segunda-feira, 15 de julho de 2019

Guarda a manhã como uma rosa (Vitorino Nemésio)


Imagem: Joaquim Passini


DEFESA

Guarda a manhã como uma rosa,
Molha-a, que a noite vem aí.
Dorme tu nos espinhos; goza
O que é próprio de ti.

Não dês flores a ninguém
Que tua mão lhe corte,
E, se puderes,
Leva as mais que puderes à tua morte
Em coroa que te fique bem.

Não gastes o jardim puro
De que tu mesmo és terra:
A tua vida, muro,
Teu coração a encerra.

Rosas façam de sangue os que as desejam;
Cada um se floresça:
As tuas não se vejam
Quando a roseira cresça.

Abre ao lume doído
Os botõezinhos novos.
No ninho despido,
Ave, os teus ovos.

Ao frio e ao escuro cria
Larvas de luz compostas
Do que deita alegria
Sobre as coisas que gostas.

Mas rosas dadas, não:
Nem que tu fosses flores
E raiz teu destino
Engrossando no chão.
As tuas flores
São do menino
Sempre foste. Não!

Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso, 1938


Foto: José Carreiro



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Apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura de textos de Vitorino Nemésio


sábado, 13 de julho de 2019

Debruço-me comigo no meu poço, Vitorino Nemésio


Gruta do Algar do Carvão, ilha Terceira, Açores.

A FURNA

Debruço-me comigo no meu poço
‑ Tudo a fundo sonoro e emparedado ‑
E, rente aos tampos, ouço, ouço
Meu coração aproximado.

Mas de ouvi-lo sou pálido e sem pulso:
Meu sangue foi preciso para ouvidos
E bate os mares e a terra, avulso
Nos próprios glóbulos perdidos.

Quem deseje saber o que se escuta
Nesta parede intolerável,
Veja se cabe em minha gruta:
Impenetrável! Impenetrável!

Que frios só seu chão calcaram
E sua abóbada sou eu
Nas tardes em que me levaram
Os meus amores o que era meu.

E já seu eco é uma humidade,
Leve chorume do escuro
Que se aprofunda na saudade
E em minha carne se faz muro.

Só luz dos musgos me distrai
Os olhos das naves frias
Na furna imensa em que se esvai
O fio de água dos meus dias.

Tão aflorada e tão profunda,
Tão bela no pedraço e na leveza,
Tão forte nas marés de que se inunda,
Aberta ao mar e à lua acesa!

Seus corredores complicam-me na sombra,
Um dedal de silêncio abre uma pedra,
Rorejam gotas para alfombra
Do vácuo de alma que lá medra.

De líquenes veste o sonho a aurora
Que dificulta o poço poço;
A lágrima enche de hora a hora
O copo ao menino e moço.

Mas estrias de lava, quem lhe entende,
Se ali riscou fogo vermelho
Alto sinal que só acende
Meu coração, palheiro velho?

E estalactites, estalagmites,
Correspondências aguçadas,
Enxofre, bafio, pirites,
Homens fugidos, mulheres choradas.

Vai o escuro furando o poço ardente,
Ouvem-se no oco as águas:
Ah, que barulho frio e imoto
Enruga a minha vida quente,
O meu secreto lençol de águas
Em que, nenúfar, bebo e broto!
A furna trava de mistério:
Sua garganta aberta ao dia
Calou o íntimo minério
Da minha estreme poesia.

Cala-o para que eu próprio vá batendo,
Dos martelos comuns abandonado,
O possível no opaco de atro urdume:
Que eu levo fogo pegado
E ninguém me chega lume.

Mas, se ardido por mim, me devo só,
A escravidão que tenho ei-la diuturna:
É estar aqui, de ouvido impresso em pó,
A ouvir-me velho ouvindo a furna.

Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso, 1938


Gruta do Algar do Carvão, ilha Terceira, Açores.


TEXTOS DE APOIO


O BICHO HARMONIOSO: RESSONÂNCIAS 
(EFEITOS ACÚSTICOS EM VITORINO NEMÉSIO)

Foi em 1961 ou 1962, andava eu pelos meus 19 ou 20 anos, que adquiri o volume Poesia (1935-1940), de Vitorino Nemésio, acabado de publicar pela Morais Editora no seu Círculo de Poesia. Na altura não prestei grande atenção ao primeiro dos livros nele incluído, La Voyelle Promise. Mas os outros dois, O Bicho Harmonioso e Eu, comovido a Oeste, passaram a contar-se entre as minhas leituras poéticas favoritas e reiteradas, em especial o primeiro. As experiências poéticas de tipo heideggeriano, a relação entre o verbo, o mundo, a morte e a escatologia, a oscilação entre a ascese individual, a compreensão da realidade, a exaltação religiosa e a pulsão erótica, conquanto dimensões essenciais do universo nemesiano (a última delas, de resto, só tardiamente revelada em pleno), acabavam por me interessar menos nessa altura e foi bastante mais tarde que procurei conhecê-las melhor e reflectir sobre elas. 
O Bicho Harmonioso lembrava-me o título de uma suite de Händel, O Ferreiro Harmonioso, e mesmo agora, no ensejo de recordar essa experiência, o termo que me ocorre para caracterizar a arte poética de Nemésio, tal como a vivi nessa ocasião, é o de “ressonância”[1]. Os processos de Nemésio faziam-me supor que eram exactamente ressonâncias como que de entrada e permanência em vibração de um corpo sonoro na escrita poética, e também encadeamentos de harmónicas e de outros efeitos do som enquanto fenómeno ondulatório, que o poeta procurava, envolvendo nessa acústica muito pessoal tanto a materialidade fónica e vibratória como a dimensão semântica e metafórica, no trabalho e achamento das rimas, das consonâncias e das dissonâncias, na combinação de sonoridades e sugestões, nas dinâmicas rítmicas propostas, nas alternâncias e bruscas rupturas prosódicas, nas imagens e alusões musicais, até nas hiper e hipometrias do verso e noutros desequilíbrios tecnicamente conseguidos que lhe serviam para acentuar o que pretendia dizer com alguma propensão expressionista. 
Entre a densidade do canto e a sugestão de instrumentos musicais, o coração da própria sonoridade vinha assim desde o nervo das coisas a reverberar pelo mundo concreto fora e a combinar-se, como uma linha melódica que vai sendo sucessivamente harmonizada ou sobreposta a outras, com efeitos mais esperáveis, mas igualmente de uma grande beleza eficaz, da combinação de mar, insularidade e memória, das ondulações da distância, das vagas e dos navios, das interacções e dialécticas de saudade e presença, ansiedade, carência e plenitude, solidão e partilha, das contraposições entre tempo do divino interpelado e tempo efémero e vivido da condição humana individual neste mundo. Mais tarde, vim a perceber melhor esses processos tão característicos do poeta.
Este homem, pensei então, não quer saber da rigidez de teorias ou receitas literárias e engendra e inflecte os seus próprios recursos técnicos como lhe apetece em cada momento. A sua liberdade poética oscila muitas vezes entre a utilização e a transgressão dos cânones, mas sempre ou quase sempre, com uma cuidada modulação fónica e rítmica nas suas próprias asperezas. Nos metros regulares ou nos versos livres e naquilo que em Nemésio é mais marcadamente derivado do Simbolismo, há sempre uma preocupação de ligação ao concreto, de tensão vigilante entre a percepção do real e a palavra que pode exprimi-lo, de transfiguração do quotidiano em intemporal, de relação de parentesco ou proximidade familiar a figurar-se repetidamente como pista para a evocação angustiada de um mundo perdido onde a identidade pudesse verdadeiramente fazer sentido; e se há um propósito de trocar chãmente em miúdos as grandes palavras e tiradas enfáticas de alguma poesia do tempo, há também um orfismo muito próprio na procura de uma auto-diluição, a partir do “canto necessário”, “em som e no ar que o guardasse”. Daí uma percepção da existência de contiguidades inúmeras entre as coisas materiais e imateriais ou imponderáveis, entre a razão e os sentidos, entre expressão poética e emoção vivida, o que explica a ocorrência das ressonâncias e “transvibrações” mais variadas, tudo isso também como um fenómeno ondulatório a propagar-se e a amplificar-se de poema para poema seja no que respeita à realidade dos referentes físicos sólidos, líquidos e gasosos, seja na expressão de estados anímicos, intelectuais e emotivos: “Musical, todo fogo, em mim me vou e expando” (“O canário de oiro”).
Ficou-me ainda a impressão de uma poética cuja carga simbólica se investia por sequências expansivas, como ondas concêntricas a partir de um núcleo irradiante. Alguns casos são absolutamente evidentes, como a metáfora do ovo ou da ilha no meio das águas. E também o “canário de oiro” se tornava o animal simbólico e fabuloso a preencher o próprio ser do autor em osso, carne e sangue e, como medida e desmedida fulgurante do canto, a passar muito para além desses limites individuais. Dando-lhe um destaque especial, Nemésio referia-se a ele no final do seu tão importante prefácio ao volume de 1961. Mas notemos ainda que o canário de oiro se recorta contra todo um bestiário feito de alusões e metáforas zoológicas no mesmo poema: águia, milhafre, “aves de parabólica plumagem”, pombas, cordeiras, lobos, “a cordeira preta, a do velo maior”, “catorze cavalos, todos de músculo solar”... 
O registo musical passa a aliar o canto da ave ao emergir e pulsar dos afectos, do fogo verbal das harmonias, das misérias do bicho da terra, das afinações e desafinações desferidas a partir do seu “diapasão de ferro”, onde perpassam anjos, vindos de Rilke, mas aqui “de matéria nenhuma e de toda a arrogância”. Essa música é uma arte do tempo que no tempo se consome e resolve, ainda sob uma aura romântica de frustração da expectativa de um almejado “alto destino de poeta” que vem desde o primeiro poema, “O bicho harmonioso”, no seu buraco vil, onde a noite “faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos”. Essa gruta é todavia bem mais sonora do que se diz no lugar inicial e acaba por ter ecos sucessivos e reverberantes: passa a concha pacientemente segregada, ou a uma aura de percussão das lapas “de que tirava depois, como de castanholas, / Um som qualquer para acordar e desentorpecer os caminhos” (“Sonho vivo”), e reconduz-se ao imo do búzio cheio de vozes remotas (“Búzio velho”) ou “búzio de sonhar, de boca estreita, / onde a maré da minha infância se perdia” (“Os Cardos”). 
É assim uma gruta que podemos considerar transformada em poço para um Narciso que, diferentemente da figura da mitologia grega, não se contenta com o seu reflexo numa superfície espelhante e prefere ver-se em ressonâncias vindas a pulsar desde as profundezas do ser, como em “A furna”: “Debruço-me comigo no meu poço / – Tudo a fundo sonoro e emparedado – / E, rente aos tampos, ouço, ouço / Meu coração aproximado.” Afinal, na furna, outra modalidade da noite, o eco “é uma humidade”, calando o minério “Da minha estreme poesia. / Cala-o para que eu próprio vá batendo, / Dos martelos comuns abandonado, / O possível no opaco de atro urdume”.
Depois esta percussão em ecografia continua na “Ode ao mar”: “Lá, uma vaga dera / Uma pancada rara / (A vaga minha madrinha), / não sei com que força ou vara: / sei que a pancada vinha / direita ao meu coração, / que ainda hoje a reproduz.” Acrescentemos que, em “Outro testamento”, o efeito mais importante de ressonância é perfeitamente explicitado neste outro verso que comporta um dos sentidos fundamentais da poética nemesiana: “Pois quando me comovo até o osso é sonoro”.
Decorridos 50 anos sobre as minhas primeiras leituras de O Bicho Harmonioso, essa continua a ser a primeira coisa que me toca quando volto a pegar neste livro.
NOTA
1. Recorro ao Dictionnaire des Mots de la Musique de Jacques Siron (Paris, Outre Mesure, 2002) para recapitular uma definição útil: por ressonância entende-se a entrada em vibração passiva de um corpo sonoro por um excitador exterior periódico cuja frequência é igual a uma das frequências próprias do corpo sonoro (= frequência de ressonância); após extinção da fonte exterior, o corpo que ressoa continua a vibrar”. Em sentido menos estrito, pode ainda falar-se de reverberação, prolongamento ou amplificação dos sons em todas as frequências.
Vasco Graça Moura, “Vitorino Nemésio” in Relâmpago n.º 28, abril de 2011



VITORINO NEMÉSIO - A POESIA COMO CEGUEIRA ILUMINADA

Em "A Arte de Escrever (Composição; Sensibilidade; Atitude Crítica)"1, Vitorino Nemésio, chamando a atenção para a dimensão primordialmente linguística de toda a obra de arte literária, reflecte sobre o modo como se caracteriza essa mesma linguagem e sobre a relação que se estabelece entre autor e obra. Rejeitando o preconceito de ser o autor um puro inspirado "exclusivamente um sensível, quer dizer uma pessoa dotada, em alto grau, de permeabilidade aos fenómenos da emoção estética pura", reconhece que a "sensibilidade é o grande factor de inspiração, mas sensibilidade racionável, riça de fios que a inteligência vai urdindo, enliçando a seu modo, compondo". Se as obras de juventude nemesianas se caracterizam por um acentuado tardo-romantismo, este texto, publicado em 1928, demonstra uma modernidade estética na apreensão da natureza especificamente linguística do fenómeno literário e no ênfase colocado na composição poética como "a operação capital do escrever". A atitude crítica, no poeta, apresenta-se como "um jogo de faculdades de rejeição e de escolha" dos materiais linguísticos e afectivos de que dispõe.
Alguns anos mais tarde, em "Prefácio: da Poesia"2, realça-se a autonomia do poema que se desprende do poeta, sujeito que está , quer no momento da produção quer na leitura, às "regras gerais do jogo linguístico". Abandona-se, agora, a defesa do papel preponderante anteriormente concedido à intervenção compositiva do poeta. O jogo literário já não é jogado com a certeza do domínio das regras, é antes o jogo que impõe essas regras ao jogador. Ainda que "uma certa forma de consciência acompanhe o poeta enquanto agente do acto linguístico", a instância autoral é descrita "quer como o campo pessoal onde ocorrem os encontros dos signos da linguagem, quer como o medium de uma vocação que confere sentido ao universo" e, assim, "o grau de consciência que nessas funções lhe toca pode reduzir-se a uma mera ressonância do explícito".
Longe já da confiança primeira de ser o poeta aquele que age sobre a linguagem, é antes esta que nele fala. A poesia, enquanto forma simbólica, é uma forma de conhecimento, pois ao revelar as relações que as coisas mantêm entre si assume-se não como veículo de um conhecimento exterior a ela, que se limitaria a traduzir, mas é a sua dimensão metafórica que funda o conhecimento em si, uma vez que é a implicação o modo dialéctico da poesia responder à Esfinge. Daqui decorre a falência hermenêutica do juízo e do conceito perante a criação poética, reconhecendo Nemésio que a realidade alegórica criada pela poesia é algo que "a razão não traduz absolutamente nos seus termos, mas que verbalmente é dada com a plenitude da intuição", e, por isso, o autor perante a sua obra experimenta uma determinada incompreensão crítica, uma vez que "o que poeticamente realiza furta-se talvez à objectivação analítica".
Mas a reflexão metapoética, neste autor, não se esgota nos ensaios críticos. A poesia de Vitorino Nemésio caracteriza-se frequentemente pela reflexão metapoética, quando os poemas tematizam a natureza e o alcance do verbo poético e as relações que se estabelecem entre este e o sujeito enunciador. Esta vertente auto-reflexiva da poesia nemesiana é uma das linhas de força que percorre esta obra poética, que Maria Rosa Goulart define, sinteticamente, do seguinte modo: "Se a palavra poética nemesiana revela a nostalgia do Verbo primordial e se orienta incessantemente na mira dessa palavra da era pré-babélica, é porque ele está ciente de que o verbo humano, exilado do mundo edénico, não é mais do que um pálido reflexo do Verbo total, unívoco e sagrado, que se identifica com o próprio Deus"3. A visão nemesiana da palavra como Verbo ou sua sombra, mero equívoco, filia-se no pensamento de Heidegger, como demonstrou, por exemplo, Vasco Graça Moura4. Esta procura da palavra primordial norteia sobretudo a poesia de Nemésio que mais explicitamente encena uma mundividência religiosa e implica o conceito de criação poética como devedora de uma fulguração reveladora, de que o poeta não é responsável, num transe criador de contornos platónicos. Nesta poesia, então, nas reflexões sobre a relação entre o sujeito enunciador e o enunciado, é constante a supremacia do conceito de poesia como defluindo de uma revelação a que se acede intuitivamente relativamente à de concepção de que o poema deriva de uma composição crítica do discurso, o que equaciona a impossibilidade de o sujeito se reconhecer como o autor da voz que fala no poema.
A leitura de "A Minha Voz"5 é a esse respeito elucidativa. A auto-escopia do sujeito poético implica a tentativa de objectivar o que dentro em si reconhece como distinto de si mesmo - "Sai um pouco de mim para eu te ver" - e a voz que fala já não é a sua: "Quando te cito, canta,/ Longe, uma voz diversa (...)/ Outras vezes não te cito: tu me citas". Aquele que pensa a escrita afasta-se do que a enuncia e, assim, a "minha voz" é um "tu" que não coincide com o eu, mas que com ele mantém uma reversibilidade criadora, pois o sujeito cria a voz que o cria a si mesmo: "Vamos a ver se te crio,/ A ti que me encheste de ser (...)/ Então do meu transe se adianta/ O teu vulto coberto do meu vulto,/ E é sempre assim que o duplo canta". Este "duplo" é o "nós" que emerge no final do texto ("Assim nos vimos, / Minha voz:/ Bichos, limos, vozes, tristezas,/ E tudo isto dentro de nós.") e em que o sujeito simultaneamente se reconhece e se estranha.
A mesma tensão entre o sujeito e a voz que nele fala é legível em "O Canário de Oiro"6, em que a voz poética começa por ser "este canário de oiro que me espreita e debica", ou seja, outra coisa relativamente ao sujeito que lhe serve de objecto e alimento, é por um momento entendida como consubstancial ao sujeito -"A que o canário é o meu sangue talvez"-, para depois ser reconhecida como irremediavelmente estranha: "Mas então isto que é? Que violino engoli?/ Que frauta rude aveludou a minha noite?/ Em que prato de cobre bateu o nó do açoite?/ Tão exacto, meu Deus, só vibrado por ti.", o que anuncia, aliás, a temática religiosa posteriormente recorrente de ser a palavra poética sopro do verbo divino.
No poema "A Furna"7 o mesmo gesto introspectivo inicial - "Debruço-me comigo no meu poço"- constitui-se como reconhecimento da perda da unidade do sujeito ("Água, água, espelho liso/ Da cara que já perdi"8), que só é construído a partir do que em si se desconhece - "O meu secreto lençol de águas/ Em que, nenúfar, bebo e broto!" - e, consequentemente, como reflexão metapoética que aponta para a dissociação entre o eu que se olha e o que nele mora e lhe fala: "E rente aos tampos ouço, ouço/ Meu coração aproximado./ Mas de ouvi-lo sou pálido e sem pulso/(...)/ Quem deseje saber o que se escuta/ Nesta parede intolerável/ Veja se cabe em minha gruta:/ Impenetrável! Impenetrável!". Este poço, espaço íntimo e imperscrutável, pode ser ainda, noutros textos deste volume, um búzio velho ("Búzio ridículo, malhado,/ Casa onde nunca entro/ Assim torcido, conservado/ Com frio e barulho dentro:/ Se me falasses em voz alta/ Todos ouviam o que eu ouço/ Quando uma simples areia salta/ No bafo estreito do teu poço (...) Esta canção do búzio desusado,/ Como a posso acabar dentro de mim/ Se eu sou o bicho dele despegado?")9 , o "navio humano, cheio pelos porões"10, a "gruta" que é o "buraco vil de bicho harmonioso", a gaiola de ossos de "O canário de ouro", ou seja, o que fala no sujeito é muito frequentemente figurado como um espaço delimitado e complexo, por vezes labirinto ("Seus corredores complicam-se na sombra"11) sem centro perceptível, em que ou se expandem sons e a palavra acontece ou a "gruta é "sem ecos"12 e o tempo de silêncio - "A furna trava de mistério: Sua garganta aberta ao dia/ Calou o íntimo minério/ Da minha estreme poesia"13 -, que a graça divina poderá iluminar: "Meu poço, olho de cego/ Que aberto ao céu não vê/ (...) Cego, tão cego poço!/ Surdo, tão surdo eu!/ Quase que te não ouço./ Atento o céu se acendeu."14.
A partir do momento em que a temática religiosa se torna fundamental em Vitorino Nemésio, impera a consciência de que a palavra poética surge defluindo de uma força exterior ao sujeito - "Só perdido de si alguém dá lume/ Como uma concha ao sol que não é ela"15 -, excedendo-o, tornando secundária a intervenção compositiva: "Se intervenho no som gratuito, ofendo/ Seu sentido secreto e íntima cheia:/ Transtornado por ela, emendo, emendo,/ E é ela que me absorve e senhoreia."16. É, pois, despojado de si mesmo que, numa epifania, a poesia acontece, "Alheio como eco em anel de poço/ Num segundo à palavra dês rochedo/ Face de reflexão que escuda a Origem"17. O que se encerra neste poço já não são "bichos, limos, vozes, tristezas"18, mas antes a "Origem". Enquanto equívoco, contudo, a palavra é prisão inexpugnável19, espaço de que não se pode sair.
Ao longo da poesia nemesiana, o sujeito poético descobre a sua voz como estranha, guiada por outra coisa que si mesmo: "O meu coração é um como um peixe cego/ Só o calor das águas o orienta/ E por isso me arrasta aonde me nego/ De puros impossíveis me sustenta."20. É precisamente esta cegueira que permite aos "olhos do cego/ a luz do íntimo ver"21. A poesia como visão íntima ou última remete para o conceito de poesia como conhecimento guiado não pela razão, mas pela intuição das relações que entre as coisas no mundo se escondem, ou seja, é a poesia a visão do que não se pode ver, a não ser pela alusão metafórica.
Mas esta revelação depende de uma atitude vigilante relativamente a este acontecer, de uma atenção particular que o sujeito deve prestar à dádiva de sentido que lhe é feita: "No lance do verbo jogo/ Mas, se vigio o meu dado,/ A boca sabe-me a fogo/ Do sentido inesperado"22. É ao olhar o jogo, que o sujeito não domina, que surge o fogo do sentido. Aquilo que domina o sujeito é objecto da sua vigilância e essa contemplação é condição necessária para a emergência da palavra na sua plenitude.
Ao pensar-se a escrita poética no poema, o sujeito, não podendo identificar-se coma sua voz, vê-se a não se rever e é esse gesto reflexivo que constitui o conhecimento extremo que advém da sua poesia, o reconhecimento da descoincidência entre a voz que fala, quem ouve essa voz e quem pensa a escuta dessa voz. Este saber é a liberdade possível para quem é prisioneiro de ecos: "A escravidão que tenho ei-la diuturna:/ É estar aqui, de ouvido impresso em pó,/ a ouvir-me velho ouvindo a furna."23. O auto-conhecimento poético só pode fundar-se na experiência desse estranhamento: sobre a sua própria poesia "que luz da razão lha esclarece ao poeta que não seja a da fonte do acto criador, unívoco?"24. Ou seja, a luz possível é a da iluminação da sua cegueira: "Meu coração sonhando é um poeta cego,/ Sê-lo acordado e vendo é que é poesia."25.

NOTAS
1 Vitorino Nemésio - "A Arte de Escrever (Composição; Sensibilidade; Atitude Crítica)", in Vitorino Nemésio. Estudo e Antologia. (org. de Maria Margarida Maia Gouveia) Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1986.
2 Vitorino Nemésio - "Prefácio: Da Poesia", in Obras Completas -vol. II Poesia. Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, s/d.
3 Maria Rosa Goulart - "Vitorino Nemésio: na Senda do Verbo Primordial", in Vitorino Nemésio. Estudo e Antologia. p.568.
4 Cf. Vasco Graça Moura - "Nemésio: o Lance do Verbo", in Várias Vozes. Lisboa, Editorial Presença, 1987. esp. pp. 67-70.
5 Vitorino Nemésio - "A Minha Voz", in Obras Completas -vol. I Poesia. Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, s/d.pp.132-3.
6 Idem - "O Canário de Oiro", in Obras Completas -vol. I Poesia. pp.136-9.
7 Idem - "A Furna", in Obras Completas -vol. I Poesia. pp.182-4.
8 Idem -"O Poço", in Obras Completas -vol. I Poesia. p.96.
9 Idem - "Canção do Búzio Velho", in Obras Completas -vol. I Poesia. pp.165-6.
10 Idem - "A Vaga Verde", in Obras Completas -vol. I Poesia. p.167.
11 Idem -"A Furna". p.183.
12Idem -"O Bicho Harmonioso", in Obras Completas -vol. I Poesia. p.130.
13 Idem -"A Furna". p.184.
14 Idem -"O poço". p.96.
15 Idem - "Pelo Sinal de Fogo", in Obras Completas -vol.II Poesia.p.262.
16 Idem -"Verbo e Abismo", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.318.
17 Idem -"Signo Velado", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.308.
18 Idem -"A Minha Voz". p.133.
19 Cf. Idem - "Prisão", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.315.
20 Idem - Eu, Comovido a Oeste, nº24,in Obras Completas -vol.I Poesia.p.248.
21 Idem - "Outra Lição", in Obras Completas -vol.I Poesia.p.100.
22 Idem -"Fogo e Sentido", in Obras Completas -vol.II Poesia.p.301.
23 Idem -"A Furna". p.184
24 Idem -"Prefácio: Da Poesia". p.704.
25 Idem -"Antão era Pastor - II", in Obras Completas -vol.II Poesia. p.398.

Rita Patrício, “Vitorino Nemésio: a poesia como cegueira iluminada”, Ciberkiosk, n.º 2, 1998. Disponível em: http://www.ciberkiosk.pt/arquivo/ciberkiosk2/ensaio/nemesio1.htm Acedido em 2002-02-05


Furna do Enxofre, ilha Graciosa, Açores.


SUGESTÕES DE LEITURA

    ► Apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura de textos de Vitorino Nemésio




Debruço-me comigo no meu poço, Vitorino Nemésio” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 13-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/debruco-me-comigo-no-meu-poco-vitorino.html


 

quinta-feira, 11 de julho de 2019

A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo, Fernando Pessoa



A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,

A guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.

A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.

Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.

Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.

Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.

A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.

A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.

Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

24-10-1917
“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
  - 96.





[…] refira-se que Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro escreveram um número indeterminado de poemas, talvez duas dezenas, sobre o tema da guerra, parte deles em 1915-1917. Neles o autor aparece sempre não como um ideólogo ou um pensador político, mas como alguém imparcial e “comovido com os sofrimentos inúteis dos povos e dos indivíduos”. Esta apreciação é de Georg Rudolf Lind, no seu já aqui citado artigo de 1972 em que se debruçou sobre apenas oito desses poemas (1981: 445‑447). Desde esse estudo pioneiro, outros poemas e fragmentos de poemas sobre a guerra surgiram da arca pessoana, com matéria suficiente para novos estudos sobre o mesmo tema. Não nos ocupamos deste assunto aqui, mas sim do pensamento político ou sociológico de Fernando Pessoa sobre a guerra. Foi, no entanto, com alguma surpresa que cotejámos essa poesia com as prosas pessoanas sobre a Grande Guerra. O poeta Fernando Pessoa preocupa-se com a dor humana, com as vítimas inocentes que a guerra faz, com o absurdo das mortes vãs e com a monstruosa desumanidade que a guerra desperta nos homens. Tenhamos em mente trechos da “Ode Marcial” de Álvaro de Campos ou os poemas do ortónimo como “O menino de sua mãe” e “Tomámos a vila depois de um intenso bombardeamento”.16 Alberto Caeiro, por sua vez, condena expressamente a guerra, todas as guerras, num poema caracteristicamente pacifista, “A guerra, que aflige com seus esquadrões o mundo...” (Pessoa, 1994: 142)17. Ora o pensador e ensaísta Fernando Pessoa nunca se preocupa com esses aspetos. Defende o direito da força, porque diz não nem pode haver um tribunal que julgue as nações ou os Estados.18 A Bélgica mártir não lhe inspira compaixão, porque a Bélgica seria “um Estado absurdo”, sem razões para existir.19 Quanto aos gases asfixiantes usados pelos alemães, justifica-os: “Repare-se que a Alemanha luta pela vida, com tudo contra si...” (in Pizarro, 2006: 107).20 Num texto a que adiante voltaremos, Pessoa chama mesmo à Alemanha “glorioso império construído a sangue e fogo, glorioso de dureza e impassibilidade”. Para o pensador Pessoa, a guerra é matéria de reflexão racional, que ele diz pretender analisar com a frieza de um sociólogo, sem cedências a sentimentos humanitários nem partis pris patrióticos. “Escrevo como se não tivesse alma, mas apenas pensamento” faz dizer Pessoa a António Mora na “Dissertação a favor da Alemanha” (BNP/E3, 28-­18r, ver aqui Fig. 3). Nesse quadro, os sentimentos, as ideias humanitárias ou o pacifismo desinteressam a Pessoa, que os considera, eventualmente, como objetos de análise crítica. À diferença de outros poetas modernistas europeus, Pessoa nunca fez poesia belicista ou exaltadora da guerra21, mas na prosa ensaística que produziu durante a Grande Guerra assumiu uma clara insensibilidade aos horrores da guerra.

Notas:
16 A “Ode Marcial”, atribuída a Álvaro de Campos e deixada inédita, é datável de 1914-­‐‑1915 ver Pessoa (2014: 152-­163 e 620-­625). Os outros dois poemas foram publicados apenas na década de 1920 (Pessoa, 1926 e 1929), mas Lind (1981: 440) sustenta que  foram  escritos  durante  a  Grande Guerra. Tal hipótese não se confirma, que pelo menos o poema “Tomámos a vila depois de um intenso bombardeamento” está datado no original manuscrito de 21‑6‑1929 (BNP/E3, 118-­57r).

17 Datado de 24 de Outubro de 1917.

18 Num acrescento manuscrito à segunda versão da resposta a João de Barros (BNP/E3, 135-­20r).

19 Ver “Argumentos a favor da germanofilia” (BNP/E3, 144X-­12v a 14v), publicado em Pizarro (2006: 105‑107).

20 Opinião semelhante foi então expressa por Júlio Dantas. Falando sobre os gases de cloro usados como arma pelos alemães, escreveu: “Um povo como o alemão, quando joga, numa cartada suprema, o seu destino e a sua vida, não pode escolher, generosamente, os processos de extermínio que adopta. [...] Devemos concluir, por isso, que é ignóbil a Alemanha? Não. O que é ignóbil é a guerra” (Dantas, 1915: 609).

21  Dúvidas sobre esta afirmação poderão surgir lendo o poema “Na ponta de cada baioneta luzem os  olhos  de  Kant..."ʺ  (BNP/E3,  144X‑66r),  publicado  em  Pizarro  (2006:  104),  e  certos  trechos  de rascunho para a  “Ode Marcial”, como  “Ave guerra, som  da luz  e do fogo...”  (BNP/E3, 64-­‐‑42r), publicado em Pessoa (2014: 359), mas não são, a nosso ver, casos claros de poesia exaltadora da guerra.

José Barreto, “Fernando Pessoa ‒ germanófilo ou aliadófilo? - Um debate com João de Barros que não veio a público” in Pessoa Plural: 6 (O./Fall 2014). Disponível em: https://www.ics.ulisboa.pt/file/5346/download?token=F6Cr8bAX


Niclas Hammarström, 2013


ODE MARCIAL

Inúmero rio sem água — só gente e coisas,
Pavorosamente sem água!

Soam tambores longínquos no meu ouvido,
E eu não sei se vejo o rio se ouço os tambores,
Como se não pudesse ouvir e ver ao mesmo tempo!

Helahoho! helahoho!

A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta...
Ela cosia à tarde indeterminadamente...
A mesa onde jogavam os velhos,

Tudo misturado, tudo misturado com corpos, com sangues,
Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror.

Helahoho! helahoho!

Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da estrada,
E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida.
Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da viúva que mataram à baioneta
E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coração.

Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles
Que matou, violou, queimou e quebrou.
Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso com uma sombra disforme
Passeiam por todo o mundo como Ashavero,
Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho do infinito.

E um pavor físico de encontrar Deus faz-me fechar os olhos de repente.

Cristo absurdo da expiação de todos os crimes e de todas as violências,
A minha cruz está dentro de mim, hirta, a escaldar, a quebrar
E tudo dói na minha alma extensa como um Universo.

Arranquei o pobre brinquedo das mãos da criança e bati-lhe.
Os seus olhos assustados do meu filho que talvez terei e que matarão também
Pediram-me sem saber como toda a piedade por todos.

Do quarto da velha arranquei o retrato do filho e rasguei-o.
Ela, cheia de medo, chorou e não fez nada...
Senti de repente que ela era minha mãe e pela espinha abaixo passou-me o sopro de Deus.
Quebrei a máquina de costura da viúva pobre.
Ela chorava a um canto sem pensar na máquina de costura.

Haverá outro mundo onde eu tenha que ter uma filha que enviuve e a quem aconteça isto?

Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trémulos,
Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,
Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isso se passou,
E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que tudo seja o mesmo.
Deus tenha piedade de mim que a não tive de ninguém!

s.d.
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).
  - 304.


Os problemas políticos do tempo de Fernando Pessoa também o interessaram muito, pois conforme ele próprio afirma, “todas as questões sociais , todas as perturbações políticas, por pouco que com elas nos preocupemos, entram no nosso organismo psíquico, no ar que respiramos psiquicamente, passam para o nosso sangue espiritual, passam a ser, inquietamente, nossas como qualquer coisa que seja nossa”.1 Por isso, Fernando Pessoa escreveu muitos textos sobre várias questões sociais e perturbações políticas, e de que ele fala e critica também nos seus textos literários,  que estão reunidos neste livro : a nível internacional, por exemplo o colonialismo inglês, a escravização da Etiópia pela Itália, a Primeira Guerra Mundial,  a Revolução Russa de 1917, e o fascismo de Mussolini. A nível nacional, a crise final da Monarquia, a instauração da República, os Governos saídos da República, o consulado do Presidente Sidónio Pais, o seu assassinato e o período subsequente, a intentona militar de 18 de Abril de 1925, a agonia da Primeira República, a Ditadura Militar, o Estado Novo, Salazar, e outras personalidades políticas portuguesas (João Franco, Afonso Costa, etc.).
Além de literatura sobre política, Fernando Pessoa também escreveu ensaios sobre política (já publicados). No entanto, nem mesmo nos seus ensaios sobre política (como aliás sobre qualquer outro tema), existe um pensamento sistematizado, mas antes uma mistura de assuntos, muito dispersos, sem sequência lógica, e por vezes contraditórios. Fernando Pessoa tem textos que revelam ser um nacionalista, e outros um internacionalista, uns em que mostra simpatia pelo liberalismo, e outros em que o critica, e até mesmo em relação ao comunismo, que ele critica em alguns dos seus textos, diz o seguinte : “Serve melhor à pátria um grande poeta comunista ou imoral, que um pobre diabo que escreve poemas elogiosos sobre a batalha de Aljubarrota” (apesar de Fernando Pessoa ser um nacionalista). Nenhum dos seus textos sobre política permite extrair a conclusão de que ele era desta ou daquela ideologia política, pois tanto pode falar bem como mal de determinados assuntos políticos, como sucedeu por exemplo em relação ao liberalismo. Conforme o próprio Fernando Pessoa afirma, um escritor ao ocupar-se de política “deve fazer o possível, se quer estar de acordo com o seu mister, por compensar a oscilação num sentido por uma oscilação no oposto. O ideal de um escritor consciente do seu mister, e que porventura escreva sobre política, é apresentar um dia os aspetos positivos, ou negativos, de uma doutrina, no outro dia os aspetos positivos, ou negativos, da doutrina oposta. Aos políticos pertence o estarem fixos num ou outro polo do assunto. É este o mister deles, políticos.”2
Em todo o caso, após mergulharmos a fundo na sua vasta obra, conseguimos extrair algumas conclusões,  bastando ler aliás a sua obra literária: era contra as tiranias políticas, o totalitarismo, as guerras, o comunismo, o fascismo, o salazarismo, o colonialismo, e o imperialismo,  e apesar da sua educação inglesa, criticou também o imperialismo britânico (por exemplo  nos poemas reunidos neste livro). Mesmo quase no final da sua vida, quando a invasão da Etiópia era anunciada pelo regime de Mussolini, com o argumento da existência de escravatura naquele país, escondendo esse argumento os interesses económicos e políticos do imperialismo italiano, invasão essa que que de facto chegou a acontecer, Fernando Pessoa criticou a Itália, conforme se pode ver no seu poema Dizem que vão apresentar, incluído no presente livro.
 Inicialmente  Fernando Pessoa simpatizou com o período político autoritário que deu origem ao Estado Novo em Portugal, cuja defesa fez no seu texto O Interregno, mas nele fazia a defesa de um “Estado de transição”, como a própria palavra indica, interregno esse para serenar os ânimos, necessário para acalmar as lutas existentes em Portugal entre Monárquicos e Republicanos, e as sucessivas quedas de Governos, e para fazer face à onda de estrangeirismo e à quebra do orgulho nacional, mas que conduzisse a um regime político que não se poderia basear na força nem na autoridade, mas sim na opinião.  Porém, ao verificar que o Estado Novo continuava, Fernando Pessoa escreveu que “O Interregno devia ser considerado como não existente”, e que “há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito”, e noutro texto disse sobre o texto O Interregno: “Dou esse escrito por não escrito”.   Ao ir conhecendo melhor aquilo que era o Estado Novo, tornou-se um crítico severo desse regime político, e de Salazar, assim com das ditaduras fascistas na Europa, como a de Mussolini, e de Hitler. Um dos melhores exemplos foi o seu empenho em criticar a proibição das Associações Secretas, feita pelo Estado Novo, sobre a qual escreveu e polemizou, e que rompeu definitivamente com o Estado Novo.

Notas:
1 Sensacionismo e outros ismos, Lisboa, Ed. Imprensa Nacional Casa a Moeda, 2009, p. 187.
2 BNP/E3, 92A – 7r

Fernando Pessoa, Obra literária sobre política (org. de Victor Correia), Lisboa, Ed. Sinapis, 2019.




Prefiro rosas, meu amor, à pátria,

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a Primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam?

E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

1-6-1916
Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 
 - 64.


Texto de apoio
Ainda que o assunto da ode não seja imediatamente percetível, é importante estabelecer desde logo que aquilo a que Reis renuncia logo no primeiro terceto, preferindo-lhes rosas e magnólias, é à guerra. Ao contrário do que acontece noutros momentos da sua obra, a fama em causa não é aqui a fama que resulta da atividade poética mas antes, como o comprova a proximidade com as outras duas coisas que não interessam a Reis (a pátria e a virtude), a fama que resulta das virtudes militares demonstradas em defesa da pátria. Se lida, aliás, lado a lado com a outra ode em questão, uma ode em que os dois  protagonistas preferem manter a concentração num jogo de xadrez mesmo quando a pátria  que supostamente deveriam defender é invadida por um agressor estrangeiro, essa circunstância parece adquirir plausibilidade. Vendo ainda que, na terceira estrofe, Reis defende que não importa “que um perca e outro vença”, tal plausibilidade passa a certeza.
A ode é, de resto, mais uma invectiva dirigida a Horácio, neste caso à exortação marcial à maneira de Tirteu que é a ode III.2 e, muito concretamente,  ao  famosíssimo  décimo terceiro verso dessa ode: “doce e belo é morrer pela pátria” [dulce et decorum pro patria mori] (Od., III.2). As duas odes de Reis, aliás, evidenciam uma aversão à atitude bélica celebrada por Horácio nessa ode que ganha em ser compreendida à luz de um acontecimento recentíssimo aquando da produção delas, a 1 de Junho de 1916: menos de três meses antes, a 9 de Março, a Alemanha declarara oficialmente guerra a Portugal. Ao contrário de Horácio, Reis não está interessado em exibir o seu patriotismo, não pretende alcançar a fama que se segue a essa exibição e encontra menos virtudes em proceder desse modo do que em colher flores. A guerra é inútil, pois a vida continua qualquer que seja o seu desfecho. Assim sendo, é preferível deixar que a vida (e a guerra) o não canse, passando por ele sem o modificar. A única coisa de que Reis não abdica, como se no final da ode, é o desejo de indiferença e a “confiança molle” (RR 133) na passagem do tempo, aquilo que, justamente,  constitui  a atitude que António Mora repudia e aquilo que sobressai do lazer  a  que  os  jogadores  de xadrez, na segunda ode que importa discutir, se consagram com indefectível devoção.
Ora, “Os Jogadores de Xadrez” (BNP 51-25r a 26r) é diferente de todas as outras odes de Reis na medida em que não é bem uma ode: além de não dialogar com uma segunda pessoa, como é hábito, Reis abusa invulgarmente da descrição, contrariando a  tendência normal na sua obra, talvez adquirida por Pessoa o  ter  feito  médico,  para  a  prescrição.  O epodo é assim que Mora se refere ao poema começa com uma estrofe que mais não é do que o mote das restantes, na medida em que anuncia de modo muito abreviado o que depois será descrito em pormenor. Nessa estrofe, Reis diz ter ouvido contar uma história antiga, “quando a Pérsia / tinha não sei qual guerra” (RR 129), sobre “dois jogadores de xadrez” que “jogavam / o seu jogo contínuo” enquanto “a invasão ardia na Cidade / e as mulheres gritavam” (RR 130). As três estrofes seguintes são exclusivamente descritivas, e apresentam a diferença radical entre a tranquilidade do jogo de xadrez (e dos jogadores que nele permanecem concentrados) e o tumulto do que se passava à volta. Assim, em contraste com as atrocidades que iam acontecendo (“ardiam casas, saqueadas eram / as arcas e as parêdes, / violadas, as mulheres eram postas / contra os muros cahidos, / trespassadas de lanças, as creanças / eram sangues nas ruas”), os jogadores permaneciam folgadamente à “sombra de ampla arvore” fitando “o taboleiro antigo” e refrescando “a sua sóbria sede” com “um pucaro de vinho”. E mesmo que o massacre lhes desviasse a atenção do jogo, mesmo que “nas mensagens do ermo vento / lhes viessem os gritos, / e, ao reflectir, soubessem com acerto / que por certo as mulheres / e as tenras filhas violadas eram / nessa distancia proxima”, os jogadores de xadrez rapidamente “volviam  sua attenta confiança / ao taboleiro velho” (RR 130).
Note-se que fazer suceder à indiferença com que se lida com que o que nos é exterior uma “attenta confiança” a outra coisa qualquer é exactamente igual a fazer suceder-lhe uma “confiança molle” (RR 133), que é o que Reis lhe faz suceder na última estrofe da ode que comentei antes desta. Significa isto que  a indiferença dos jogadores de xadrez, como  a de Reis em geral, não é propriamente a indiferença estóica; à atitude da indiferença soma-se a atitude da confiança, seja ela atenta ou mole, numa  outra  coisa.  E,  tanto  na  ode  “Prefiro rosas, meu amor, á patria” como em Os Jogadores de Xadrez”, essa outra coisa em que se deposita a confiança pertence a um tempo diferente. Se a indiferença que Reis e os jogadores de xadrez manifestam diz respeito a um presente que lhes solicita as virtudes marciais, a confiança que  se  segue  a  essa indiferença é  direccionada para um  passado  qualquer, para uma “hora fugitiva” (RR 133) ou para um tabuleiro de xadrez que se  distingue  por  ser “antigo” ou “velho” (RR 130). As três estrofes que se seguem representam, de certo modo, essa passagem da indiferença à confiança, e nelas parece ser sugerido que o dever de cada um é para com o jogo que joga e nada mais:

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das creanças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o cheque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
D’um guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue alli cahir
O jogador solemne de xadrez,
O momento antes d’esse
É ainda entregue ao jogo predilecto
Dos grandes indiff’rentes.

Caiam cidades, soffram povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranquillos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem cheque,
E o de marfim peão mais avançado
Prompto a comprar a torre. (RR 131)

O que realmente é aflitivo, para um jogador de xadrez, não é saber que as irmãs, as mães e as crianças estão em perigo, que “lá longe / estejam morrendo filhos” ou que a cidade esteja a ser saqueada, mas ter o rei em xeque, não poder proteger a retirada da rainha com a torre ou não ter peça com que ameaçar o rei adversário. A própria vida do jogador de xadrez, mesmo que a poucos instantes de findar, não é nada em comparação com a solenidade do “jogo predilecto / dos grandes indiff’rentes” a que se deve entregar.

Nuno Amado, Ricardo Reis (1887-1936), Lisboa, FLUL, 2016. Tese de doutoramento disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/26299/1/ulfl218787_td.pdf






I - Questionário sobre o poema “Prefiro rosas, meu amor, à pátria”, de Ricardo Reis.

1. Compare a atitude do sujeito poético com a dos outros «humanos» (verso 13), tendo em conta a oposição simbólica entre «rosas» e «magnólias», por um lado, e «pátria» e «glória» e «virtude», por outro lado (versos 1 a 3).

2. Interprete o sentido da segunda estrofe, à luz da filosofia de vida de Ricardo Reis.

3. Explicite, com base no conteúdo dos versos 7 a 18, dois aspetos que evidenciem o modo como o sujeito poético perceciona a passagem do tempo.

 

Explicitação de cenários de resposta.

1. Compara a atitude do sujeito poético com a dos outros «humanos», desenvolvendo dois tópicos de resposta adequadamente:

o sujeito poético opta pela adoção de uma atitude contemplativa/pela fruição do belo/natural/efémero («rosas» e «magnólias»), recusando os valores da «pátria», da «glória» e da «virtude»;

os outros «humanos» preferem a «pátria», a «glória» e a «virtude», que representam o esforço/o sofrimento/a entrega a causas (pessoais e sociais)/a constante busca de superação.

2. Para interpretar o sentido da segunda estrofe, à luz da filosofia de vida de Ricardo Reis, devem ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

recusa das emoções fortes/busca da tranquilidade/ataraxia («Logo que a vida me não canse» v. 4);

indiferença perante a passagem do tempo («deixo / Que a vida por mim passe» – vv. 4-5);

passividade/atitude contemplativa/ausência de ação («Logo que eu fique o mesmo.» v. 6).

3. Para explicitar o modo como o sujeito poético perceciona a passagem do tempo, com base no conteúdo dos versos 7 a 18, devem ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

passagem irreversível do tempo/tempo perspetivado como duração, patente na referência à repetição cíclica das estações do ano;

circularidade do tempo cósmico, o que é testemunhado na natureza («Se a aurora raia sempre» – v. 9; «Se cada ano com a primavera / Aparecem as folhas / E com o outono cessam?» – vv. 10-12);

preferência pelo momento presente (carpe diem), através da valorização da «hora fugitiva» (v. 18);

consciência da fugacidade da vida («E a confiança mole / Na hora fugitiva» – vv. 17-18).

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2018, 2.ª Fase

 

***

 

II – Comentário do poema “Prefiro rosas, meu amor, à pátria”, de Ricardo Reis

O comentário de um texto literário orientado por tópicos de análise visa avaliar as competências de compreensão e de expressão escritas.

Ao classificar o comentário elaborado pelo examinando, o professor classificador deverá observar o domínio das seguintes capacidades:

– compreensão do sentido global do texto;

– interpretação do texto através da identificação e da relacionação dos elementos textuais produtores de sentido, na base de informação explícita e de inferências;

– seleção diversificada de elementos textuais pertinentes e adequados ao desenvolvimento dos tópicos enunciados;

– identificação de processos retóricos/estilísticos e de aspetos formais, com avaliação dos efeitos de sentido produzidos;

– relacionação do objeto em análise com o seu contexto;

– construção de um texto estruturado, a partir da articulação dos vários aspetos analisados;

– produção de um discurso correto nos planos lexical, morfológico, sintático e ortográfico.

 

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

– importância das marcas do tempo;

– relação simbólica entre «rosas»-«magnólias» e «pátria»-«glória»-«virtude»;

– aspetos formais e recursos estilísticos relevantes;

– traços gerais da poética de Ricardo Reis.

Observação:

Relativamente ao terceiro tópico, são exigidos, no mínimo, um aspeto formal e dois recursos estilísticos.

 

Explicitação de cenário de resposta

Importância das marcas do tempo

As marcas do tempo, relevantes ao longo do texto, indiciam a centralidade da problemática do tempo no poema. Assim:

– a predominância dos verbos no presente do indicativo («Prefiro», «amo», «deixo», «importa», «raia», «Aparecem», «cessam», «Acrescentam», «aumentam» – vv. 1, 2, 4, 7, 9, 11, 12, 14 e 15), expressando o modo de ser e a filosofia do sujeito poético marcados pela indiferença perante o correr do tempo («deixo / Que a vida por mim passe» – vv. 4-5);

– a representação de um tempo que flui irreversivelmente, ainda que cíclico («a aurora raia sempre» – v. 9; «Se cada ano com a primavera / Aparecem as folhas / E com o outono cessam?» – vv. 10-12);

– a referência à «hora fugitiva» (v. 18) como a única temporalidade vivenciada pelo sujeito poético;

– ...

 

Relação simbólica entre «rosas»-«magnólias» e «pátria»-«glória»-«virtude»

Pela sua beleza fugaz e pela sua fragilidade, as flores simbolizam quer a beleza das coisas simples e naturais quer a fugacidade e a precariedade da vida. Já «pátria», «glória» e «virtude» correspondem a valores sociais, nobres e perenes, que conferem um sentido elevado à existência e em nome dos quais luta o indivíduo numa tentativa de se dignificar. Descrente de que essa busca de valores abstratos (o «resto [...] que os humanos / Acrescentam à vida» – vv. 13-14) enriqueça a sua existência, o sujeito poético rejeita tal busca e opta pela dedicação ao que é efémero, belo e natural. (Em suma, a relação simbólica que se estabelece entre as flores referidas e os valores enunciados é a de oposição entre natureza e sociedade.)

 

Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes

De entre os recursos estilísticos presentes neste poema, salientam-se os seguintes:

– a apóstrofe («meu amor» – v. 1), pondo em evidência o destinatário do discurso poético;

– o hipérbato (v. 2), destacando a preferência pelo belo e efémero face aos valores sociais e morais;

– a anáfora («Logo que» – vv. 4 e 6), realçando a atitude de indiferença do sujeito perante a vida;

– a antítese («perca» vs «vença» – v. 8; «Aparecem» vs «cessam» – vv. 11-12), salientando, por um lado, o desinteresse do sujeito perante a derrota ou a vitória dos «humanos», e, por outro, o carácter cíclico do tempo;

– a interrogação (terceiro, quarto e quinto tercetos), correspondendo a um autoquestionamento retórico do «eu», que afirma o seu modo de encarar a vida;

– a aliteração em /s/ («canse», «passe», «vença», «Se», «sempre», «Se», «Aparecem», «cessam», «Acrescentam», «salvo», «indif’rença», «confiança» – vv. 4, 5, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 16, 17), marcando ao longo do poema uma toada melódica surda e sibilante;

– ...

 

Quanto aos aspetos formais, salientam-se os a seguir indicados:

– composição poética composta por seis tercetos, num total de dezoito versos;

– verso branco;

– estrofes constituídas por um decassílabo e dois versos de seis sílabas;

– regularidade métrica na construção de todos os tercetos (primeiro verso decassilábico e os dois seguintes hexassilábicos);

– ...

Nota – Para a atribuição da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico, é considerada suficiente a apresentação de três elementos, sendo obrigatoriamente indicados dois recursos estilísticos e um aspeto formal.

 

Traços gerais da poética de Ricardo Reis

O poema revela alguns traços representativos da poética de Reis. Exemplificando:

– a afirmação de uma filosofia estoico-epicurista, patente na fruição que retira do instante e na aceitação lúcida da inevitabilidade da morte;

– a preferência pela efemeridade do presente, defendendo uma arte de viver assente no gozo moderado do momento (seguindo o tema horaciano do carpe diem, furtando-se a emoções intensas e a ideias que «Nada» lhe «aumentam na alma» – vv. 16 e 15);

– a atitude contemplativa, o modo de estar distanciado e impassível, porque ciente da fatalidade do destino e do devir humanos;

– arte poética caracterizada pelo rigor neoclássico e sua complexidade sintática (conforme com a formação classicista deste heterónimo de Fernando Pessoa);

- …

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 138. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral - Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A. Portugal, GAVE – Gabinete de Avaliação Educacional, 2007, 2.ª fase

 



Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia




Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo do xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao reflectir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?

Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predilecto
Dos grandes indiferentes.

Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulsa dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória; a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...

O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

Ah! sob as sombras que sem querer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez,
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá por fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.

1-6-1916
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 
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A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 11-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/a-guerra-que-aflige-com-os-seus.html