TU
1.
O recém-criado Instituto de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa
realizou na semana passada, nas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian, um
colóquio sobre "Os Sentidos e o Sentido", que constituiu
simultaneamente uma homenagem a Jacinto do Prado Coelho. Deve-se a iniciativa a
Ana Hatherly, apoiada por Silvina Rodrigues Lopes e Artur Anselmo. Na sessão
inaugural, em que estiveram presentes o prof. Ferrer Correia, pela Fundação
Calouste Gulbenkian, o dr. Ruy Vieira Néry, em representação do Ministério da
Cultura, e responsáveis da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, ouviu-se uma
mensagem de Manuel Maria Carrilho, atual ministro da Cultura, e houve
intervenções de Ana Hatherly, Ferrer Correia, Ruy Néry, Eduardo Lourenço,
Luciana Stegagno Picchio, Robert Bréchon, Maria Alzira Seixo e Onésimo [Teotónio]
Almeida. Pediram-me também que falasse. Tentei falar -assim.
2.
A primeira palavra é: obrigado. É a mais fácil, é a mais justa, é a mais espontânea.
Depois,
as coisas complicam-se: como falar de Jacinoo do Prado Coelho – pai. Como
Jacinto do Prado Coelho? Isto é, como um nome que se estabilizou, que se autonomizou,
que se classicizou no âmbito dos estudos literários, dos estudos da literatura comparada,
dos estudos de literatura portuguesa. Ou como pai? Como Jacinto do Prado
Coelho, é possível um discurso sereno, reconhecido, de admiração e gratidão, de
análise dos textos e do percurso. Um discurso que, imprescindível, parte no
entanto do pressuposto de que alguém, ele, desapareceu.
No
entanto, desde algumas semanas que uma frase se me impõe, obsessiva, dessas que
se não apagam, sempre que penso escrever esta intervenção. A frase não é minha,
disse-ma um amigo recentemente, um amigo abatido pela morte da mulher, que em
Paris me contava como às vezes, diante da uma montra, ou ao olhar um livro, se
esquecia de que ela tinha desaparecido, e começava a conversar. E ele dizia-me:
''É muito difícil fazer desaparecer uma pessoa."
É.
É muito difícil fazer desaparecer uma pessoa. É preciso muito trabalho, e nunca
se está certo de ter conseguido. Eu, por exemplo, se falar de Jacinto do Prado
Coelho como pai estou certo de que ele não desapareceu. Que persiste como
aquele resiste a ser apenas um nome estável de quem os outros falam. Ele, apenas.
Talvez
contando seja mais fácil. Na memória mais antiga recordo o silêncio. "Não
se pode fazer barulho", diziam-me, "o pai está a trabalhar". "Para
a tese ", acrescentavam. Devia ser ainda Camilo, devia ser já Pessoa, mas
foi sempre assim, pela vida fora. Eu brincava, lia imaginava batalhas, jogos de
futebol, emissões radiofónicas, e à minha volta o silêncio do pai a escrever -nunca,
ou raramente, à secretária, em sofás, com montes de papéis em redor, e livros
pelas cadeiras. Aliás, os livros iam ficando em cima das cadeiras, disponíveis,
e a minha mãe dizia -esta é talvez a segunda recordação –: “nesta casa ninguém
se pode sentar". Todos os dias chegavam livros, a casa era invadida pelos
livros, os livros devoravam os espaços e eu começava a ler os livros que devoravam
os espaços, e lia ao acaso das cadeiras. Posso assim contar duas coisas mais:
que o meu pai nunca impunha a leitura de um livro, lê este em vez daquele, e nunca
desaconselhava a leitura de um livro. Deixava que as cadeiras decidissem – e eu
lia. Lembro-me também dos alunos do pai, aqueles que o iam regularmente visitar
e com quem eu ia falar às vezes à sala, e desses alunos, assistentes, amigos,
havias dois que eram para mim os alunos do Pai: o David e o Urbano.
Lembro-me
de que chegavam no correio uns cadernos de uma associação de amigos de Romain
Rolland. E que chegavam livros da Galiza, que me irritavam, porque não os entendia
bem. E que o meu pai com frequência falava de Montaigne. Mais tarde percebi que
tudo isto traçava o retrato de um racionalista, de um humanista, de um cético,
de um voluntarista Cético, sim, e ele explicava: “só sei que nada sei".
Mas depois aderia a causas com uma quase ingenuidade, acreditando nos homens para
além daquilo que me parecia razoável. Lembro-me de ele me levar ao futebol, mas
ele só ia a jogos internacionais no Estádio do Jamor. E um dia, perante os gritos
de ódio a que eu assisti, tinha dez anos, por causa de um árbitro que amplas massas
qualificavam de "gatuno", eu perguntei a mim mesmo se os homens em
quem ele, o pai, acreditava, eram os mesmos que vociferavam com os olhos em chamas.
E sentia-o frágil, como se os livros fossem um lugar de fragilidade. E tinha
vontade de o proteger no seu humanismo – para que ele não ficasse desiludido.
Lembro-me
ainda de ele me dizer que desde os oito anos que não conhecia nenhum outro
regime senão o de Salazar. Lembro-me do modo como apoiou as greves de 62, como ficou
num carro durante a noitada [na] Cantina à espera que eu estivesse disponível
para regressar a casa já de madrugada. Lembro-me ainda como, quando eu ficava
encarregado de distribuir comunicados da RIA ou panfletos da Associação de Letras,
ele queria acompanhar-me de carro, e ficava na esquina de faróis apagados, no
escuro e no frio. Lembro-me de como aceitou sem qualquer reserva que o jornal AGORA
dissesse que "o filho de Jacinto do Prado Coelho esconde panfletos no
gabinete do pai na Faculdade" – o que era verdade, aliás. E eu tinha medo de
que os estudantes fossem longe demais, e que um dia ele me dissesse: isto já
não! Que aquele humanismo tivesse limites. Mas aparentemente não. Foi assim no 25
de Abril. Muitas vezes receei que episódios absurdos, como a ocupação dos
gabinetes dos professores, lhe provocassem um "basta" indignado, mas
isso nunca aconteceu. Cético, racionalista, humanista, tinha uma enorme
capacidade de aceitar a diferença e a novidade. Um dia tremi, quando numa Assembleia
Geral da Escola, um aluno (aliás, um amigo meu) se levantou e disse: "Ó
Jacinto, tu..." Ele sorriu, e estranhamente ficou feliz.
Tu.
Se refletir um pouco sobre o que se passava à minha volta em relação a ele,
posso verificar que quase ninguém o tratava por tu. Nem eu. Só mais tarde a Alexandra,
a neta. E que ele produzia uma espécie de distância, que vinha de ser pai para
todos em todas as circunstâncias, mas eles, os que não eram filhos por não
terem ido ao futebol com ele nem jogado ao berlinde no corredor da casa,
sentiam o pai na distância absoluta de um Pai. Diziam: “vou falar ao teu pai,
estou cheia de medo". Contudo, o meu pai tinha uma enorme nostalgia do tu,
de uma fraternidade calorosa que o meio e a educação lhe tinham subtraído um pouco.
Lembro-me de um dia, depois de uma crítica minha num jornal em que eu usara um tom
extremamente feroz, me disse: "mais importante de que um livro ser bom ou
mau é não magoarmos as pessoas. É tentarmos perceber o que elas pretendiam fazer".
Daí que o título do livro que lhe foi oferecido (belissimamente inventado, dizem-me,
por Margarida Barahona) – com um rosto na capa em que a doença criava, de ele a
nós e de nós a ele, um sentimento de desamparo e aflição – estivesse certo: afeto
às letras. Era um professor com a nostalgia do afeto, sempre me falou de
Sebastião da Gama, sempre admirou o modo como a certa altura Lindley Cintra
convivia com os alunos.
Poderia
continuar indefinidamente, e contar, a partir dos contos que se desprendem da
memória do meu pai nunca desaparecido, a minha história, a história de duas
gerações e a história do mundo. Contar contando com os atropelos e as contradições
de uma narrativa sonâmbula. Escolhendo a "via do conto", para seguir
o conselho que um dia recebi do poeta Jacques Roubaud, quando ele escreveu:
"se os mundos fossem contos, e os seus habitantes contadores, e não apenas
os seus seres mas tudo, todas as coisas, todas a contar as suas histórias,
contadas haveria lugar para mundos em que os contraditórios seriam verdadeiros,
em que eu diria 'tu estás vivo, tu morreste', e rindo tu responderias".
Tu.
Tu, pela primeira vez.
“Tu”, crónica
de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público.
Sábado, 27 de janeiro de 1996, p. 12.
CARREIRO, José. “Jacinto do Prado Coelho, por Eduardo Prado
Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 08-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/jacinto-do-prado-coelho-por-eduardo.html