
avançar para o incomunicável opaco, procurando descrever o inarticulado sem já
catalogá-lo dentro do rol dos significados, a ausência devora os versos, que se
sabem incapazes de abranger toda a espessura do concreto. O intervalo entre
palavra e mundo, frase e objeto, é espaço infinitamente infranqueável. Embora a
poesia nunca possa alcançar a plena presença das coisas, há nela um sentido de
luta, como a sacudir os seres de seu sono obscuro.
"AUTO-RETRATO NUM
ESPELHO CONVEXO"
“Tomorrow
is easy, but today is uncharted,
Desolate,
reluctant as any landscape
To
yield what are laws of perspective”
(John Ashbery,“Self-Portrait
in a Convex Mirror”, III)
“Amanhã é fácil, mas hoje é inexplorado,
Desolado, relutante como toda paisagem
Em ceder as leis de perspectiva”
(John Ashbery, “Auto-retrato num espelho convexo”,
III)
"Self-Portrait"
já foi chamado "clássico do pós-modernismo", pelo aspecto emblemático
de apanhado de problemas cruciais da consciência contemporânea. Marés de vários
tempos e visadas se entrecruzam no poema, como a síntese desdobrável de um
"cronotopo".
Este poema, que escolhi
para tradução e análise, é central para compreender Ashbery. Ao mesmo tempo que
exemplifica muitos dos caminhos artísticos de uma época, amarra os principais
motivos condutores de sua obra, como uma verdadeira poética.
No contexto de sua escrita
é, no entanto, original; diversamente da maioria de seus poemas,
"Self-Portrait" concentra-se em um foco de atenção: a pintura-poema e
seu observador-criador. As relações entre eles mudam sem cessar, não há
conclusão possível ao diálogo, mas muitas possibilidades são expostas, até
mesmo a da destruição. O poema é a vivência da busca, e anuncia a oscilação
constante do universo, no qual a vida corre sempre diante da mimese
convencional: “não se pode guardar, entesourar/aquele momento como um bloco;
também ele está fluindo, fugaz” (Syringa”). Assim, a própria possibilidade de
representar pela arte é questionada, sem ser destruída.
Viviana Bosi Concagh in John Ashbery: um Módulo para o Vento, São Paulo, Editora da
Universidade de São Paulo, 1999
"Mão com esfera refletora" (1935) de Maurits Cornelis Escher demonstra a forma geral dos reflexos esféricos e é uma tradição de estudos de retratos anamórficos indo ao encontro do Autorretrato num espelho convexo de Oargiminino (1524).
Análise filosófica da pintura “Mão com
esfera reflectora”- 1935
A pintura ao lado é de autoria do artista holandês
Maurits Cornelis Escher, que nasceu em Leeuwarden em 1898 e morreu em
Hilversum em 27 de março de 1972. “Mão com esfera reflectora”, nome da
obra, apresenta uma série de detalhes que podemos interpretar através de uma
detalhada análise visual e filosófica do quadro. A esfera, que tem
aproximadamente o mesmo formato do planeta terra, pode representar o mundo do
artista, onde seu rosto na figura transpõe a idéia de que ele é o centro do seu
próprio mundo, pois se trocarmos o cenário por outro, a figura central
continuará sendo a face do autor. Outra perspectiva possível da imagem é a
deformação do mundo real, local onde o autor está, para o seu reflexo na
esfera, observa-se que o que aparenta ser o quarto do autor, quando observado a
partir do reflexo, é modificado conforme se afasta do rosto central, efeito
esse que pode representar a idéia de que quanto mais afastado algo está de uma
pessoa, maior a chance desta ter uma visão errada do objeto. E por incrível que
possa parecer, a obra também transmite a idéia de que pessoas em diferentes
lugares têm opiniões distintas, não há possibilidade de duas pessoas em lugares
diferentes terem a mesma visão do reflexo da esfera embora estejam no mesmo
ambiente.
Agora levando em conta a relação sujeito e objeto do
processo de conhecimento humano, na pintura acima, pode-se concluir que o autor
é o sujeito, e que está analisando o objeto efetivo que é o conjunto autor mais
ambiente. Podemos dizer que, ao ser feita a análise do objeto pelo sujeito,
este está tendo uma visão modificada do objeto, onde esta visão é única e
exclusiva dele, pois o mesmo também faz parte do objeto. Desempenhando assim, o
sujeito e o objeto, uma relação de reciprocidade entre eles.
Tatu do E.T Geek.com, http://etgeek.blogspot.pt/2012/02/interpretacao-filosofica-ep2-analise.html,
2012-02-25
JOHN
ASHBERY: O PAPEL CONVEXO
DANIEL JONAS
Contra todas as probabilidades, a
poesia de John Ashbery tornou-se uma ortodoxia e o seu estilo uma maneira, um
protótipo a ser emulado em série. As probabilidades são aqui uma literatura que
se mantém e auto-legitima a partir da sua aparente impraticabilidade e
ilegibilidade. É o paradoxo Ashbery: ser um poeta forte e, ao mesmo tempo,
ilegível; para uns o mais importante da contemporaneidade norte-americana e
para outros, os mais mordazes, alguém que ainda não foi traduzido para inglês. Esta estupefacção formulou-a o próprio:
“On the one
hand I am an important poet, read by younger writers, and on the other hand,
nobody understands me.” (Peter
Stitt, The art of poetry XXXIII: John Ashbery.)
Está em discussão, por isso, um problema de gosto,
sob a implicação de uma fruição para a qual não se tem explicação. O objecto,
esteticamente satisfatório, apresenta um déficit de plausibilidade racional.
Apesar de pelo menos ter a vantagem de ser um argumento kantiano forte, a
inquietação de um aparato intelectivo deficitário ou menor para aceder ao texto
Ashbery não é despicienda. Outro problema derivado deste encontra-se na
reflexão sobre o cortejo de artífices seguidores de Ashbery. Dificilmente alguém
com linguagem tão cifrada terá seduzido tanta gente, entre simples descendentes
de simpatia literária e herdeiros técnicos. É um problema de dimensões
consideráveis, já que esta coterie arrisca-se a pilhar
definitivamente a força original do seu modelo, já suficientemente fragilizado
neste festim de rapina dos apóstolos. Anthony Howell observa o risco de a
fórmula ser falsificada em repetição e a expressão mudada em cliché, vantagem
contudo inexcedível para o efebo bloomiano que, nessa carnagem emulatória de
co-descendentes, leva o saque por exaustão da voz do poeta forte anterior, quer
porque é o único a operar um corte fundamental com ela, quer porque os outros
efebos eventuais se confundem pela saturação do seu uso comum. A força esgotada
do primeiro é a força proporcionada ao segundo, aproveitador fatal dos despojos
sem que por isso tenha as 'mãos sujas do seu sangue'. Estará, por isso, Ashbery
destruído antes de tempo, antes sequer de ter sido compreendido? Ou, vítima
infeliz de uma validade anacrónica, terá sido gasto já antes de uso por uma
posteridade clonada? Um dos sintomas deste mal, adiantado pelo próprio Ashbery,
radica na proximidade física dos grandes poetas em relação aos poetas
adolescentes, seja por força da massificação mediática seja porque aqueles são
geralmente figuras académicas, podendo, ao preço de uma propina, ser
pessoalmente interpelados.
Por outro lado, o paradoxo Ashbery dá-se em grande
medida porque nos próprios fundamentos da sua poesia parece pedir o divórcio
prévio a um casamento que ainda não se deu. Esta aparente hostilidade parte de
advogar que o seu cônjuge literário (assumamos esta imagem de autor e leitor em
núpcias) o repudiou. Ashbery explica:
“If the reader is not wanted by the text, the text was
not wanted by the reader.” (David
Herd, John Ashbery and American Poetry.)
Tal
dificuldade de comunicação é assim imputada ao leitor que, ao desprezar
inicialmente o texto, provocou o seu próprio estranhamento. Um texto
rebarbativo desta recusa inicial, portanto, ou uma simples questão de oaristos.
Mas mais elementos são aduzidos por esta questão particular sobre prazos de
validade e ininteligibilidade discursiva.
Constituiria programa fundamental de Ashbery e da
New York School, irmandade estética e pessoal constituída por, entre outros,
O'Hara, Koch e Schuyler, promover o chamado corte com o regime de Ginsberg e
Olson, isto é dizer com a Beat Generation e os Black Mountaineers. Este locus
solus almejado pela New York School era de intenção cordial, antes de
mais, na medida em que Ashbery defendeu inclusivamente nunca ter havido um
programa, só família. Na verdade, o poema para estes funcionaria como um tipo
de lembrança dada por ocasião de um jantar ou encontro entre amigos, sendo
efeito e não causa desses encontros. Não haveria, assim, nenhuma razão a não
ser a simples vontade de estarem juntos, servindo o poema apenas a celebração
dessa amizade como pequeno 'token' memorialista. Uma escola sem programa
aparente, mas pelo menos responsável pelo regresso ao chamado poema ocasional.
Para Goethe, a poesia ocasional constituiria o estilo mais elevado, plausível
para a actualidade e ainda criativamente imaginativo, ou, no reforço de Goodman
"a arte da vida", observação ampliada no contexto da América dos anos
cinquenta e no seu entender que qualquer forma de cotejo avant-garde só
sobreviveria nesse tipo particular de poesia. Seremos deste modo levados a
presumir que Ashbery só pode aspirar a ser 'ocasional reading', consequência
inevitável da sua produção do dia? Pois como pode aspirar a mais quando o seu
recorte epistemológico é por definição precário? E como lidar em teoria com
esta possibilidade: ser poesia para vida tão curta?
A interrupção ou a possibilidade que a interrupção
tem de modificar o rumo de um poema, seja o telefone que toca ou alguém que
bate à porta, é um elemento instanciador de poesia, aquilo de que a própria
poesia se faz. Esta qualificação de poesia não ignora ecos da filosofia
pragmatista de William James, quando observa a necessidade de relações de
partes da nossa experiência, ou o encontro contingente com factos de alteração
de verdade que mudam as nossas convicções provisoriamente. Estas crenças
modificadas, ao impelirem-nos à acção, descobrem novos factos que nos levam a
agir conformemente, daí que se processe uma dupla influência permanente na
nossa mecânica de conhecimento, uma dialéctica de revisionismo quotidiano.
Assim que tal centralidade no momento e nas suas flutuações possa possibilitar
a um poema benefícios vindouros, embora provisórios. Afinal até um poeta
ocasional como Ashbery lamenta a fatídica
“Disappearing ink that doesn't outlast winter and its
holidays, its occasions.” (In Selected
Poems (agora SP): Flow Chart.)
E
daí que qualquer instância de verdade não permaneça também, havendo lugar a uma
constante parafernália de substituições de modelos de verdade, como se os
modelos de verdade não fossem senão opositores racionais da ideia de morte. A
grande interrupção que preocupa todos os poetas pode, ironicamente, vir a
interromper em definitivo o curso do poema ocasional que em si acolhe todas as
interrupções da vida e por elas é estimulado. O pequeno acontecimento é eleito
como a prova mais credível de existência, apesar de aparentemente
desproporcionado face à dimensão da morte ou à sua magnitude estatística.
De uma forma geral, os poetas do pós-guerra
partilharam uma obsessão pela grande ruptura estética, esperando-se dessa forma
um tratamento tópico de alto fôlego, em resposta a um traumatismo de guerra ou
a um traumatismo estético, este da herança modernista. Porém, a ruptura
estética de Ashbery é motivo de estranhamento literário, e a sua vontade de
distanciamento terá sido pouco controlada, a ponto de levar a sua poesia a sair
de pista. As temperaturas altíssimas de complexidade discursiva alternam com a
'petty thing', frequentemente notada em formas pouco poéticas:
“In the
casual track of a zipper my penis
once got
stuck, and it's been like that ever since” (In SP: Hotel Lautréamont.)
O bathos contra o pathos, ou o
ridículo contra o sublime, é apenas uma manifestação desta provocação
essencial, uma transferência para o poema do seu próprio lugar na poesia americana,
pária ao tempo, sintomaticamente inserido num volume intitulado Hotel
Lautréamont. Mas uma coisa é um movimento reactivo de Ashbery em relação às
paixões inflamadas dos seus críticos, outra coisa é aquilo que Ashbery
intimamente deseja, isto é, ser poeticamente admitido na comunidade de que se
reconhece membro. Temos, pois, em Ashbery uma espécie de poeta democrático
ostracizado pela sua comunidade, ou, pelo menos, mal compreendido, o que
constitui problema de resolução difícil por contraditório, pois que na sua
acepção de comunicação não cabe a transmissão de coisas já conhecidas:
“My
intention is to communicate and my feeling is that a poem that communicates
something that's already known by the reader is not really communicating
anything to him and in fact shows a lack of respect for him.” (Other Traditions)
O seu impulso, ainda que sustentado num aparente
paradoxo, é o de comunicar com o seu leitor num regime de comunhão afectiva.
Esta comunhão adopta todos os elementos coligidos da vida particular comummente
perfilhados. Estas
pequenas instâncias afectivas são "emblazoned T-shirts", "games
of scrabble", "the celebrated omelette au Cantal" ou "the
hog- -shaped piece that is light green shading to
buff at one side". O carácter monumental
da obra de Ashbery faz-se precisamente num amontoado de particularidades ou
minudências facilmente reconhecíveis pela generalidade dos leitores, visando
uma construção maior, ou um palácio de cacos. E aqui recupera, igualmente, a
instância horaciana ut pictura poesis,na medida em que
constrói a partir desse objecto familiar um mosaico ecfrástico, uma amálgama
imagética que, no suporte do texto escrito, acaba por contrariar aquele
movimento de degenerescência da arte pictórica que António Feijó notara como
característica da primeira metade do século XIX. O movimento que leva o
pictórico ao pitoresco é, no caso de Ashbery, revertido por um aparente
amontoado pitoresco que se transforma em pictórico, precisamente porque agora é
a literatura tão facilmente executada que pode emular as outras artes,
nomeadamente a pintura. Pensando na modernidade da pintura em geral e em
Courbet em particular, que desloca o centro de gravidade da tela confundindo os
seus centros de interesse (os centros de interesse encontrar-se-iam por toda a
superfície do quadro), o desenho literário de Ashbery desvia, através de uma
espécie de persuasividade caótica, o olhar do leitor que, nas palavras de
Greenberg, se torna definitivamente uma "máquina não ajudada pela
mente". Dir-se-á que Ashbery quer também expurgar da leitura a literatura
e as ideias, promovendo uma polifonia com vários pontos de fuga, exigindo ao
leitor uma cooperação de resistências, uma nova psicologia, disruptiva, que
conviva com o texto e de certa forma nada espere do texto, amistoso na sua
inimizade, por assim dizer. A inimizade do texto é frequentemente uma condição
da sua opacidade:
“Eu acho que a minha poesia procede
como se um argumento subitamente descarrilasse e algo que se iniciara claramente
se torna, subitamente, opaco.” (Ashbery, Auto-retrato num
espelho convexo e outros poemas)
Vemos que a experiência de incomunicabilidade é o
mote afinal da poética ashberiana e, no processo de leitura, a falha de
comunicação, o salto lógico, o seu maior predicado. Mas como pode um texto não
querer desesperar o seu operador quando se promove a partir da sua
inexequibilidade operatória? Shelley ensinou-nos a sermos cautelosos com esta
ininteligibilidade aparente num poeta, pois que este como hierofante de
inspirações não democraticamente disponibilizadas pode, platonicamente, aceder
ao futuro e reflectir as sombras que o porvir faz incidir sobre o presente.
A fuga de Ashbery à legibilidade pode ser um efeito
perverso da sua ansiedade contra um possível engavetamento numa determinada
linha estética. A sua escola sem programa é sintoma dessa incómodo da
previsibilidade. Uma outra explicação para essa ilegibilidade táctica tem,
porém, que ver com a sua ansiedade de claustrofobia sectária, concretamente na
possibilidade de a sua poesia poder correr o risco de ser endossada à
literatura gay, armário literário perverso para quem tem aspirações demiúrgicas
universais. A ansiedade acabaria por provocar, ironicamente, um ricochete
infeliz que destacou definitivamente Ashbery dos círculos da sua comunidade
sexual. Em A Wave, contudo, esta identificação restritiva parece
ter sido violada por uma urgência contextual de renegociar a filiação, abalada
pela emergência da Sida.
Quando
Ashbery foi convidado para apresentar comunicações nas Charles Eliot Norton
Lectures decidiu falar de negligência literária e, para esse fim, levou um
grupo de autores esquecidos ou menores que, segundo ele, o terão influenciado
decisivamente. Esta intenção não foi ingénua. Ashbery procurou fazer luz sobre
questões de esquecimento poético e, desse modo, mostrar as suas preocupações
por uma negligência literária eventual a que poderá ser votado também. Esta
operação de charme envolvendo Clare, Beddoes, Wheelwright, Riding, Schubert e Roussel,
tinha como principal propósito levar fantasmas a Harvard, uma família de
vagabundos e proscritos poéticos que, em passeio pela laje polida do edifício
augusto, pediam reavaliação no cânone, requisição muito ao interesse de Ashbery
que mais depressa se julgaria seu consanguíneo. Estes eram poetas que ele dizia
usar como inspiração para os seus poemas, 'in order to get started'. O
interesse deste ponto é que Ashbery, contra Bloom, aparenta
capitalizar a herança dos seus predecessores a seu favor, lendo-os no interesse
do presente. Mas a escolha destes nomes significa, ao mesmo tempo, não temer o
efeito perverso de sucumbir à identificação com personagens secundárias em
literatura, antes julgar-se com força de as içar ao plano onde idealmente
pertencem. Ashbery, no entanto, usa-os primordialmente como forma de, falando
de outros, falar de si próprio e iluminar as sombras.
Se, intuitivamente, a obra literária depende de
adjudicação dos críticos para aspirar à legalização como literária, já as
primeiras produções ditavam os deveres aos críticos e não estes àquelas, porque
também os críticos precisaram que lhe ensinassem o que era isso de ser
literário. Claro que, imediatamente depois, nem esse patriarcado literário, ou
aquilo a que chamamos clássico, pôde recusar esta vistoria cíclica, pois que o
atributo 'clássico' não sendo de forma alguma genotípico não o poderia ser tampouco
por direito vitalício, tendo que se sujeitar a deliberações periódicas. De modo
semelhante, a literatura ocasional é tão ocasional quanto um clássico um
clássico, sendo este muito mais um clássico ocasional, do que a primeira
ocasional clássica, passo o quiasmo. É certo que uma literatura deste tipo mais
dificilmente aspira à nobreza, pois que os instrumentos de análise
hermenêuticos serão provavelmente escassos, inúteis, ou simplesmente
anacrónicos, mas não é peremptório que os avanços interpretativos não descubram
na sua arqueologia de signos a chave para aceder a tal texto. Tal dificuldade
acontece aqui, nesta proporção de grandezas em que um universo hermenêutico não
é especializado o suficiente para desbloquear a cifra, ou seja, o objecto em
análise é demasiado hermético, restritivo ou cristalizado no tempo para que se
aceda a uma interpretação. E os termos críticos para aceder a Ashbery são
escassos ou deficitários, já que é de lei que a poesia de um grande
contemporâneo exceda a linguagem disponível para se falar dele. Se não, as
nossas descrições apaziguariam o objecto de vez, integrando-o sem cólicas.
A retórica de Ashbery, inapreensível como
aparentemente é, permite-nos essa dupla possibilidade especulativa: ou é de
alto quilate, ou é uma fraude, já que é da inerência de qualquer poeta forte a
ruptura com o velho a partir de uma fala oracular de substituição. Este
movimento de ruptura visa reintegrar a linguagem a partir das circunstâncias
sociais que a questionaram. Restituir a linguagem é uma forma de reconstituição
de ordem pública, uma forma de colonizar ab ovo o baldio
histórico-social que ostracizou o escritor bem como a sua comunidade afectiva,
uma pretensão de agrar o deserto poético e, através disso, proceder ao
restabelecimento físico da comunidade. Nas palavras de Wordsworth "to
write for them about them personally" por via da voz profética do poeta,
sensível à necessidade de terapia. E nos termos de Ashbery, inspirados em
Shelley, esta terapia só poderá ser feita por via de uma comunicação nova, um
'sing me something new'. Assim como observou a respeito de David Schubert:
“The actual sense of the
words is that the poem consists of speaking what cannot be said to the person I
want to say it.” (Other
Traditions)
Este afã pelo novo, pelo desencarceramento da
linguagem, por polir a pátina riscada, obriga o poeta a ser propositadamente
mal-compreendido para atingir o lugar da melhor comunicabilidade, que é o agora
onde as coisas acontecem.
O
poema ocasional radica numa procura insistente pelo aqui e o agora, aquilo que
é novo no nosso pensamento, procura que só encontra através de um retiro a que
o poeta se obriga longe da comunidade. Este retiro busca afinal seguir o
conselho de Henry James à risca: "be one of those people on whom nothing
is lost." Mas isso não implica a convenção idealista de um poeta à
Hölderlin, habitante único do seu ermo de epifanias; o retiro do poeta faz-se
no meio da comunidade, porque a revelação só se encontra nas pequenas
particularidades de conhecimento geral. E o corte epistémico desta escola não
escola de Nova Iorque é esta plausibilidade com a actualidade a partir do
escrutínio miúdo pelo não procurado, pelas implicações intricadas na ocasião.
Também para a ocasião se deve direccionar o olhar,
que topicamente nos redirecciona como uma óptica cinematográfica, como no caso
do poema do volume Some Trees 'The Instruction Manual'. Este
'manual de instruções para o uso de novo metal' que é abandonado por divagações
sobre Guadalajara é uma forma ardilosa de Ashbery dar instruções sobre o uso da
sua própria poesia. A sua poesia é uma poesia de distracções e o poema cedo
esquece o manual, levando-nos numa viagem mental a Guadalajara.
Curiosamente, Ashbery como anfitrião seria inábil pois - pelo menos até à data
– nunca lá havia estado. Esta visita empiricamente incompetente lembra-nos que
o poema não precisa de lá estar para estar, sendo também que a Guadalajara que
Ashbery nos mostra é a Guadalajara do poema e não outra. Esta visita por uma
ficção de Guadalajara não permite decidir da sua inadequação real tópica,
mostrando através de um expressionismo abstracto que todas as possibilidades de
existência se realizam por intermédio do olhar do poeta. O problema do fidedigno
aqui é assim parodiado, pois parece prenunciar-se deste modo que para se falar
de um lugar ou de alguma coisa não é implicado o conhecimento factual, e um
poema que falasse de Guadalajara depois de ver Guadalajara não seria nem mais
nem menos capaz ou adequado, porque a subjectividade inviabiliza qualquer
esquadrinhamento da sua veracidade objectiva. E exactamente porque Ashbery
escolhe o olhar não nos é possível ser introduzidos na nossa acepção de
Guadalajara e decidir aí o que ver. Nem mesmo por via de um rompimento
obsessivo com o fluxo sintáctico do poema que nos fizesse saltar linhas a nosso
bel-prazer para marcos previamente assinalados, correspondentes aos elementos
introduzidos. Isto é, querendo ver o campanário iríamos imediatamente ao verso
56, a filha do guarda ao 58, o sujeito bem posto ao 16, a praça pública ao
10, et caetera. Ainda com este expediente um tanto neurótico o que
veríamos ainda seria o que Ashbery entendeu que víssemos, o que o seu olhar
determinou, vedando-nos dramaticamente aquilo que não está lá para ver. A nossa
moção é a de Ashbery que, à semelhança de um filme de um plano só, escolhe as
cenas e a sua sequência em clara autocracia óptica. Repare-se em 'And Ut
Pictura Poesis Is Her Name':
“Now,
About what to put in your
poem-painting:
Flowers are always nice,
particularly delphinium.”
Esta
eliminação da mimésis convencional (dir-se-ia a partir destes versos: eu não
falo de flores; eu ponho as flores) dá-se em último grau pelo abandono do medium poema
que em plena progressão vai dispondo os seus elementos a tempo real de leitura,
como se ao olharmos para um quadro víssemos concomitantemente a aparição dos
objectos ou dos traços, sem deferimento temporal, nem antecendente nem
procedente. Auden notara que a sua poesia visa o desregramento de todos os
sentidos, e isto é visível também na cosmética a que sujeita o medium.
“He is always bringing us
face to face with the very latest moment in our thinking: the now where
anything can and must happen, the Locus Solus where writing
begins.” (Other Traditions)
Estas
palavras terminam a comunicação sobre o poeta francês novecentista Raymond
Roussel, incluído nas seis comunicações que Ashbery apresentou nas Charles
Eliot Norton Lectures, todas versando o tema de negligência poética, como
vimos, propondo para tanto uma reavaliação de seis poetas depreciados, quer por
aparente menoridade literária quer simplesmente por institucionalizada
nulidade. O caso específico da comunicação sobre Roussel interessa aqui mais do
que as demais. Se o que presidiu à escolha de cada um desses poetas foi a
intenção de Ashbery em fazer incidir luz sobre si próprio e a sua poesia, no
caso de Roussel isso nota-se especialmente. A sua obra acaba, curiosamente, por
providenciar uma espécie de chave alquímica para a obra de Ashbery, chave que
ironicamente faltaria ao primeiro no entender de Breton. Há na obra de Roussel
uma aparente anomalia: querendo ser narrativa não possui um único assunto, por
assim dizer. Em Nouvelles Impressions d' Afrique, por exemplo, a
prosa em alexandrinos, estruturada naquilo a que os franceses chamam 'romance
em gavetas', torna-se um verdadeiro labirinto de associações livres e
descrições abandonadas, apoiadas em observações parentéticas em que uma frase é
ampliada até ao limite num sistema em fole a que se aliam inoportunas notas de
rodapé também em alexandrinos rimados. A mancha gráfica deste papel encrespado
de parêntesis (duplas e triplas por vezes) produz, assim, uma notação do borrão
psíquico interior do autor, hostilizando qualquer tipo de intrusão. Mas esta é
a mais branda das hostilidades do texto, dado que cabe ao seu emaranhado lógico
o abuso final. Os topoi de Roussel são miniaturas descritas
exaustivamente e com perícia, substituindo completamente aquilo que se pensaria
ser o mote do texto. É um mote anómalo, na medida em que serve como introdução
a toda a sorte de relações imprevisíveis. Não invulgarmente, são personagens
que são substituídas irreversivelmente por ilustrações encontradas em
cabeçalhos de papel de carta, por exemplo, ou em rótulos de garrafa mineral,
sejam essas ilustrações uma banda a tocar ou uma fonte. Estes objectos
observados crescem subitamente de importância na narrativa, num movimento que
vai do maior para o menor, sendo o menor aqui afinal o maior, já que o menor é
hiperbolizado e passa a centro da narrativa, como, aliás, acontece com tudo o
que distrai a atenção do narrador. A fonte que entrevê num rótulo de garrafa é
bastante para obrigá-lo a abandonar um casal dialogando numa mesa de
restaurante, motivo inicial da diegese. A fonte é analisada ao longo de
cinquenta páginas microscopicamente. O casal será retomado no final só para se
constatar que era inaudível.
Esta
fuga descritiva é uma fuga infantil de regresso e a apetência pelos objectos
insólitos um flashback emocional: "le souvenir vivace et latent d'un
été/Déjà mort, déjà loin de moi, vite emporté". Esta falha na
responsabilidade argumentativa, a impossibilidade de levar a tarefa narrativa a
cabo é um sintoma de desvínculo infantil perante o compromisso. Deste modo, a
recusa de argumento possibilita certas visitações fantasiosas da consciência,
uma variedade de quadros vivos um pouco à maneira de souvenirs, se souvenirs
pudessem ser cubistas.
O
primeiro canto de Nouvelles Impressions d' Afrique,
"Damiette", é paradigmático. Abre com considerações sobre a casa onde
St. Louis, o IX, viveu, salta para antiguidades egípcias e, daí, para uma data
de observações sobre a novidade de tudo quando em comparação com aquelas. Daqui
perde-se em digressões várias, chegando a englobar reflexões em torno de coisas
certamente recusáveis, como um emético para um pecador que acabou de tomar a
hóstia ou um afrodisíaco para um enforcado. Este regime de fecha e abre constante
parece ter cativado Ashbery (Nota: Nesta mesma comunicação sobre Roussel, Ashbery
não resistiu à argúcia de a estruturar segundo o modelo das próprias narrativas
de Roussel. O seu ensaio começa com considerações sobre "Damiette"
para as abandonar de seguida até voltar a elas no final da comunicação, que é
por via de uma interessante operação metatextual envolvida numa estrutura
lógica anelar.) O poema ""How much longer will I be able to
inhabit the divine sepulcher"" mostra-nos uma personagem sintáctica
inicial que é abandonada por incursões confessionais abruptamente interpostas
num esquema de gavetas sintácticas de elipses psíquicas que trazem à narrativa
poética um desfile de torsos: Tom, o aluno, o rapaz no acidente de carro, a
abelha. Este séquito de elementos associativos promove no fim o regresso ao
verso de abertura por uma degradação da elipse, que serve afinal a volta do
arco já que nos leva de regresso ao "long sepulcher" com que encerra
o poema. O leitor fica mal tratado neste sistema, vítima de uma viagem
turbulenta e imprevisível, arremessado no final à costa de onde partira.
A
forma é decisiva no sistema Ashbery. E, tal como acontece em Roussel, a forma é
o assunto. O leitor é implicado num pessoalíssimo rodopio discursivo automático
que, estranhamente, tende ao diálogo, mesmo que afásico. Diz Ashbery sobre Roussel:
“And yet the scenery along the way has
made its point, amounting to something like daily life as it is actually lived:
boring and at the same time exciting in its unavoidability.” (Other
Traditions)
Tal
como Roussel, Ashbery faz poesia pela inserção de caracteres do quotidiano
através de uma forma neutra de dizer. A sua execução é igualmente parentética,
mesmo que suprima os signos gráficos da enunciação. De certa forma poder-se-ia
proceder à prótese parentética de Roussel no texto de Ashbery, e talvez esse
pudesse ser um método de leitura eficaz, não fosse isso um abuso de forma.
Outra operação possível seria mover os seus versos como peças num puzzle até
se apurar uma suposta harmonia lógica. Mas esta fórmula não é sensata.
Vernon
Shetley vê em Ashbery um dos três poetas norte-americanos do pós-guerra mais
significativos. Os outros seriam Bishop e Merril. Estes seriam de certa maneira
poetas post mortem, pois que a morte da poesia tem vindo a ser anunciada
desde o 'make it new' modernista. À ambivalência técnica de Ashbery - aliando
traços clássicos e de pendor oriental aos modernistas, como os haibuns e a
escrita de corte e colagem – soma-se a linguagem prática do dia-a-dia. Contudo,
é precisamente com estes elementos mais imediatistas, mais facilmente
reconhecidos pelo leitor médio, que o seu discurso esbate a transparência e
encontra a opacidade. Todo o profissionalismo hierático da voz profética do
poeta é, aliás, contrariado por uma espécie de poeta anódino em regime de
"fence-sitting". Este lugar modesto que o vate agora ocupa é
consequência lógica de uma consciência sensível aos sinais da actualidade, onde
o desenho do futuro se projecta no aqui e agora, ou no presente contínuo:
“Here I am then, continuing
but ever beginning
My perennial voyage” (In SP:Rivers
and Mountains.)
Por
oposição ao "Let us go then" de T. S. Eliot, a esse movimento em
direcção ao futuro que é o movimento próprio do poeta sucede esta imobilidade,
esta atenção ao momento, a um futuro já iniciado. Assim que se faça das
pequenas coisas a forma mais competente de absoluto, privilegiando-se, como se
viu, a bijuteria da vida. A vanguarda de Ashbery é peculiar. Rejeitando embora
traços da cultura dominante, torna-se finalmente fiel depositário da tradição,
na medida em que tradição é agora tudo, pois que a vanguarda na opinião de
Hilton Kramer teria sido institucionalizada. Andar em frente na tradição é uma
forma de a preservar, no sentido em que a visão nova logo se esgota por um
movimento de delapidação de visões a que a idade moderna obriga. A uma visão
impõe-se um rápido esgotamento de recursos, mas essa visão pode ainda
reciclar-se e no uso excessivo mudar-se em ganho. Nesta ortodoxia anarquizante,
ser modernista implica abdicar de o ser, devido a uma ontologia de constante
anulação. Não é necessariamente aqui que Ashbery se destaca de Creeley,
Levertov ou Lowell. Porém, enquanto estes já cristalizaram em canónicos, o
primeiro ainda não, pelo menos em definitivo, e possivelmente 'morrerá' quando
o for. O seu programa de anti-programa e de subtracção ao sistema pode ainda
verificar-se no encómio por ocasião da morte de Frank O'Hara. Louvando o
desvínculo político do seu amigo, Ashbery faz a apologia de uma poesia sem
intenções propagandísticas, mesmo por alturas de 1968 com o levantamento das
vozes de reacção à campanha do Vietname. Louis Simpson viu naquele encómio uma
crítica a todos os poetas que se pronunciavam abertamente contra a guerra nos
seus poemas. Diria Ashbery:
“Poetry is poetry. Protest
is protest. I believe in both forms of action.” (Herd op. cit.)
Simpson, no entanto, ao tentar o reatamento complicou:
“The occasion has not
produced much good poetry – occasions hardly ever do – but it may serve to
change the poet profoundly... Political poetry need not be about a political
occasion; it may be about a butterfly.” (Idem)
Se
por um lado este ponto sara a divergência entre os dois quanto aos instrumentos
de manifestação ideológica, em termos de doutrina estética agrava-a, quanto à
essencialidade das premissas estéticas de Ashbery e da New York School fundadas
na ocasião. Pode-se reparar que a ocasião a que Simpson aludiria seria a
ocasião política, mas o apotegma inicial retumba na produção poética de Ashbery
fundado na apologia da ocasião. Esta hiper-sensibilidade política agravou o
debate sobre forma e conteúdo em arte já em curso. Susan Sontag em Against
Interpretation defendera um urgente regresso ao estilo,
privilegiando-o em detrimento do conteúdo. O estilo deveria ser complementar
aos sentidos, ou "what is important now is to recover our
senses" (Idem), sendo os sentidos aquilo que foi
embotado pela cartilha conteudística que esquecera a forma. "In place of hermeneutics we need an erotics of
art", eis a proposição do revisionismo estético. Este
ricochete formal ignorava qualquer intenção propagandista em invólucro formal
competente. Assim que Leni Riefenstahl, como exemplo mais contundente desta
exaltação sensorial, não deveria ser entendida como medium propagandístico
mas como esteta sensual capaz de transformar Hitler em 'Hitler'. Aceitar a
bonomia de Sontag em relação à graça sensual e inteligente de Leni, seria
acreditar na separação eficaz de forma e conteúdo. Seria admissível que o III
Reich fosse encomendar o trabalho a um tosco artífice que abusasse de planos
picados? Ou poderia Sontag apreciar as qualidades estéticas de um naco de
vitela sendo ela vegetariana? Não creio que seja da essência da propaganda ser
estúpida, muito menos formalmente.
Ashbery mistura forma e conteúdo
inapelavelmente, campeando juntos rumo à opacidade, e os sentidos são afinal
apreendidos por uma anomalia de observação:
“The surface
Of the mirror being convex, the
distance increases
Significantly” (In SP:Self-portrait
in a convex mirror.)
Escrevendo
sobre o auto-retrato do pintor maneirista Parmigianino, e escrevendo sobre o
próprio momento de génese de escrita através da observação do quadro, Ashbery
recorre a considerações sobre arte pictórica para melhor considerar a mecânica
da sua própria arte e, dessa forma, ajustar a sua verificabilidade. Mas como a
sua arte é a arte da deformação, seja por excesso ou por defeito, na ampliação
de importância de pequenos objectos como víramos em Roussel ou na displicência
com que trata a magnitude de outros, a própria consideração metatextual dessa
condição não pode nunca ser decisiva, muito menos sendo essa metatextualidade
de ordem estética. Se o comentário é ele também de ordem formal o que se ganha
é uma permanente viciação de discurso que muito longe de iluminar escurece. O
papel parece ter sido o veículo de eleição para esse vício discursivo, mas em
intervalência numa comunhão de esforços com outras artes, nomeadamente a
pictórica. Ora esta dá ao poeta precisamente a manifestação mais pura do que
ele gostaria de atingir através do plano escrito. É como se, aliada à
banalidade da execução e ao singular traço de fugas constantes, a sua escrita
de deformações e reflexões inusitadas procedesse à apreensão do real disforme e
minucioso. O corpo é uma extensão dos objectos refractários, constantemente a
processarem uma reavaliação da sua própria condição e que, na sua instabilidade
característica, obrigam o sujeito verificador a fazer depender a sua observação
do real dessa insistente volatilidade e inquietação formal. O papel é o medium,
convexo, onde a escrita denuncia a presença de objectos deformados e, através
dessa deformação formal extra, os reintegra e os segura por instantes num plano
que garante o seu conhecimento real e total, ainda que fugaz.
Daniel Jonas, http://web.letras.up.pt/primeiraprova/ashbery.htm
BIBILIOGRAFIA SELECTA
ASHBERY, John
1986 Selected
poems, Manchester, Carcanet.
1995 Auto-retrato
em espelho convexo e outros poemas, trad. António M. Feijó, Lisboa, Relógio
d'Água.
1998 Wakefulness,
Manchester.
2000 Other Traditions,
Harvard UP.
HERD, David
2000 John Ashbery and
American Poetry, Manchester, MUP.
SONTAG,
Susan
1966 Against
Interpretation, New York, Delta Book.
John
Ashbery. O eterno conversador que alterou
o ouvido da poesia
Diogo Vaz Pinto
O poeta
norte-americano, um dos últimos vultos incontornáveis da literatura do século
XX, morreu este domingo em casa, aos 90 anos, de causas naturais
Era preciso que ele morresse para que o
desmantelamento da linha do horizonte que a poesia moderna nos legou deixasse
de ser uma suspeição. Depois das mortes de Derek Walcott, Ferreira Gullar,
Herberto Helder e Tomas Tranströmer, a profecia de Charles Simic sobre o tempo
dos poetas menores que estaria para chegar já não perturba o sono a ninguém. É
mesmo para o lado que os nossos dias dormem melhor. Já assim, foi com uma
boa dose de discrição que John Ashbery morreu na manhã de domingo, aos 90 anos.
Desde há muito um dos mais distintos entre a espécie mutante que causa arrepios
às convenções literárias, o poeta norte-americano, tantas vezes referido como
provável candidato ao Nobel, morreu de causas naturais na sua residência, em
Hudson (Nova Iorque), ao lado do marido, David Kermani.
Ashbery teve o enorme mérito de se afirmar como uma
das mais influentes figuras da segunda metade do século XX na literatura
norte-americana e por todo o mundo entre os que gostam de poesia, e isto sem
nunca afrouxar o desafio aos imperantes modelos da narrativa, indo para lá do
ceticismo e tornando a sua obra uma leitura que entretém fascinantes suspeitas
em relação à conversa que se ouve nas bodegas literárias.
Se permaneceu uma presença enigmática, e até algo
remota, manifestou, não poucas vezes, a sua frustração sempre que a sua poesia
era tomada como obscura ou inacessível. E ainda que tenha sido dos poetas que
mais sentiu o parasitismo dos epígonos, isso não levou a que, apesar do
entusiasmo da crítica, alguma vez tenha conquistado grande popularidade.
Defendia que, ao contrário de um certo alheamento, os seus poemas buscavam essa
dimensão privada que há em todos nós, as dificuldades em que se mete o nosso
pensamento. Nesse sentido, “são acessíveis a partir do momento em que alguém se
interesse em aceder-lhes”.
O contraste entre a aclamação pelos seus pares e uma
recepção fria por parte do público marcou todo o seu percurso, tendo Ashbery
marinado nos círculos avant-garde antes de, em 1976, a reputação ter começado a
precedê-lo, com a coleção de poemas “Auto-Retrato num Espelho Convexo” - que
integra, em parte, a antologia com tradução e posfácio de António M.
Feijó, dada à estampa em 1995 pela Relógio d’Água - a tornar-se o primeiro
livro a ser triplamente coroado com o Pulitzer, o National Book Award e o
National Book Critics Circle, os principais prémios no circuito do livro
norte-americano.
Além disso, Ashbery foi também o primeiro poeta vivo a
ter um volume dedicado exclusivamente à sua obra no catálogo da Library of
America. E, em 2011, recebeu das mãos de Barack Obama a medalha National
Humanities, tendo a sua obra sido exaltada por ter “mudado a forma como lemos
poesia”. E, de facto, a sensibilidade que os seus poemas vão maturando exige e
conduz a um estado de consciência mais elevado e dinâmico. Como notou o crítico
John Bayley, as suas coleções de poemas refletiam literalmente essa lógica
interna de leis inventadas e que servem apenas para o universo específico,
sofregamente privado de um colecionador. O crítico refere que Ashbery, que
colecionou toda a vida obras de arte, livros e outros objetos, nos seus poemas
seguia o mesmo ímpeto, “reunindo curiosidades e profundidades, anedotas,
confissões, truques, inventários de objetos, os nomes de atores de segunda, os
nomes de filmes, os nomes de flores, e assim sucessivamente”. Os seus poemas
eram, em parte, unidades de armazenamento, em parte, o estado de
maravilhamento, sublinha Bayley.
É isto que faz com que seja fácil perder-se num poema
de Ashbery como num sótão atafulhado de mobília antiga e velhos objetos de
valor sentimental e que, sem o afeto e as lembranças para lhes dar vida, passam
por lixo. Mas essa baixa intensidade, essa linguagem que se funde musicalmente
numa meditação, que leva a uma tontura, como aquelas que sentimos sempre que se
entra num espaço furiosamente privado. “Os poemas dele sempre guardaram os seus
segredos, às vezes desafiadoramente, mesmo quando tanto o poeta quanto eles se
tornaram cada vez mais conhecidos”, nota uma vez mais Bayley. Num dos seus
longos poemas, Ashbery fala de uma “espécie de paz que se conquista se não a
estragares perdendo a paciência”.
“A atividade é levada a cabo por efeito do olhar, por
meio de gestos,/ do diz que disse”, lê-se noutro poema. E o crítico sublinha
como os leitores de Ashbery se sentem incluídos nos seus segredos, ao passo que
aqueles que não acedem a estes poemas, reagem por vezes com o tipo de amargura
de quem se sente deixado de fora, desprezado. O certo é que nem a crítica foi
sempre unânime na receção às quase três dezenas de coleções de poemas dele, e o
poeta inglês James Fenton disse que, às vezes, ao ler os poemas de Ashbery dava
por si “quase levado às lágrimas devido ao aborrecimento que estes causavam”.
E, por muito que seja sempre fácil reconhecer-lhe o talento, o domínio
impecável da língua, o enredo prenhe de subtilezas, Fenton teve apenas a
coragem de apontar os excessos próprios de uma opção estética que, sendo
arriscada, não poucas vezes resvalava numa tagarelice entorpecedora. De resto,
o próprio poeta reconheceu muitas vezes o enfado com que os leitores já
recebiam novos poemas seus, e brincava com isso, como acontece neste verso:
“Perdoem-nos este ponto de frivolidade dado no tecido da eternidade”.
Por outro lado, era desta audácia de uma poesia sempre
disposta a trocar o ar pesado e enfático por uma dobra extemporânea, algo mais
espontâneo, o tipo de observação humorada e inteligente mas fugaz, esses golpes
do ânimo indo e voltando numa conversa a dois ou três, entre momentâneos e
efusivos companheiros de alguma estrada ou rua, é dessa mistura de elementos,
das variações entre impressões triviais, o ritmo oral e súbitos rasgos de
erudição que se alcança uma dimensão mais complexa e dinâmica do próprio
pensamento. Stephen Koch talvez tenha ido mais longe que nenhum outro crítico
na descrição do tom desta poesia, ao descrevê-la como “um sussurro,
simultaneamente incompreensível e inteligente, com uma estranha pulsação que
varia entre picos de acentuada clareza e momentos de secura, marcados pela obscuridade
e languidez”.
Nascido em Rochester, no estado de Nova Iorque, em
1927, na entrevista que deu à “Paris Review”, Ashbery recordou a sua infância,
lembrando-se de si mesmo como um desses putos reservados, que se meteu com os
livros na falta de amigos. Fala ainda do irmão mais novo, que morreu com apenas
nove anos, de leucemia, tinha ele 12, o que lhe despertou um ineludível sentido
de culpa. Não era só por os dois se darem mal, andavam sempre à bulha,
mas Ashbery sentiu que o deixou ir-se com a pior impressão do irmão mais velho,
que passou a vida a atazaná-lo. O poeta diz que não sabe bem como isso terá
acabado por influenciar a sua poesia, mas sabe que foi importante e que por
isso está lá. É uma poesia que faz experiências com a experiência, e além da
morte do irmão, há os conflitos das primeiras interações com outros rapazes,
carregadas pelo peso da atração.
Ashbery cresceu numa quinta de pomares numa pequena
aldeia (Sodus, condado de Wayne), onde o pai cultivava e apanhava as maçãs.
Escreveu os primeiros poemas como se desenham folhas, casas e outras coisas à
mão, sem intenção de vê-las expostas no Louvre. Mas acabou por ter aulas de
pintura, e ambicionou ser um pintor antes de perceber que lhe era mais fácil
escrever poemas. Durante boa parte da sua vida sustentou-se como crítico de
arte, tendo vivido por uma década em Paris.
Nos tempos de estudante, em Harvard, além de ter
começado a aprofundar as suas leituras dos poetas modernos, travou amizade com
Kenneth Koch, que seria um dos parceiros de toda a vida no que toca à aventura
poética, e com uma série de outras futuras eminências no campo literário,
incluindo Wilbur, Donald Hall, Robert Bly, Frank O’Hara e Robert Creeley. Pela
cumplicidade que desenvolveram, mais tarde, viria a ser agrupado com O’Hara,
Koch, Ted Berrigan, Joe Brainard e Ron Padgett, entre outros, na chamada Escola
de Nova Iorque, uma etiqueta pela qual nunca chegou a desenvolver grande
afeição, sentindo que era uma forma de ensacá-los e passar por cima dos modos
tão coniventes nuns aspetos como noutros diversos de inventar saídas, lançar
pedras noutras direções, alinhando novos horizontes.
Não são muitos os poetas que, como John Ashbery,
tenham feito da própria morte uma mera vírgula algures na sua obra. Algo que
não interrompe, antes exprime uma pausa, e logo retoma o fôlego, ultrapassando
esse final, como algo natural e com o qual já contava. Os poemas tinham essa
sombra atravessada, sem ver nela um grande estorvo, mas lidando com ele,
negociando o crédito para seguir a pé, pela posteridade que fosse possível.
Como se o poema fosse uma arte de ir falando, aturando os dias, as horas,
imiscuindo-se na intimidade do porvir. O poema como algo sempre inacabado, com
a distância como seu principal assunto, participando dessa engrenagem que nos
diz que, se o sol se põe junto a essa vírgula, além dela outro já arregaça as
mangas, nessa persistência que, por muito modesta, não deixa que nada morra
inteiramente.
“É um microcosmo da vida do homem à medida que
delicadamente se dissipa, as suas longas sombras matutinas tornando-se cada vez
mais curtas à aproximação do meio-dia, o ponto alto do dia que poderia ser
comparado àquele súbito, tremendo momento de intuição que apenas tem lugar uma
vez durante toda a vida, e em seguida as formas mais plenas e curvas do
princípio da tarde, quando o Sol imperceptivelmente decai no céu e as sombras
começam a alongar-se até todas elas se apagarem na furtiva vinda do crepúsculo,
de certo modo misericordioso porque oculta as diferenças, os defeitos assim
como os sinais de beleza, que deram ao dia o seu carácter e, ao fazê-lo,
fizeram com que ele se tornasse um dia mais no nosso limitado acervo de dias,
lembrança de que o tempo está a passar e que estamos a envelhecer, ainda não
suficientemente envelhecidos para isso fazer qualquer diferença nesta ocasião
particular, mas mais velhos de qualquer modo. Neste preciso momento, o Sol está
a cair para além do horizonte; há alguns instantes ainda havia luz suficiente
para ler mas agora não, os caracteres impressos enxameiam a página, criam um
borrão impressionista. Daqui a pouco a própria página será invisível. E no
entanto não sentimos necessidade de nos levantar e acender a luz; é suficiente
ficar aqui sentado, grato pela lembrança de que mais um dia chegou e se foi, e
que nada fizemos quanto a isso. Que dizer das resoluções matutinas de converter
todos os confusos detalhes no ar à nossa volta numa coluna de números
inteligíveis? De redigir uma folha de balanço? Naturalmente que isto ficou por
fazer, e talvez estejas igualmente grato pela tua preguiça, contente de que te
tenha trazido a este ponto em que tens de confrontar o inexorável fim do dia
tal como, de facto, teremos um dia de confrontar a morte, e pôr a nossa fé em
algum poder superior que nos levará consigo para uma região de eternidade e de
luz. Mesmo que tivéssemos feito as coisas que devíamos ter feito isso não teria
provavelmente tido importância nenhuma pois toda a gente deixa sempre algo por
fazer e isto pode ser tão ruinoso como toda uma vida de crime ou de dissipação.
Sim, no fim de contas há algo a dizer a favor destes dias indolentes,
destilando cada um deles a sua gota de veneno até encher a taça; há algo a
dizer a seu favor porque não há maneira de os eludir.” (De “Auto-Retrato num
Espelho Convexo e outros poemas”, Relógio D’Água).