Foi em 1961 ou 1962, andava eu pelos meus 19 ou 20
anos, que adquiri o volume Poesia (1935-1940), de Vitorino Nemésio,
acabado de publicar pela Morais Editora no seu Círculo de Poesia. Na altura não
prestei grande atenção ao primeiro dos livros nele incluído, La Voyelle
Promise. Mas os outros dois, O Bicho Harmonioso e Eu,
comovido a Oeste, passaram a contar-se entre as minhas leituras poéticas
favoritas e reiteradas, em especial o primeiro. As experiências poéticas de
tipo heideggeriano, a relação entre o verbo, o mundo, a morte e a escatologia,
a oscilação entre a ascese individual, a compreensão da realidade, a exaltação
religiosa e a pulsão erótica, conquanto dimensões essenciais do universo
nemesiano (a última delas, de resto, só tardiamente revelada em pleno),
acabavam por me interessar menos nessa altura e foi bastante mais tarde que
procurei conhecê-las melhor e reflectir sobre elas.
O Bicho Harmonioso lembrava-me
o título de uma suite de Händel, O Ferreiro Harmonioso, e mesmo
agora, no ensejo de recordar essa experiência, o termo que me ocorre para
caracterizar a arte poética de Nemésio, tal como a vivi nessa ocasião, é o de
“ressonância”[1]. Os processos de Nemésio faziam-me supor que eram exactamente
ressonâncias como que de entrada e permanência em vibração de um corpo sonoro
na escrita poética, e também encadeamentos de harmónicas e de outros efeitos do
som enquanto fenómeno ondulatório, que o poeta procurava, envolvendo nessa
acústica muito pessoal tanto a materialidade fónica e vibratória como a
dimensão semântica e metafórica, no trabalho e achamento das rimas, das
consonâncias e das dissonâncias, na combinação de sonoridades e sugestões, nas
dinâmicas rítmicas propostas, nas alternâncias e bruscas rupturas prosódicas,
nas imagens e alusões musicais, até nas hiper e hipometrias do verso e noutros
desequilíbrios tecnicamente conseguidos que lhe serviam para acentuar o que
pretendia dizer com alguma propensão expressionista.
Entre a densidade do canto e a sugestão de
instrumentos musicais, o coração da própria sonoridade vinha assim desde o
nervo das coisas a reverberar pelo mundo concreto fora e a combinar-se, como
uma linha melódica que vai sendo sucessivamente harmonizada ou sobreposta a
outras, com efeitos mais esperáveis, mas igualmente de uma grande beleza
eficaz, da combinação de mar, insularidade e memória, das ondulações da
distância, das vagas e dos navios, das interacções e dialécticas de saudade e
presença, ansiedade, carência e plenitude, solidão e partilha, das
contraposições entre tempo do divino interpelado e tempo efémero e vivido da
condição humana individual neste mundo. Mais tarde, vim a perceber melhor esses
processos tão característicos do poeta.
Este homem, pensei então, não quer saber da rigidez de
teorias ou receitas literárias e engendra e inflecte os seus próprios recursos
técnicos como lhe apetece em cada momento. A sua liberdade poética oscila
muitas vezes entre a utilização e a transgressão dos cânones, mas sempre ou
quase sempre, com uma cuidada modulação fónica e rítmica nas suas próprias
asperezas. Nos metros regulares ou nos versos livres e naquilo que em Nemésio é
mais marcadamente derivado do Simbolismo, há sempre uma preocupação de ligação
ao concreto, de tensão vigilante entre a percepção do real e a palavra que pode
exprimi-lo, de transfiguração do quotidiano em intemporal, de relação de
parentesco ou proximidade familiar a figurar-se repetidamente como pista para a
evocação angustiada de um mundo perdido onde a identidade pudesse
verdadeiramente fazer sentido; e se há um propósito de trocar chãmente em
miúdos as grandes palavras e tiradas enfáticas de alguma poesia do tempo, há
também um orfismo muito próprio na procura de uma auto-diluição, a partir do
“canto necessário”, “em som e no ar que o guardasse”. Daí uma percepção da
existência de contiguidades inúmeras entre as coisas materiais e imateriais ou
imponderáveis, entre a razão e os sentidos, entre expressão poética e emoção
vivida, o que explica a ocorrência das ressonâncias e “transvibrações” mais
variadas, tudo isso também como um fenómeno ondulatório a propagar-se e a
amplificar-se de poema para poema seja no que respeita à realidade dos
referentes físicos sólidos, líquidos e gasosos, seja na expressão de estados
anímicos, intelectuais e emotivos: “Musical, todo fogo, em mim me vou e
expando” (“O canário de oiro”).
Ficou-me ainda a impressão de uma poética cuja carga
simbólica se investia por sequências expansivas, como ondas concêntricas a
partir de um núcleo irradiante. Alguns casos são absolutamente evidentes, como
a metáfora do ovo ou da ilha no meio das águas. E também o “canário de oiro” se
tornava o animal simbólico e fabuloso a preencher o próprio ser do autor em
osso, carne e sangue e, como medida e desmedida fulgurante do canto, a passar
muito para além desses limites individuais. Dando-lhe um destaque especial,
Nemésio referia-se a ele no final do seu tão importante prefácio ao volume de
1961. Mas notemos ainda que o canário de oiro se recorta contra todo um
bestiário feito de alusões e metáforas zoológicas no mesmo poema: águia,
milhafre, “aves de parabólica plumagem”, pombas, cordeiras, lobos, “a cordeira
preta, a do velo maior”, “catorze cavalos, todos de músculo solar”...
O registo musical passa a aliar o canto da ave ao
emergir e pulsar dos afectos, do fogo verbal das harmonias, das misérias do
bicho da terra, das afinações e desafinações desferidas a partir do seu
“diapasão de ferro”, onde perpassam anjos, vindos de Rilke, mas aqui “de
matéria nenhuma e de toda a arrogância”. Essa música é uma arte do tempo que no
tempo se consome e resolve, ainda sob uma aura romântica de frustração da
expectativa de um almejado “alto destino de poeta” que vem desde o primeiro
poema, “O bicho harmonioso”, no seu buraco vil, onde a noite “faz muito bem em vergar
uma gruta sem ecos”. Essa gruta é todavia bem mais sonora do que se diz no
lugar inicial e acaba por ter ecos sucessivos e reverberantes: passa a concha
pacientemente segregada, ou a uma aura de percussão das lapas “de que tirava
depois, como de castanholas, / Um som qualquer para acordar e desentorpecer os
caminhos” (“Sonho vivo”), e reconduz-se ao imo do búzio cheio de vozes remotas
(“Búzio velho”) ou “búzio de sonhar, de boca estreita, / onde a maré da minha
infância se perdia” (“Os Cardos”).
É assim uma gruta que podemos considerar transformada
em poço para um Narciso que, diferentemente da figura da mitologia grega, não
se contenta com o seu reflexo numa superfície espelhante e prefere ver-se em
ressonâncias vindas a pulsar desde as profundezas do ser, como em “A furna”:
“Debruço-me comigo no meu poço / – Tudo a fundo sonoro e emparedado – / E,
rente aos tampos, ouço, ouço / Meu coração aproximado.” Afinal, na furna, outra
modalidade da noite, o eco “é uma humidade”, calando o minério “Da minha estreme
poesia. / Cala-o para que eu próprio vá batendo, / Dos martelos comuns
abandonado, / O possível no opaco de atro urdume”.
Depois esta percussão em ecografia continua na “Ode ao
mar”: “Lá, uma vaga dera / Uma pancada rara / (A vaga minha madrinha), / não
sei com que força ou vara: / sei que a pancada vinha / direita ao meu coração,
/ que ainda hoje a reproduz.” Acrescentemos que, em “Outro testamento”, o
efeito mais importante de ressonância é perfeitamente explicitado neste outro
verso que comporta um dos sentidos fundamentais da poética nemesiana: “Pois
quando me comovo até o osso é sonoro”.
Decorridos 50 anos sobre as minhas primeiras leituras
de O Bicho Harmonioso, essa continua a ser a primeira coisa que me
toca quando volto a pegar neste livro.
NOTA
1.
Recorro ao Dictionnaire des Mots de la Musique de Jacques
Siron (Paris, Outre Mesure, 2002) para recapitular uma definição útil: por
ressonância entende-se a entrada em vibração passiva de um corpo sonoro por um
excitador exterior periódico cuja frequência é igual a uma das frequências
próprias do corpo sonoro (= frequência de ressonância); após extinção da fonte
exterior, o corpo que ressoa continua a vibrar”. Em sentido menos estrito, pode
ainda falar-se de reverberação, prolongamento ou amplificação dos sons em todas
as frequências.
Vasco Graça Moura, “Vitorino Nemésio” in
Relâmpago n.º 28, abril de 2011
VITORINO NEMÉSIO - A POESIA COMO CEGUEIRA ILUMINADA
Em
"A Arte de Escrever (Composição; Sensibilidade; Atitude Crítica)"1,
Vitorino Nemésio, chamando a atenção para a dimensão primordialmente
linguística de toda a obra de arte literária, reflecte sobre o modo como se
caracteriza essa mesma linguagem e sobre a relação que se estabelece entre
autor e obra. Rejeitando o preconceito de ser o autor um puro inspirado
"exclusivamente um sensível, quer dizer uma pessoa dotada, em alto grau,
de permeabilidade aos fenómenos da emoção estética pura", reconhece que a
"sensibilidade é o grande factor de inspiração, mas sensibilidade racionável,
riça de fios que a inteligência vai urdindo, enliçando a seu modo,
compondo". Se as obras de juventude nemesianas se caracterizam por um
acentuado tardo-romantismo, este texto, publicado em 1928, demonstra uma
modernidade estética na apreensão da natureza especificamente linguística do
fenómeno literário e no ênfase colocado na composição poética como "a operação
capital do escrever". A atitude crítica, no poeta, apresenta-se como
"um jogo de faculdades de rejeição e de escolha" dos materiais
linguísticos e afectivos de que dispõe.
Alguns
anos mais tarde, em "Prefácio: da Poesia"2,
realça-se a autonomia do poema que se desprende do poeta, sujeito que está ,
quer no momento da produção quer na leitura, às "regras gerais do jogo
linguístico". Abandona-se, agora, a defesa do papel preponderante
anteriormente concedido à intervenção compositiva do poeta. O jogo literário já
não é jogado com a certeza do domínio das regras, é antes o jogo que impõe
essas regras ao jogador. Ainda que "uma certa forma de consciência
acompanhe o poeta enquanto agente do acto linguístico", a instância
autoral é descrita "quer como o campo pessoal onde ocorrem os encontros
dos signos da linguagem, quer como o medium de uma vocação que confere
sentido ao universo" e, assim, "o grau de consciência que nessas
funções lhe toca pode reduzir-se a uma mera ressonância do explícito".
Longe
já da confiança primeira de ser o poeta aquele que age sobre a linguagem, é
antes esta que nele fala. A poesia, enquanto forma simbólica, é uma forma de
conhecimento, pois ao revelar as relações que as coisas mantêm entre si
assume-se não como veículo de um conhecimento exterior a ela, que se limitaria
a traduzir, mas é a sua dimensão metafórica que funda o conhecimento em si, uma
vez que é a implicação o modo dialéctico da poesia responder à Esfinge. Daqui
decorre a falência hermenêutica do juízo e do conceito perante a criação
poética, reconhecendo Nemésio que a realidade alegórica criada pela poesia é
algo que "a razão não traduz absolutamente nos seus termos, mas que
verbalmente é dada com a plenitude da intuição", e, por isso, o autor
perante a sua obra experimenta uma determinada incompreensão crítica, uma vez
que "o que poeticamente realiza furta-se talvez à objectivação
analítica".
Mas
a reflexão metapoética, neste autor, não se esgota nos ensaios críticos. A
poesia de Vitorino Nemésio caracteriza-se frequentemente pela reflexão
metapoética, quando os poemas tematizam a natureza e o alcance do verbo poético
e as relações que se estabelecem entre este e o sujeito enunciador. Esta
vertente auto-reflexiva da poesia nemesiana é uma das linhas de força que
percorre esta obra poética, que Maria Rosa Goulart define, sinteticamente, do
seguinte modo: "Se a palavra poética nemesiana revela a nostalgia do Verbo
primordial e se orienta incessantemente na mira dessa palavra da era
pré-babélica, é porque ele está ciente de que o verbo humano, exilado do mundo
edénico, não é mais do que um pálido reflexo do Verbo total, unívoco e sagrado,
que se identifica com o próprio Deus"3. A visão
nemesiana da palavra como Verbo ou sua sombra, mero equívoco, filia-se no
pensamento de Heidegger, como demonstrou, por exemplo, Vasco Graça Moura4.
Esta procura da palavra primordial norteia sobretudo a poesia de Nemésio que
mais explicitamente encena uma mundividência religiosa e implica o conceito de
criação poética como devedora de uma fulguração reveladora, de que o poeta não
é responsável, num transe criador de contornos platónicos. Nesta poesia, então,
nas reflexões sobre a relação entre o sujeito enunciador e o enunciado, é
constante a supremacia do conceito de poesia como defluindo de uma revelação a
que se acede intuitivamente relativamente à de concepção de que o poema deriva
de uma composição crítica do discurso, o que equaciona a impossibilidade de o
sujeito se reconhecer como o autor da voz que fala no poema.
A
leitura de "A Minha Voz"5é a esse
respeito elucidativa. A auto-escopia do sujeito poético implica a tentativa de
objectivar o que dentro em si reconhece como distinto de si mesmo - "Sai
um pouco de mim para eu te ver" - e a voz que fala já não é a sua:
"Quando te cito, canta,/ Longe, uma voz diversa (...)/ Outras vezes não te
cito: tu me citas". Aquele que pensa a escrita afasta-se do que a enuncia
e, assim, a "minha voz" é um "tu" que não coincide com o
eu, mas que com ele mantém uma reversibilidade criadora, pois o sujeito cria a
voz que o cria a si mesmo: "Vamos a ver se te crio,/ A ti que me encheste
de ser (...)/ Então do meu transe se adianta/ O teu vulto coberto do meu
vulto,/ E é sempre assim que o duplo canta". Este "duplo" é o
"nós" que emerge no final do texto ("Assim nos vimos, / Minha
voz:/ Bichos, limos, vozes, tristezas,/ E tudo isto dentro de nós.") e em
que o sujeito simultaneamente se reconhece e se estranha.
A
mesma tensão entre o sujeito e a voz que nele fala é legível em "O Canário
de Oiro"6, em que a voz poética começa por ser
"este canário de oiro que me espreita e debica", ou seja, outra coisa
relativamente ao sujeito que lhe serve de objecto e alimento, é por um momento
entendida como consubstancial ao sujeito -"A que o canário é o meu sangue
talvez"-, para depois ser reconhecida como irremediavelmente estranha:
"Mas então isto que é? Que violino engoli?/ Que frauta rude aveludou a
minha noite?/ Em que prato de cobre bateu o nó do açoite?/ Tão exacto, meu
Deus, só vibrado por ti.", o que anuncia, aliás, a temática religiosa
posteriormente recorrente de ser a palavra poética sopro do verbo divino.
No
poema "A Furna"7 o mesmo gesto introspectivo
inicial - "Debruço-me comigo no meu poço"- constitui-se como
reconhecimento da perda da unidade do sujeito ("Água, água, espelho liso/
Da cara que já perdi"8), que só é construído a partir do
que em si se desconhece - "O meu secreto lençol de águas/ Em que, nenúfar,
bebo e broto!" - e, consequentemente, como reflexão metapoética que aponta
para a dissociação entre o eu que se olha e o que nele mora e lhe fala: "E
rente aos tampos ouço, ouço/ Meu coração aproximado./ Mas de ouvi-lo sou pálido
e sem pulso/(...)/ Quem deseje saber o que se escuta/ Nesta parede intolerável/
Veja se cabe em minha gruta:/ Impenetrável! Impenetrável!". Este poço,
espaço íntimo e imperscrutável, pode ser ainda, noutros textos deste volume, um
búzio velho ("Búzio ridículo, malhado,/ Casa onde nunca entro/ Assim
torcido, conservado/ Com frio e barulho dentro:/ Se me falasses em voz alta/
Todos ouviam o que eu ouço/ Quando uma simples areia salta/ No bafo estreito do
teu poço (...) Esta canção do búzio desusado,/ Como a posso acabar dentro de
mim/ Se eu sou o bicho dele despegado?")9 , o
"navio humano, cheio pelos porões"10, a
"gruta" que é o "buraco vil de bicho harmonioso", a gaiola
de ossos de "O canário de ouro", ou seja, o que fala no sujeito é
muito frequentemente figurado como um espaço delimitado e complexo, por vezes
labirinto ("Seus corredores complicam-se na sombra"11)
sem centro perceptível, em que ou se expandem sons e a palavra acontece ou a
"gruta é "sem ecos"12 e o tempo de silêncio -
"A furna trava de mistério: Sua garganta aberta ao dia/ Calou o íntimo
minério/ Da minha estreme poesia"13 -, que a graça
divina poderá iluminar: "Meu poço, olho de cego/ Que aberto ao céu não vê/
(...) Cego, tão cego poço!/ Surdo, tão surdo eu!/ Quase que te não ouço./
Atento o céu se acendeu."14.
A
partir do momento em que a temática religiosa se torna fundamental em Vitorino
Nemésio, impera a consciência de que a palavra poética surge defluindo de uma
força exterior ao sujeito - "Só perdido de si alguém dá lume/ Como uma
concha ao sol que não é ela"15 -, excedendo-o, tornando
secundária a intervenção compositiva: "Se intervenho no som gratuito,
ofendo/ Seu sentido secreto e íntima cheia:/ Transtornado por ela, emendo,
emendo,/ E é ela que me absorve e senhoreia."16. É,
pois, despojado de si mesmo que, numa epifania, a poesia acontece, "Alheio
como eco em anel de poço/ Num segundo à palavra dês rochedo/ Face de reflexão
que escuda a Origem"17. O que se encerra neste poço já
não são "bichos, limos, vozes, tristezas"18, mas
antes a "Origem". Enquanto equívoco, contudo, a palavra é prisão
inexpugnável19, espaço de que não se pode sair.
Ao
longo da poesia nemesiana, o sujeito poético descobre a sua voz como estranha,
guiada por outra coisa que si mesmo: "O meu coração é um como um peixe
cego/ Só o calor das águas o orienta/ E por isso me arrasta aonde me nego/ De
puros impossíveis me sustenta."20. É precisamente esta
cegueira que permite aos "olhos do cego/ a luz do íntimo ver"21.
A poesia como visão íntima ou última remete para o conceito de poesia como
conhecimento guiado não pela razão, mas pela intuição das relações que entre as
coisas no mundo se escondem, ou seja, é a poesia a visão do que não se pode
ver, a não ser pela alusão metafórica.
Mas
esta revelação depende de uma atitude vigilante relativamente a este acontecer,
de uma atenção particular que o sujeito deve prestar à dádiva de sentido que
lhe é feita: "No lance do verbo jogo/ Mas, se vigio o meu dado,/ A boca
sabe-me a fogo/ Do sentido inesperado"22. É ao olhar o
jogo, que o sujeito não domina, que surge o fogo do sentido. Aquilo que domina
o sujeito é objecto da sua vigilância e essa contemplação é condição necessária
para a emergência da palavra na sua plenitude.
Ao
pensar-se a escrita poética no poema, o sujeito, não podendo identificar-se
coma sua voz, vê-se a não se rever e é esse gesto reflexivo que constitui o
conhecimento extremo que advém da sua poesia, o reconhecimento da
descoincidência entre a voz que fala, quem ouve essa voz e quem pensa a escuta
dessa voz. Este saber é a liberdade possível para quem é prisioneiro de ecos:
"A escravidão que tenho ei-la diuturna:/ É estar aqui, de ouvido impresso
em pó,/ a ouvir-me velho ouvindo a furna."23. O
auto-conhecimento poético só pode fundar-se na experiência desse estranhamento:
sobre a sua própria poesia "que luz da razão lha esclarece ao poeta que
não seja a da fonte do acto criador, unívoco?"24. Ou
seja, a luz possível é a da iluminação da sua cegueira: "Meu coração
sonhando é um poeta cego,/ Sê-lo acordado e vendo é que é poesia."25.
NOTAS
1 Vitorino
Nemésio - "A Arte de Escrever (Composição; Sensibilidade; Atitude
Crítica)", in Vitorino Nemésio. Estudo e Antologia. (org. de Maria
Margarida Maia Gouveia) Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1986.
2 Vitorino
Nemésio - "Prefácio: Da Poesia", in Obras Completas -vol. II
Poesia. Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, s/d.
3 Maria Rosa
Goulart - "Vitorino Nemésio: na Senda do Verbo Primordial", in
Vitorino Nemésio. Estudo e Antologia. p.568.
4 Cf. Vasco Graça
Moura - "Nemésio: o Lance do Verbo", in Várias Vozes. Lisboa,
Editorial Presença, 1987. esp. pp. 67-70.
5 Vitorino
Nemésio - "A Minha Voz", in Obras Completas -vol. I Poesia.
Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, s/d.pp.132-3.
6 Idem - "O
Canário de Oiro", in Obras Completas -vol. I Poesia. pp.136-9.
7 Idem - "A
Furna", in Obras Completas -vol. I Poesia. pp.182-4.
8 Idem -"O
Poço", in Obras Completas -vol. I Poesia. p.96.
9 Idem -
"Canção do Búzio Velho", in Obras Completas -vol. I Poesia.
pp.165-6.
10 Idem - "A
Vaga Verde", in Obras Completas -vol. I Poesia. p.167.
11 Idem -"A
Furna". p.183.
12Idem -"O
Bicho Harmonioso", in Obras Completas -vol. I Poesia. p.130.
13 Idem -"A
Furna". p.184.
14 Idem -"O
poço". p.96.
15 Idem -
"Pelo Sinal de Fogo", in Obras Completas -vol.II Poesia.p.262.
16 Idem
-"Verbo e Abismo", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.318.
17 Idem
-"Signo Velado", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.308.
18 Idem -"A
Minha Voz". p.133.
19 Cf. Idem -
"Prisão", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.315.
20 Idem - Eu,
Comovido a Oeste, nº24,in Obras Completas -vol.I Poesia.p.248.
21 Idem -
"Outra Lição", in Obras Completas -vol.I Poesia.p.100.
22 Idem
-"Fogo e Sentido", in Obras Completas -vol.II Poesia.p.301.
23 Idem -"A
Furna". p.184
24 Idem
-"Prefácio: Da Poesia". p.704.
25 Idem
-"Antão era Pastor - II", in Obras Completas -vol.II Poesia.
p.398.
Rita Patrício, “Vitorino Nemésio: a poesia como cegueira
iluminada”,
Ciberkiosk, n.º 2, 1998. Disponível em: http://www.ciberkiosk.pt/arquivo/ciberkiosk2/ensaio/nemesio1.htm
Acedido em 2002-02-05
“Debruço-me comigo no
meu poço, Vitorino Nemésio” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 13-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/debruco-me-comigo-no-meu-poco-vitorino.html
A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
A guerra, que aflige com os seus
esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer
alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por
nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra
prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.
Deixemos o universo exterior e os outros
homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas,
deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos
esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo
povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque
usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a
humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo
no homem,
Paz à essência inteiramente exterior do
Universo!
24-10-1917
“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando
Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
[…] refira-se que Fernando Pessoa, Álvaro de Campos,
Ricardo Reis e Alberto Caeiro escreveram um número indeterminado de poemas,
talvez duas dezenas, sobre o tema da guerra, parte deles em 1915-1917. Neles o
autor aparece sempre não como um ideólogo ou um pensador político, mas como alguém
imparcial e “comovido com os sofrimentos inúteis dos povos e dos indivíduos”.
Esta apreciação é de Georg Rudolf Lind, no seu já aqui citado artigo de 1972 em
que se debruçou sobre apenas oito desses poemas (1981: 445‑447). Desde esse
estudo pioneiro, outros poemas e fragmentos de poemas sobre a guerra surgiram
da arca pessoana, com matéria suficiente para novos estudos sobre o mesmotema.Nãonosocupamosdesteassuntoaqui,massimdopensamentopolíticoousociológicodeFernandoPessoasobreaguerra.Foi,noentanto,comalgumasurpresaquecotejámosessapoesiacomasprosaspessoanassobreaGrandeGuerra.OpoetaFernandoPessoapreocupa-secomadorhumana,comasvítimasinocentesqueaguerrafaz,comoabsurdodasmortesvãsecomamonstruosadesumanidadequeaguerradespertanoshomens.Tenhamosemmentetrechosda“OdeMarcial”deÁlvarodeCamposouospoemasdoortónimocomo“Omeninodesuamãe”e“Tomámosaviladepoisdeumintenso bombardeamento”.16AlbertoCaeiro,porsuavez,condenaexpressamenteaguerra,todasasguerras,numpoemacaracteristicamentepacifista,“Aguerra,queafligecomseusesquadrõesomundo...”(Pessoa,1994:142)17.OraopensadoreensaístaFernandoPessoanuncasepreocupacomessesaspetos.Defendeodireitodaforça,porque‒diz–nãohánempodehaverumtribunalquejulgueasnaçõesouosEstados.18ABélgicamártirnãolheinspiracompaixão,porqueaBélgicaseria“umEstadoabsurdo”,semrazõesparaexistir.19Quantoaosgasesasfixiantesusadospelosalemães,justifica-os:“Repare-sequeaAlemanhalutapelavida,comtudocontrasi...”(inPizarro,2006:107).20Numtextoaqueadiantevoltaremos,PessoachamamesmoàAlemanha“gloriosoimpérioconstruídoasangueefogo, gloriosodedurezaeimpassibilidade”.ParaopensadorPessoa,aguerraématériadereflexãoracional,queeledizpretenderanalisarcomafriezadeumsociólogo,semcedênciasasentimentoshumanitáriosnempartisprispatrióticos.“Escrevocomosenãotivessealma,masapenaspensamento”–fazdizerPessoaaAntónioMorana“DissertaçãoafavordaAlemanha”(BNP/E3,28-18r,veraquiFig.3). Nessequadro,ossentimentos,asideiashumanitáriasouopacifismodesinteressamaPessoa,quesóosconsidera,eventualmente,comoobjetosdeanálisecrítica.Àdiferençadeoutrospoetasmodernistaseuropeus,Pessoanuncafez poesiabelicista ou exaltadora da guerra21, masna prosa
ensaísticaque produziu durante a Grande Guerra
assumiu uma clara insensibilidade aos horrores da guerra.
Notas:
16 A“OdeMarcial”,atribuídaaÁlvarodeCamposedeixadainédita,édatávelde1914-‐‑1915‒ver Pessoa(2014:152-163e620-625).Osoutrosdoispoemasforampublicadosapenasnadécadade1920(Pessoa,1926e1929),masLind(1981:440)sustentaque foram escritos durante a GrandeGuerra.Talhipótesenãoseconfirma,jáquepelomenosopoema“Tomámosaviladepoisdeumintensobombardeamento”estádatadonooriginalmanuscritode21‑6‑1929(BNP/E3,118-57r).
20OpiniãosemelhantefoientãoexpressaporJúlioDantas.Falandosobreosgasesdeclorousadoscomoarma pelos alemães,escreveu:“Um povo
como o alemão,quando joga,numa cartadasuprema,oseudestinoeasuavida,nãopodeescolher,generosamente,osprocessosdeextermínioqueadopta.[...]Devemosconcluir,porisso,queéignóbilaAlemanha?Não.Oqueéignóbiléaguerra”(Dantas,1915:609).
21Dúvidassobreestaafirmaçãopoderãosurgirlendoopoema“Napontadecadabaionetaluzemos olhos
de
Kant..."ʺ
(BNP/E3,
144X‑66r), publicado em Pizarro (2006:
104),
e
certos
trechos
de
rascunhoparaa “OdeMarcial”,como “Aveguerra,som daluz edofogo...”
(BNP/E3,64-‐‑42r), publicadoemPessoa(2014:359),masnãosão,anossover,casosclarosdepoesiaexaltadorada guerra.
Os
problemas políticos do tempo de Fernando Pessoa também o interessaram muito, pois
conforme ele próprio afirma, “todas as questões sociais , todas as perturbações
políticas, por pouco que com elas nos preocupemos, entram no nosso organismo
psíquico, no ar que respiramos psiquicamente, passam para o nosso sangue
espiritual, passam a ser, inquietamente, nossas como qualquer coisa que seja
nossa”.1 Por isso, Fernando Pessoa escreveu muitos textos sobre
várias questões sociais e perturbações políticas, e de que ele fala e critica também
nos seus textos literários, que estão reunidos
neste livro : a nível internacional, por exemplo o colonialismo inglês, a
escravização da Etiópia pela Itália, a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa de 1917, e o fascismo de
Mussolini. A nível nacional, a crise final da Monarquia, a instauração da República,
os Governos saídos da República, o consulado do Presidente Sidónio Pais, o seu
assassinato e o período subsequente, a intentona militar de 18 de Abril de
1925, a agonia da Primeira República, a Ditadura Militar, o Estado Novo,
Salazar, e outras personalidades políticas portuguesas (João Franco, Afonso
Costa, etc.).
Além de
literatura sobre política, Fernando Pessoa também escreveu ensaios sobre
política (já publicados). No entanto, nem mesmo nos seus ensaios sobre política
(como aliás sobre qualquer outro tema), existe um pensamento sistematizado, mas
antes uma mistura de assuntos, muito dispersos, sem sequência lógica, e por
vezes contraditórios. Fernando Pessoa tem textos que revelam ser um
nacionalista, e outros um internacionalista, uns em que mostra simpatia pelo
liberalismo, e outros em que o critica, e até mesmo em relação ao comunismo,
que ele critica em alguns dos seus textos, diz o seguinte : “Serve melhor à
pátria um grande poeta comunista ou imoral, que um pobre diabo que escreve
poemas elogiosos sobre a batalha de Aljubarrota” (apesar de Fernando Pessoa ser
um nacionalista). Nenhum dos seus textos sobre política permite extrair a
conclusão de que ele era desta ou daquela ideologia política, pois tanto pode
falar bem como mal de determinados assuntos políticos, como sucedeu por exemplo
em relação ao liberalismo. Conforme o próprio Fernando Pessoa afirma, um
escritor ao ocupar-se de política “deve fazer o possível, se quer estar de
acordo com o seu mister, por compensar a oscilação num sentido por uma
oscilação no oposto. O ideal de um escritor consciente do seu mister, e que
porventura escreva sobre política, é apresentar um dia os aspetos positivos, ou
negativos, de uma doutrina, no outro dia os aspetos positivos, ou negativos, da
doutrina oposta. Aos políticos pertence o estarem fixos num ou outro polo do
assunto. É este o mister deles, políticos.”2
Em todo o
caso, após mergulharmos a fundo na sua vasta obra, conseguimos extrair algumas
conclusões, bastando ler aliás a sua
obra literária: era contra as tiranias políticas, o totalitarismo, as guerras,
o comunismo, o fascismo, o salazarismo, o colonialismo, e o imperialismo, e apesar da sua educação inglesa, criticou
também o imperialismo britânico (por exemplo
nos poemas reunidos neste livro). Mesmo quase no final da sua vida,
quando a invasão da Etiópia era anunciada pelo regime de Mussolini, com o
argumento da existência de escravatura naquele país, escondendo esse argumento os
interesses económicos e políticos do imperialismo italiano, invasão essa que que
de facto chegou a acontecer, Fernando Pessoa criticou a Itália, conforme se
pode ver no seu poema Dizem que vão
apresentar, incluído no presente livro.
Inicialmente
Fernando Pessoa simpatizou com o período político autoritário que deu origem
ao Estado Novo em Portugal, cuja
defesa fez no seu texto O Interregno,
mas nele fazia a defesa de um “Estado de transição”, como a própria palavra indica,
interregno esse para serenar os ânimos, necessário para acalmar as lutas
existentes em Portugal entre Monárquicos e Republicanos, e as sucessivas quedas
de Governos, e para fazer face à onda de estrangeirismo e à quebra do orgulho
nacional, mas que conduzisse a um regime político que não se poderia basear na
força nem na autoridade, mas sim na opinião. Porém, ao verificar que o Estado Novo
continuava, Fernando Pessoa escreveu que “O
Interregno devia ser considerado como não existente”, e que “há que rever
tudo isso e talvez que repudiar muito”, e noutro texto disse sobre o texto O Interregno: “Dou esse escrito por não
escrito”. Ao ir conhecendo melhor aquilo que era o Estado Novo, tornou-se um crítico severo
desse regime político, e de Salazar, assim com das ditaduras fascistas na Europa,
como a de Mussolini, e de Hitler. Um dos melhores exemplos foi o seu empenho em
criticar a proibição das Associações Secretas, feita pelo Estado Novo, sobre a qual escreveu e polemizou, e que rompeu definitivamente
com o Estado Novo.
Notas:
1Sensacionismo e outros ismos, Lisboa, Ed. Imprensa Nacional Casa a Moeda,
2009, p. 187.
2BNP/E3,
92A – 7r
Fernando
Pessoa, Obra literária sobre política (org. de Victor Correia), Lisboa, Ed.
Sinapis, 2019.
Ainda que o assunto da ode
não seja imediatamente percetível, é importante estabelecer desde logo que
aquilo a que Reis renuncia logo no primeiro terceto, preferindo-lhes rosas e
magnólias, é à guerra. Ao contrário do que acontece noutros momentos da sua obra,afamaemcausanãoéaquiafamaqueresultadaatividadepoéticamasantes,comoo
comprovaaproximidadecomasoutrasduascoisasquenãointeressamaReis(apátriaeavirtude),afamaqueresultadasvirtudesmilitaresdemonstradasemdefesadapátria.Selida,aliás,ladoaladocomaoutraodeemquestão,umaodeemqueosdois
protagonistaspreferemmanteraconcentraçãonumjogodexadrezmesmoquandoapátria
quesupostamentedeveriamdefenderéinvadidaporumagressorestrangeiro,essacircunstânciapareceadquirirplausibilidade.Vendoaindaque,naterceiraestrofe,Reisdefendequenãoimporta“queumpercaeoutrovença”,talplausibilidadepassaacerteza.
Aodeé,deresto,maisumainvectivadirigidaaHorácio,nestecasoàexortaçãomarcialàmaneiradeTirteuqueéaodeIII.2e,muitoconcretamente,
ao
famosíssimo
décimoterceiroversodessaode:“doceebeloémorrerpelapátria”[dulceetdecorumpropatriamori](Od.,III.2).AsduasodesdeReis,aliás,evidenciamumaaversãoàatitudebélicacelebradaporHorácionessaodequeganhaemsercompreendidaàluzdeumacontecimentorecentíssimoaquandodaproduçãodelas,a1deJunhode1916:menosdetrêsmesesantes,a9deMarço,aAlemanhadeclararaoficialmenteguerraaPortugal.AocontráriodeHorácio,Reisnãoestáinteressadoemexibiroseupatriotismo,nãopretendealcançarafamaquesesegueaessaexibiçãoeencontramenosvirtudesemprocederdessemododoqueemcolherflores.Aguerraéinútil,poisavidacontinuaqualquerquesejaoseudesfecho.Assimsendo,épreferíveldeixarqueavida(eaguerra)onãocanse,passandoporelesemomodificar.AúnicacoisadequeReisnãoabdica,comoselênofinaldaode,éodesejodeindiferençaea“confiançamolle”(RR133)napassagemdotempo,aquiloque,justamente, constitui
aatitudequeAntónioMorarepudiaeaquiloquesobressaidolazer
a
que
os
jogadores
dexadrez,nasegundaodequeimportadiscutir,seconsagramcomindefectíveldevoção.
Ora,“OsJogadoresdeXadrez”(BNP51-25ra26r)édiferentedetodasasoutrasodesdeReisnamedidaemquenãoébemumaode:alémdenãodialogarcomumasegundapessoa,comoéhábito,Reisabusainvulgarmentedadescrição,contrariandoa tendêncianormalnasuaobra,talvezadquiridaporPessoao ter feito médico, para a prescrição.
Oepodo–éassimqueMoraserefereaopoema–começacomumaestrofequemaisnãoédoqueomotedasrestantes,namedidaemqueanunciademodomuitoabreviadooquedepoisserá descrito empormenor.Nessa estrofe,Reis diz ter ouvidocontar uma história antiga,“quandoaPérsia/tinhanãoseiqualguerra”(RR129),sobre“doisjogadoresdexadrez”que“jogavam/oseujogocontínuo”enquanto“ainvasãoardianaCidade/easmulheresgritavam”(RR130).Astrêsestrofesseguintessãoexclusivamentedescritivas,eapresentamadiferençaradicalentreatranquilidadedojogodexadrez(edosjogadoresquenelepermanecemconcentrados)eotumultodoquesepassavaàvolta.Assim,emcontrastecomasatrocidadesqueiamacontecendo(“ardiamcasas,saqueadaseram/asarcaseasparêdes, /violadas,asmulhereserampostas/contraosmuroscahidos,/trespassadasdelanças,as creanças/eramsanguesnasruas”),osjogadorespermaneciamfolgadamenteà“sombrade amplaarvore”fitando“otaboleiroantigo”erefrescando“asuasóbriasede”com“umpucarodevinho”.Emesmoqueomassacrelhesdesviasseaatençãodojogo,mesmoque“nasmensagensdoermovento/lhesviessemosgritos,/e,aoreflectir,soubessemcomacerto/queporcertoasmulheres/eastenrasfilhasvioladaseram/nessadistanciaproxima”,osjogadoresdexadrezrapidamente“volviam suaattentaconfiança/aotaboleirovelho”(RR 130).
Note-sequefazersucederàindiferençacomqueselidacomqueoquenoséexterior uma“attentaconfiança”aoutracoisaqualqueréexactamenteigualafazersuceder-lheuma“confiançamolle”(RR133),queéoqueReislhefazsucedernaúltimaestrofedaodequecomenteiantesdesta.Significaistoque aindiferençadosjogadoresdexadrez,como
adeReisemgeral,nãoépropriamenteaindiferençaestóica;àatitudedaindiferençasoma-seaatitudedaconfiança,sejaelaatentaoumole,numa
outra
coisa.
E,
tanto
na
ode
“Prefirorosas,meuamor,ápatria”comoem“OsJogadoresdeXadrez”,essaoutracoisaemquesedepositaaconfiançapertenceaumtempodiferente.SeaindiferençaqueReiseosjogadoresdexadrezmanifestamdizrespeitoaumpresentequelhessolicitaasvirtudesmarciais,aconfiançaque
se segue a essaindiferençaé direccionadaparaum
passado
qualquer,parauma“horafugitiva”(RR133)ouparaumtabuleirodexadrezquese
distingue
por
ser“antigo”ou“velho”(RR130).Astrêsestrofesqueseseguemrepresentam,decertomodo,essapassagemdaindiferençaàconfiança,enelasparecesersugeridoqueodeverdecada uméparacomojogoquejogaenadamais:
Quandooreidemarfimestáemperigo,
Queimportaacarneeoosso
Dasirmãsedasmãesedascreanças?
Quandoatorrenãocobre
Aretiradadarainhabranca,
Osaquepoucoimporta.
Equandoamãoconfiadalevaocheque
Aoreidoadversário,
Poucopesanaalmaquelálonge
Estejammorrendofilhos.
Mesmoque,derepente,sobreomuro
Surjaasanhudaface
D’umguerreiroinvasor,ebrevedeva
Emsangueallicahir
Ojogadorsolemnedexadrez,
Omomentoantesd’esse
Éaindaentregueaojogopredilecto
Dosgrandesindiff’rentes.
Caiamcidades,sofframpovos,cesse
Aliberdadeeavida,
Oshaverestranquilloseavitos
Ardemequesearranquem,
Masquandoaguerraosjogosinterrompa,
Estejaoreisemcheque,
Eodemarfimpeãomaisavançado
Promptoacompraratorre.(RR131)
Oquerealmenteéaflitivo,paraumjogadordexadrez,nãoésaberqueasirmãs,asmãeseascriançasestãoemperigo,que“lálonge/estejammorrendofilhos”ouqueacidadeestejaasersaqueada,masteroreiemxeque,nãopoderprotegeraretiradadarainhacomatorreounãoterpeçacomqueameaçaroreiadversário.Aprópriavidadojogadordexadrez,mesmoqueapoucosinstantesdefindar,nãoénadaemcomparaçãocomasolenidadedo “jogo predilecto/dos grandesindiff’rentes” a quese
deveentregar.
I - Questionário sobre o poema “Prefiro
rosas, meu amor, à pátria”, de Ricardo Reis.
1.
Compare a atitude do sujeito poético com a dos outros «humanos» (verso 13), tendo
em conta a oposição simbólica entre «rosas» e «magnólias», por um lado, e
«pátria» e «glória» e «virtude», por outro lado (versos 1 a 3).
2.
Interprete o sentido da segunda estrofe, à luz da filosofia de vida de Ricardo
Reis.
3.
Explicite, com base no conteúdo dos versos 7 a 18, dois aspetos que evidenciem
o modo como o sujeito poético perceciona a passagem do tempo.
Explicitação de cenários de resposta.
1. Compara
a atitude do sujeito poético com a dos outros «humanos», desenvolvendo dois
tópicos de resposta adequadamente:
‒
o sujeito poético opta pela adoção de uma atitude contemplativa/pela fruição do belo/natural/efémero («rosas» e
«magnólias»), recusando os valores da «pátria», da «glória» e da «virtude»;
‒
os outros «humanos» preferem a «pátria», a «glória»
e a «virtude», que representam o esforço/o
sofrimento/a entrega a causas (pessoais e sociais)/a constante busca de
superação.
2. Para
interpretar o sentido da segunda estrofe, à luz da filosofia de vida de Ricardo
Reis, devem ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente
relevantes:
‒
recusa das emoções fortes/busca da
tranquilidade/ataraxia («Logo
que a vida me não canse»–
v. 4);
‒
indiferença perante a passagem
do tempo («deixo / Que a vida por mim passe» – vv. 4-5);
‒
passividade/atitude contemplativa/ausência
de ação («Logo
que eu fique o mesmo.»– v. 6).
3. Para
explicitar o modo como o sujeito poético perceciona a passagem do tempo, com
base no conteúdo dos versos 7 a 18, devem ser abordados dois dos tópicos
seguintes, ou outros igualmente relevantes:
‒
passagem irreversível do tempo/tempo
perspetivado como duração,
patente na referência à repetição cíclica das estações do ano;
‒
circularidade do tempo cósmico,
o que é testemunhado na
natureza («Se a aurora raia
sempre» – v. 9; «Se cada ano com a primavera / Aparecem as folhas / E com o
outono cessam?» – vv. 10-12);
‒
preferência pelo momento
presente (carpe diem), através da valorização da «hora fugitiva» (v.
18);
‒
consciência da fugacidade
da vida («E a confiança mole /
Na hora fugitiva» – vv. 17-18).
II – Comentário do poema “Prefiro rosas, meu amor, à
pátria”, de Ricardo Reis
O comentário de um
texto literário orientado por tópicos de análise visa avaliar as competências
de compreensão e de expressão escritas.
Ao classificar o
comentário elaborado pelo examinando, o professor classificador deverá observar
o domínio das seguintes capacidades:
– compreensão do
sentido global do texto;
– interpretação do
texto através da identificação e da relacionação dos elementos textuais produtores
de sentido, na base de informação explícita e de inferências;
– seleção
diversificada de elementos textuais pertinentes e adequados ao desenvolvimento
dos tópicos enunciados;
– identificação de
processos retóricos/estilísticos e de aspetos formais, com avaliação dos
efeitos de sentido produzidos;
– relacionação do objeto
em análise com o seu contexto;
– construção de um
texto estruturado, a partir da articulação dos vários aspetos analisados;
– produção de um
discurso correto nos planos lexical, morfológico, sintático e ortográfico.
Elabore um
comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
– importância das
marcas do tempo;
– relação
simbólica entre «rosas»-«magnólias» e «pátria»-«glória»-«virtude»;
– aspetos formais
e recursos estilísticos relevantes;
– traços gerais
da poética de Ricardo Reis.
Observação:
Relativamente ao terceiro tópico, são exigidos,
no mínimo, um aspeto formal e dois recursos estilísticos.
Explicitação de
cenário de resposta
Importância das marcas do
tempo
As marcas do
tempo, relevantes ao longo do texto, indiciam a centralidade da problemática do
tempo no poema. Assim:
– a predominância
dos verbos no presente do indicativo («Prefiro», «amo», «deixo», «importa», «raia»,
«Aparecem», «cessam», «Acrescentam», «aumentam» – vv. 1, 2, 4, 7, 9, 11, 12, 14
e 15), expressando o modo de ser e a filosofia do sujeito poético marcados pela
indiferença perante o correr do tempo («deixo / Que a vida por mim passe» – vv.
4-5);
– a representação
de um tempo que flui irreversivelmente, ainda que cíclico («a aurora raia sempre»
– v. 9; «Se cada ano com a primavera / Aparecem as folhas / E com o outono
cessam?» – vv. 10-12);
– a referência à
«hora fugitiva» (v. 18) como a única temporalidade vivenciada pelo sujeito
poético;
– ...
Relação simbólica entre
«rosas»-«magnólias» e «pátria»-«glória»-«virtude»
Pela sua beleza
fugaz e pela sua fragilidade, as flores simbolizam quer a beleza das coisas simples
e naturais quer a fugacidade e a precariedade da vida. Já «pátria», «glória» e «virtude»
correspondem a valores sociais, nobres e perenes, que conferem um sentido
elevado à existência e em nome dos quais luta o indivíduo numa tentativa de se
dignificar. Descrente de que essa busca de valores abstratos (o «resto [...]
que os humanos / Acrescentam à vida» – vv. 13-14) enriqueça a sua existência, o
sujeito poético rejeita tal busca e opta pela dedicação ao que é efémero, belo
e natural. (Em suma, a relação simbólica que se estabelece entre as flores
referidas e os valores enunciados é a de oposição entre natureza e sociedade.)
Aspetos formais e recursos
estilísticos relevantes
De entre os recursos
estilísticos presentes neste poema, salientam-se os seguintes:
– a apóstrofe
(«meu amor» – v. 1), pondo em evidência o destinatário do discurso poético;
– o hipérbato (v.
2), destacando a preferência pelo belo e efémero face aos valores sociais e morais;
– a anáfora
(«Logo que» – vv. 4 e 6), realçando a atitude de indiferença do sujeito perante
a vida;
– a antítese
(«perca» vs «vença» – v. 8; «Aparecem» vs «cessam» – vv. 11-12), salientando,
por um lado, o desinteresse do sujeito perante a derrota ou a vitória dos
«humanos», e, por outro, o carácter cíclico do tempo;
– a interrogação
(terceiro, quarto e quinto tercetos), correspondendo a um autoquestionamento retórico
do «eu», que afirma o seu modo de encarar a vida;
– a aliteração em
/s/ («canse», «passe», «vença», «Se», «sempre», «Se», «Aparecem», «cessam», «Acrescentam»,
«salvo», «indif’rença», «confiança» – vv. 4, 5, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 16, 17), marcando
ao longo do poema uma toada melódica surda e sibilante;
– ...
Quanto aos aspetos
formais, salientam-se os a seguir indicados:
– composição
poética composta por seis tercetos, num total de dezoito versos;
– verso branco;
– estrofes
constituídas por um decassílabo e dois versos de seis sílabas;
– regularidade
métrica na construção de todos os tercetos (primeiro verso decassilábico e os
dois seguintes hexassilábicos);
– ...
Nota – Para a atribuição
da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico, é considerada
suficiente a apresentação de três elementos, sendo obrigatoriamente indicados
dois recursos estilísticos e um aspeto formal.
Traços gerais da poética de
Ricardo Reis
O poema revela
alguns traços representativos da poética de Reis. Exemplificando:
– a afirmação de
uma filosofia estoico-epicurista, patente na fruição que retira do instante e
na aceitação lúcida da inevitabilidade da morte;
– a preferência
pela efemeridade do presente, defendendo uma arte de viver assente no gozo moderado
do momento (seguindo o tema horaciano do carpe diem, furtando-se a
emoções intensas e a ideias que «Nada» lhe «aumentam na alma» – vv. 16 e 15);
– a atitude
contemplativa, o modo de estar distanciado e impassível, porque ciente da
fatalidade do destino e do devir humanos;
– arte poética
caracterizada pelo rigor neoclássico e sua complexidade sintática (conforme com
a formação classicista deste heterónimo de Fernando Pessoa);
- …
Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 138. 12.º Ano
de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral -
Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A. Portugal, GAVE – Gabinete de
Avaliação Educacional, 2007, 2.ª fase
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo do xadrez.
Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao reflectir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.
Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.
Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predilecto
Dos grandes indiferentes.
Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.
Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulsa dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória; a fama, o amor, a ciência, a
vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.
A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
Ah! sob as sombras que sem querer nos
amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez,
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá por fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a
vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.
1-6-1916
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).
“A guerra que aflige
com os seus esquadrões o Mundo, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José
Carreiro. Portugal, 11-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/a-guerra-que-aflige-com-os-seus.html