sábado, 29 de abril de 2023

Poemas Fibonacci

 

 

A ideia dos Fibs foi lançada neste post do blogue Gottabook. A repercussão foi tanta que em alguns dias, foi parar no Slashdot e até no New York Times... Coincidentemente, o mês de abril é o mês nacional da poesia (National Poetry Month) e o mês de atenção à matemática (Math Awareness Month).

Ram Rajagopal, “Poesia em Fibonacci” in Digestivo Cultural, 14-04-2006

 


[…] Fibonacci foi um matemático italiano entre os séculos XII e XIII que popularizou os numerais indo-arábicos, utilizados nos dias de hoje, e é o responsável por sua famosa sequência, obtida através de uma lei de formação, que se inicia, de acordo com uma das suas definições, com os números 0 e 1, onde cada termo seguinte é a soma dos dois anteriores. Em linguagem matemática, seja f(0) = 0 e f(1) = 1, então, para todo n pertencente ao conjunto do números inteiros e maiores que 1, f(n) = f(n-1) + f(n-2). Assim, na infinita Sequência de Fibonaccitemos: 0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, …, onde o terceiro termof(2) = 1, igual a soma 0+1, f(3) = 2, igual a 1+1; f(4) = 3,ou seja, 1+2; f(5) = 5, obtido por2+3; f(6) = 8, 3+5, e assim por diante.

Esta sequência tem aplicações na análise de mercados financeiros, na teoria dos jogos, na computação, etc., e na própria natureza, onde faz-se notar em configurações na botânica, como por exemplo, na disposição dos galhos de árvores. Se observarmos um ananás, por exemplo, observamos que numa de suas espirais de formação há um número da Sequência de Fibonacci.

A Sequência de Fibonacci também inspira expressões literárias.

Num modismo recente, ressurgem os poemas de Fibonacci, denotados simplesmente por “Fib”. Esses poemas são versos de múltiplas linhas cuja base de formação pode ser o número de sílabas, estilo haiku – forma curta de poesia japonesa, ou o número de palavras em cada linha. Todos iniciam com o “zero”, que corresponde a um momento de silêncio, para dar início a declamação.

Comenta-se que essa forma de poesia deve ter surgido antes de Fibonacci e que o mesmo notou a sua sequência num texto sânscrito do século XII. Também há a referência, mas ainda não bem documentada, de que o poeta e matemático indiano Pingala (III ou II séculos a.C.) possuiu as mesmas ideias base para a Sequência de Fibonacci, denominando então os números desta sequência de “matraameru”, e também a noção do conhecido Triângulo de Pascal, em que cada valor de uma linha no triângulo é igual a soma de dois valores logo acima, denotando-os por “meru-prastaara”.

Para relembrar, o Triângulo de Pascal, inicia com o número 1, no topo de uma forma triangular, considerada a linha zero (0), e logo abaixo, na linha (1), temos dois números 1. As linhas seguintes iniciam e terminam sempre com o número 1, e são formadas pelas adições de dois números consecutivos da linha anterior. Assim, na próxima linha, a linha (2), iniciamos com 1, depois temos 2 (= 1+1), os números da linha anterior, e terminando novamente com 1. Na terceira linha, temos o início com 1, depois 3 (= 1+2), de seguida, 3 (= 2+1), e no fim 1. Na quarta linha, temos, 1, depois 4 (= 1+3), de seguida 6 (= 3+3), depois 4 (= 3+1), e finalmente 1.


Expondo essas linhas em sequência temos: (0) 1; (1) 1 1; (2) 1 2 1; (3) 1 3 3 1; (4) 1 4 6 4 1. Obviamente a quinta linha será, (5) 1 5 10 10 5 1, a sexta, (6)1 6 15 20 15 6 1, e assim por diante. (vide imagem 1) Notamos que apenas nas linhas ímpares há uma repetição de somas.

Uma das propriedades do Triângulo de Pascal é que a soma de uma linha corresponde a uma potência de base 2 cujo expoente é a indicação da linha, ou seja, temos: 1 = 2^0; 2 = 2^1 = 1+1; 4 = 2^2 = 1+2+1; 8 = 2^3 = 1+3+3+1; 16 = 2^4 = 1+4+6+4+1, e assim por sucessivamente.

Esta relação também seria interessante de observar em poemas respeitando os números existentes em cada linha. Vamos ver como ficaria um curto poema considerando, por exemplo, a quarta linha, 1 4 6 4 1, e o número de palavras em cada linha do poema:

TP I

(1) Eu,

(4) sonhador num tempo distante,

(6) ouvindo a voz de quem partiu

(4) disfarçado em vento errante,

(1) sucumbi

 

No poema Fib, as suas linhas vão sempre crescendo, quer em número de sílabas, quer em número de palavras, consoante a opção do poeta, fazendo com que a sua composição seja um grande desafio. Nesses poemas, a rima não é obrigatória.

Vamos dar dois exemplos. Um referente ao número de sílabas, Fib I, e outro em relação ao número de palavras, Fib II.

Fib I – sílabas (autora Beth M. Costas)

(0) (silêncio)

(1) Eu,

(1) Sem

(2) Saber

(3) Conversar,

(5) Caneta na mão,

(8) Compus um poema d’amor!

 

Fib II – palavras (autor Lepidopterae 28/3/2017)

(0) (silêncio)

(1) Pensamentos

(1) Constantes

(2) Procurando respostas

(3) Chegam mais dúvidas,

(5) Não sei parar de pensar


 

O número de espirais, em ambas as direcções, desta cabeça de girassol é 21 e 34, dois números de Fibonacci consecutivos.

Em vários dialetos e inovando a apresentação, podemos ler muitos poemas que relacionam a aplicação dos números de Fibonacci à natureza. O poema seguinte intitula-se Flor de Fibonacci, é da autoria do professor de filosofia e poeta de Barcelona Ramón Pereira e encontra-se no livro Hachís (Poesia 2005-2011). Apesar de não seguir a sequência rigorosamente, não deixa de ser interessante, (vide imagem 2) cuja tradução é a que se segue: Esta é a flor de Fibonacci. Se quiser cheirar seu néctar, dissolva na sequência dourada. Na matemática invisível, uma flor cresce, nada é o que parece ser.


imagem 2



Envolta em tanta poesia, deixo o meu contributo num original Fib em palavras, de título “Ser, ou não, capaz”.

Fib III

(0) (silêncio)

(1) Sou,

(1) ou

(2) não sou,

(3) um ser capaz.

(5) Capaz de ver e perceber!

(8) Capaz de olhar para além do racional imediato,

(13) ou apenas ver o óbvio sem sentir o que está ao seu redor.

(21) Somos seres com sentidos, sentimentos, capazes de atos de bondade e de guerra, mas também de escolha do que queremos ser…

 

Agora, lançamos aqui o desafio para que o leitor também crie os seu “Fib(s)”, quer em sílabas, quer em palavras, ou mesmo utilizando o Triângulo de Pascal. Boas escritas!

Helena Sousa Melo, Correio dos Açores, 13-04-2023

 



El ejemplo más conocido de poesía en la cual se utiliza la sucesión de Fibonacci para dotar de estructura al poema es la obra Alfabeto (1981), de la escritora danesa Inger Christensen (1935-2009). Esta obra poética está formada por 14 poemas, cada uno de los cuales tiene tantos versos como el número correspondiente de la sucesión de Fibonacci (1-610) y su primer verso empieza por la letra correspondiente del alfabeto (A-N). Os dejamos un par de sitios, de Marta Macho, donde podéis leer más sobre esta conocida obra: Alfabeto, de Inger Christensen, en divulgamat e Inger Christensen: letras abrazando a Fibonacci, en Mujeres con Ciencia.

Como nos cuenta Sarah Glaz en su artículo Poems structured by integer sequences, existen otros poemas cuya estructura se apoya en esta sucesión numérica. Un ejemplo, de 1981, es el poema en prosa Tjanting, del poeta norteamericano Ron Silliman, en el cual cada número de Fibonacci determina el número de frases de cada párrafo. El poema tiene 200 páginas y termina con el número de Fibonacci 4181.

Otro ejemplo es el poema Fibonacci de la poeta de Nueva York Judith Baumel, perteneciente a su libro The Weight of Numbers – El peso de los números (1988). Cada uno de las estrofas del poema tiene número de versos igual a un número de Fibonacci, 1, 1, 2, 3, 5, 8 y 13. Así mismo, la temática del poema está relacionado con nuestra sucesión y algunas de sus propiedades.

Fibonacci

Call it windfall

finding your calculation

come, finally,
to the last decimal point of pi.

In the silence of January snow
a ladybug survives the frost
and appears on the window pane.

She drawls a tiny space.
Hesitant. Reverses. Forward,
like a random-number generator,
the walking computer frog
who entertains mathematicians.

Think of the complexity
of temperature, quantification
of that elusive quality “heat.”
Tonight, for instance,
your hands are colder than mine.
Someone could measure
more precisely than we
the nature of this relationship.

Learn the particular strength
of the Fibonacci series,
a balanced spiraling
outward of shapes,
those golden numbers
which describe dimensions
of sea shells, rams’ horns,
collections of petals
and generations of bees.
A formula to build
your house on,
the proportion most pleasing
to the human eye.

 

Ler mais em: “Poemas Fibonacci”, Cuaderno de Cultura Científica. Raúl Ibáñez, Universidade do País Basco, 18-04-2018. Disponível em: https://culturacientifica.com/2018/04/18/poemas-fibonacci/

 

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Ao princípio, era a mitofagia (Pedro da Silveira)


 

AO PRINCÍPIO, ERA A MITOFAGIA

Conheci-o quando, dos quinze para os dezasseis anos, começava a rabiscar uns versos, orvalhados de lamúria romântica e humanitarismos à Kropotkine, que o almanaque da terra, precioso jazigo de devaneios e moralidades sediças, generosamente acolhia. No pacato burgo insulano, que os vapores ronceiros sugestionavam de Europa todos os quinze dias, ele era, sem dúvida nem contesto, alguém — literato festejado, membro das Forças Vivas. Publicara alguns trinta livros; era sócio de honra de várias academias e institutos eruditos (sobretudo heráldicos e arqueológicos). Nas capas desses livros, logo abaixo do nome do grande personagem, num discreto mas bem legível corpo 8, desfilava toda a sua glória. E, apesar da ironia do Sr. Luís da Rosa — «O Germano é sócio de todas as fanfaras deste mundo e vizinhanças» —, não havia por ali quem não tomasse a coisa muito a sério. Eu talvez mais do que qualquer outro dos basbaques locais. Pelo menos de maneira mais angelical...

Bem cara me custou à alma a cegueira idólatra!

Estou agora a lembrar-me do momento em que ele, o malandro!, encontrando-me na redação de O Distrito Autónomo, me elogiou o estro. Chamou-me «ridente promessa»; que, se continuasse, não deixaria de chegar às paragens do Parnaso. Receitou-me Junqueiro e Bilac. Mas nada de futuristas!

«Loucos, meu preclaro amigo, uns loucos! Arte nova?... Aquilo não é Arte! Ora veja, por exemplo, os versos do nosso Cabral: “O meu Charuto”. Aquilo sim! Sentimento. Brilho. Os futuristas... Loucos e mais nada!»

Concordei. Que havia de fazer eu, aprendiz de sentimental, senão concordar? E continuei a venerá-lo, a venerá-lo cada vez mais. E a escrever sonetaços, agora em alexandrinos laboriosos, suando no esforço de trepar as ladeiras do Parnaso.

Até que um dia...

O grande personagem anunciara-me, displicente, a próxima publicação de um novo livro. O último, dizia. Qualquer coisa de muito transcendente, sobre a covardia de Pôncio Pilatos, com descrições da paisagem da Judeia («aguarelas sentimentais »...), rabis, camelos e muitas outras coisas.

Faltava apenas polir umas passagens. Dentro de um mês, os prelos botariam cá para fora a maravilha.

Pois bem. Aí vai. Embora ainda hoje me custe confessar que caí neste logro; que fui levado à certa; que durante dois anos aceitei como verdade incontroversa a grandeza daquele farsante de província. (Sirva-me de consolação a certeza de que não fui o único parvo. Que muitos, ainda hoje, a catorze anos da morte dele, aceitam a sua grandeza.)

Era costume juntarem-se, à tarde, no escritório do grande homem, os literatos da cidade. Também eu, apesar de verde, frequentava o conspícuo cenáculo. Naquele dia cheguei talvez mais cedo. Ele foi lá dentro. Então, lobriguei, sobre a secretária, uns manuscritos. A letra, conhecia-a, era a dele. O grande livro, pensei. E fervi de incontida curiosidade. Aproximei-me mais e...

Raios! Fiquei passado. Eram artigos, assinados com pseudónimos vários, a respeito do livro. Em cada um, ao alto da primeira folha, o nome do jornal insulano a que se destinava. E depois a procissão dos adjetivos — tudo de génio para cima!

A garganta apertou-se-me. A cabeça, parecia-me que rodava, suspensa, no ar. Seria verdade o que os meus olhos tinham visto? Ou não passava de trapaça do Eiramá? Tive pena de mim mesmo. Abalei porta fora — e nunca mais lá pus os pés.

Levei dias a matutar na coisa. Interrogava-me, angustiado. Depois, já mais calmo, reli os livros dele e não lhes encontrei a magia de outrora. E foi com verdadeiro acinte vingativo que, passada a crise, me atirei a ler uns tantos autores modernos, dos poucos que adregavam arribar àquelas paragens insulanas. Gostei — e aderi. Mas por quanto tempo aquilo me doeu. Surgia-me uma celebridade, e eu — na retranca. Ídolos, nunca mais! Do muito que então li contra os bonzos de que o burlão era na ilha o símbolo, guardei na memória algumas tiradas de respeito. Mas, mais do que isso, me impressionaram dois versos de Edmundo de Bettencourt:

Quero pedir-vos adeus sem nenhumas ternuras,
sem pena e repugnado, ó antropofagias obscuras!

Substituí antropofagias por mitofagias (o autor que me perdoe o abuso), e quando me sinto ameaçado por novos ídolos, recito-os como conjuro. E, duvidando sempre, até de mim mesmo se me acodem velocidades de subir ainda ao alto do Parnaso que tente escalar com os meus insonsos alexandrinos, consigo supor que estou vivo!...

 

Pedro da Silveira, “Ao princípio, era a mitofagia” in O Século Ilustrado, Lisboa, 14-05-1955, p. 9

 ***

[…] Cheguei a este texto de Pedro da Silveira por uma «breve» no Diário Insular, que atribuo claramente a João Afonso, dando conta do «início da colaboração» do florentino n’O Século Ilustrado. Tal colaboração consistiu, todavia, apenas nesta página, que resulta do convite feito a escritores para «contar uma história»; por exemplo, Mário Cesariny de Vasconcellos escreveria duas semanas depois.

A curiosa «história» de Silveira reporta-se ao ambiente literário da Angra do Heroísmo da década de 1930, quando ele ali foi estudante de liceu e seminário já envolvido em primícias literárias e visitando figuras em destaque. O literato designado como Germano é, creio bem, Gervásio da Silva Lima (1878-1945), também referido por Pedro no prefácio às Ilhas Desconhecidas como pomposa figura da cidade que recusou a Vitorino Nemésio ir cumprimentar Raul Brandão, pois este lhe parecia um emigrante que voltava à sua terra sem vintém. Mas esta é também deveras uma história edificante, prevenindo-nos dos malefícios de idolatrias de qualquer espécie e pinta, ou dos graves erros de avaliação pessoal que tantas vezes, e em tantos tempos da vida, praticamos inadvertidamente. Para bom entendedor...

Vasco Rosa, “Centenário de Pedro da Silveira, XXIII – Ídolos, nunca mais!, disse ele” in Diário dos Açores, 22-04-2023

 

quinta-feira, 27 de abril de 2023

A vida em Portugal sob a ditadura de Salazar: pobreza, censura, emigração e guerra colonial


http://www.eduardogageiro.com/

Foi por causa desta foto que fui preso pela PIDE: “Temos paisagens tão bonitas em Portugal, porque é que não as fotografa, em vez de andar a retratar pessoas humildes?” Diziam que as minhas fotografias davam má imagem do País. Esta correu mundo. Ganhou 22 medalhas de ouro.

Eduardo Gageiro

***


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rastro
Tempo de ameaça

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, “Data” in Livro Sexto, 1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora


***


A vida dos portugueses em Portugal no tempo de Salazar (1932-1968) foi marcada pela ditadura, pela pobreza, pela censura e pela guerra colonial.

Salazar era o líder do Estado Novo, um regime autoritário que reprimia qualquer oposição política, controlava a imprensa, a educação e a cultura, e defendia um ideal de Portugal tradicional e imperial.

Muitos portugueses emigraram para outros países em busca de melhores condições de vida, mas Salazar dificultava a saída de quem não tivesse uma carta de chamada, que era uma garantia de trabalho no exterior.

Os que ficaram tinham que enfrentar a miséria, a falta de liberdade e o risco de serem convocados para combater nas colónias africanas, onde os povos nativos lutavam pela independência.

A ditadura de Salazar só terminou com a Revolução dos Cravos em 1974, que derrubou o regime e abriu caminho para a democracia em Portugal.

 


No tempo do Salazar é que era!

Por causa da “crise“, um quinto dos portugueses, mais coisa menos coisa dois milhões de pessoas, pensa que o melhor é desenterrar o Salazar lá de Comba Dão mais os “Pides“ todos e pôr tudo em ordem!

Mais uma vez os portugueses estão de parabéns. Isto se tivermos em conta um  estudo recente, o qual demonstra como a  crise leva um quinto dos portugueses a terem  saudade dos tempos antes do 25 de Abril até porque "no tempo do Salazar é que era! "  

Lá para os meus lados habituei-me a crescer com tais impropérios, tantas vezes cuspidos da boca de quem, no meio de um autocarro atulhado e de uma vida atulhada e de um futuro atulhado a caminho de lado nenhum, procurava assim encontrar justificação para a sua própria desgraça a qual, de maneira alguma, descendia diretamente da liberdade e da democracia. Antes pelo contrário, porque dependendo da ditadura, o mais provável era tais vernáculos nem sequer encontrarem o caminho do estômago para a boca sob pena de verem os dentes estilhaçados na força bruta de uma boa coronhada.  

Portanto, nem que seja para se poder dizer mal da democracia, já valeu a pena fazer a revolução! Infelizmente, e por causa da 'crise", um quinto dos portugueses, mais coisa menos coisa dois milhões de pessoas, parece pensar de forma contrária, pelo que o melhor é desenterrar o Salazar lá de Comba Dão mais os "Pides" todos e pôr tudo em ordem! Assim, quando as ossadas do "Tó"  estiverem de novo na cadeira (desta feita  pregada ao chão, não vá a maldita cair), mal  posso esperar pelas perseguições, prisões, torturas, assassinatos, condenações sem  direito a defesa ou julgamento, 13 anos de guerra colonial e 10000 mortos, um milhão de portugueses emigrados (para não dizer refugiados, como hoje são os  sírios, mas na altura sem mochilas, essa invenção moderna, apenas malas de cartão  e, como hoje, apenas os pés para andar), a livre discriminação das mulheres, forçadas  a ficar em casa, sem direito a voto ou  opinião, apenas direito à porrada (e não  metas a colher), subnutrição generalizada, o analfabetismo a assinar de cruz, o  trabalho de sol a sol pago ao dia sem direito  a descanso, férias, reforma ou contrato, o  domínio da Igreja sobre os corações e as  almas de todo um povo feito refém de medos e castigos divinos que não existem senão nas  mentes pérfidas de um clero que pouco ou  nada fez em nome de um Jesus, mas muito  em proveito próprio, enfim, entre tantas  outras aberrações inenarráveis, a lista é por  demais infindável quando se fala não apenas  de uma ditadura, mas da nossa ditadura em particular, aquela de quem um quinto dos  portugueses tem hoje tanta saudade...  

Não foi há muito tempo que um programa de televisão intitulado "Grandes Portugueses" elegeu, por voto dos telespectadores, António de Oliveira Salazar como o maior português de todos os tempos, isto em 2007, 33 anos após o fim da ditadura, e ainda nem sequer se ouvia a palavra "crise". Portanto, amigos e amigas, senhores e senhoras, isto da saudade salazarista não é de agora, já anda connosco de há algum tempo para cá. Preocupante é não recrudescer, antes pelo contrário, contando já com cerca de dois milhões de adeptos num país onde o embrutecimento ganha terreno a olhos vistos perante a passividade de um povo adormecido entre a televisão e as redes sociais, mais perto do Norte de África do que da América e onde o sonho é mesmo isso, um sonho, do qual é urgente acordar.

João André Costa, Público, 2016-05-02


 


Tão felizes que nós éramos

Anda por aí gente com saudades da velha portugalidade. Saudades do nacionalismo, da fronteira, da ditadura, da guerra, da PIDE, de Caxias e do Tarrafal, das cheias do Tejo e do Douro, da tuberculose infantil, das mulheres mortas no parto, dos soldados com madrinhas de guerra, da guerra com padrinhos políticos, dos caramelos espanhóis, do telefone e da televisão como privilégio, do serviço militar obrigatório, do queres fiado toma, dos denunciantes e informadores e, claro, dessa relíquia estimada que é um aparelho de segurança.

Eu não ponho flores neste cemitério.

Nesse Portugal toda a gente era pobre com exceção de uma ínfima parte da população, os ricos. No meio havia meia dúzia de burgueses esclarecidos, exilados ou educados no estrangeiro, alguns com apelidos que os protegiam, e havia uma classe indistinta constituída por remediados. Uma pequena burguesia sem poder aquisitivo nem filiação ideológica a rasar o que hoje chamamos linha de pobreza. Neste filme a preto e branco, pintado de cinzento para dar cor, podia observar-se o mundo português continental a partir de uma rua. O resto do mundo não existia, estávamos orgulhosamente sós. Numa rua de cidade havia uma mercearia e uma taberna. Às vezes, uma carvoaria ou uma capelista. A mercearia vendia açúcar e farinha fiados. E o bacalhau. Os clientes pagavam os géneros a prestações e quando recebiam o ordenado. Bifes, peixe fino e fruta eram um luxo.

A fruta vinha da província, onde camponeses de pouca terra praticavam uma agricultura de subsistência e matavam um porco uma vez por ano. Batatas, peras, maçãs, figos na estação, uvas na vindima, ameixas e de vez em quando uns preciosos pêssegos.

As frutas tropicais só existiam nas mercearias de luxo da Baixa. O ananás vinha dos Açores no Natal e era partido em fatias fininhas, para render e encharcado em açúcar e vinho do Porto para render mais. Como não havia educação alimentar e a maioria do povo era analfabeta ou semianalfabeta, comia-se açúcar por tudo e por nada e, nas aldeias, para sossegar as crianças que choravam, dava-se uma chucha embebida em açúcar e vinho. A criança crescia com uma bola de trapos por brinquedo, e com dentes cariados e meia anã por falta de proteínas e de vitaminas. Tinha grande probabilidade de morrer na infância, de uma doença sem vacina ou de um acidente por ignorância e falta de vigilância, como beber lixívia. As mães contavam os filhos vivos e os mortos era normal. Tive dez e morreram-me cinco. A altura média do homem lusitano andava pelo metro e sessenta nos dias bons. Havia raquitismo e poliomielite e o povo morria cedo e sem assistência médica. Na aldeia, um João Semana fazia o favor de ver os doentes pobres sem cobrar, por bom coração.

Amortalhado a negro, o povo era bruto e brutal.

Os homens embebedavam-se com facilidade e batiam nas mulheres, as mulheres não tinham direitos e vingavam-se com crimes que apareciam nos jornais com o título ‘Mulher Mata Marido com Veneno de Ratos’. A violação era comum, dentro e fora do casamento, o patrão tinha direito de pernada, e no campo, tão idealizado, pais e tios ou irmãos mais velhos violavam as filhas, sobrinhas e irmãs. Era assim como um direito constitucional. Havia filhos bastardos com pais anónimos e mães abandonadas que se convertiam em putas. As filhas excedentárias eram mandadas servir nas cidades. Os filhos estudiosos eram mandados para o seminário. Este sistema de escravatura implicava o apartheid. Os criados nunca dirigiam a palavra aos senhores e viviam pelas traseiras.

O trabalho infantil era quase obrigatório porque não havia escolaridade obrigatória. As mulheres não frequentavam a universidade e eram entregues pelos pais aos novos proprietários, os maridos. Não podiam ter passaporte nem sair do país sem autorização do homem. A grande viagem do mancebo era para África, nos paquetes da guerra colonial. Aí combatiam por um império desconhecido. A grande viagem da família remediada ao estrangeiro era a Badajoz, a comprar caramelos e castanholas.

A fronteira demorava horas a ser cruzada, era preciso desdobrar um milhão de autorizações, era-se maltratado pelos guardas e o suborno era prática comum.

De vez em quando, um grande carro passava, de um potentado veloz que não parecia sujeitar se à burocracia do regime que instituíra uma teoria da exceção para os seus acólitos. O suborno e a cunha dominavam o mercado laborai, onde não vigorava a concorrência e onde o corporativismo e o capitalismo rentista imperavam. Salazar dispensava favores a quem o servia. Não havia liberdade de expressão e o lápis da censura aplicava-se a riscar escritores, jornalistas, artistas e afins. Os devaneios políticos eram punidos com perseguição e prisão. Havia presos políticos, exilados e clandestinos. O serviço militar era obrigatório para todos os rapazes e se saíssem de Portugal depois dos quinze anos aqui teriam de voltar para apanhar o barco da soldadesca. A fé era a única coisa que o povo tinha e se lhe tirassem a religião tinha nada. Deus era a esperança numa vida melhor. Depois da morte, evidentemente.

Clara Ferreira Alves, Expresso, 2017-03-18



"Antigamente é que era bom!..." é falso!

Fascina-me ver pessoas a debitarem a ladainha do "antigamente é que era bom!", mas só podem estar a referir-se a algum hipotético antigamente saído do Stranger Things, porque eu vivi esses tempos, e era tão, mas tão pior do que hoje! Não sou velho, mas cresci numa terriola perdida no meio do Portugal profundo, e o desenvolvimento lá demorou a chegar. Nesses tempos não era difícil uma localidade ficar para trás no desenvolvimento, bastava que tivesse o azar de não passar por lá uma autoestrada, ou uma linha de comboio, ou algum grande eixo logístico.

A minha mãe passava fome para que eu não passasse, as ruas tornavam-se em rios quando chovia, os transportes públicos eram inexistentes, a eletricidade estava constantemente a ir abaixo, as casas eram geladas e no Inverno impossíveis de habitar. Eu tinha um único par de calçado para durar o ano inteiro, grassavam as superstições, a falta de cultura, a educação era dada com modelos altamente preconceituosos. Era considerado muito inteligente só porque gostava de ler, e a palavra do padre, porque a igreja era o ponto central de tudo, era divina. Olhando para trás, juntando as memórias, é possível que naquela altura pudesse haver abuso de crianças, mas absolutamente impensável sequer pensar nisso, quanto mais falar. Daqui também se depreende que qualquer pessoa com um cargo mais elevado (padre, médico, engenheiro) era intocável, uma mania que ainda hoje persegue o país, como tão bem explica o José Sócrates. Não é que hoje em dia haja mais corrupção, porque nesses outros "bons tempos" era completamente disseminada e normal, mas só hoje em dia é que se aponta, acusa e condena por isso. Até para mim foi um choque a prisão do Sócrates, na minha cabeça era impossível. Ele era engenheiro, tinha sido primeiro-ministro, como é que podia ser?

Eu não era dos piores. Conhecia gente que não tinha casa de banho em casa, famílias que não tinham eletricidade, quanto mais televisão, quanto mais essa bizarra coisa de um com-pu-ta-dor. Pessoas havia que não sabiam nada de doenças sexualmente transmissíveis, e para quem de qualquer maneira não se ia ao médico tratar do que fosse, isso era coisa de maricas. Colegas meus para quem a refeição da escola era a refeição do dia, ou iam para as aulas a cheirar a merda porque os pais não lhes davam banho, pais esses que acreditavam nas sopas de cavalo cansado como pequeno almoço (pão em taças de vinho, daquele vinho mesmo rasca, de garrafão de cinco litros). Ou que iam com marcas de espancamento para as aulas e, atenção ao toque precioso, eram acusados pelos professores desse espancamento ser culpa delas próprias.

Se querias uma consulta, pagavas um favorzinho ao "senhor doutor", não havia nenhuma ideia de pedir faturas, e qualquer coisa fora da norma era considerado de muito mau tom. Coisas fora do normal como, por exemplo, rir alto, porque dizia-se que rir muito era falta de juízo. "Muito riso, pouco siso", era uma daquelas sabedorias infalíveis dos velhotes. Falar com mulheres era outra, porque existiam para desencaminhar os homens (isto foi-me dito pela minha avó). Pessoas com deficiências mentais eram ignoradas porque havia sempre um tolo da aldeia, alcoólicos eram motivo de galhofa porque faziam figuras muito engraçadas, e nenhum deles era ajudado. Coisas tão corriqueiras como bancos e pastelarias? LOL

O Portugal de há muitos anos era ignorante, atrasado, e a falta de cultura e de educação eram o normal. Não era culpa das pessoas, isso eu sei, mas não elimina o facto. Eu vivi esse atraso, e portanto deixa-me maluco quem a) suspira pelos "bons velhos tempos", porque eram velhos, mas bons é que não, b) considera que as atuais gerações têm demasiado liberdade, ou não querem saber de nada, porque eu tenho contacto com os meus primos, e surpreendem-me a preocupação que têm com o estado do Mundo, da Sociedade, e do Futuro. São muito mais bem-educados, cultos e formados do que as gerações antigas eram, e c) ainda acham que "ai, isto o que era preciso era outro Salazar", porque não me resta dúvida que esse foi, de longe, o pior culpado de Portugal ter estado nesse estado miserável.

Por: NuncaAqui, julho de 2022. Disponível em: https://www.reddit.com/r/portugal/comments/wf6hex/antigamente_%C3%A9_que_era_bom_%C3%A9_falso/

  


terça-feira, 25 de abril de 2023

49.º Aniversário do 25 de Abril de 1974

O 25 de Abril não deve ser exclusivo de ninguém, mas também ninguém se deve excluir do 25 de Abril. Ele deve ser o ponto de encontro de todos os portugueses e já hoje, fundamentalmente, é esse ponto de encontro.

Marques Júnior, 25 de abril de 1990.

 

https://www.parlamento.pt/Paginas/2023/abril/25-de-Abril-2023.aspx

 

Comemoração do 49.º Aniversário do 25 de Abril de 1974

 

Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na Sessão Solene Comemorativa do 25 de Abril

O 25 de Abril libertou-nos o tempo. O futuro deixou de reduzir-se à repetição do presente, mudar cessou de ser um verbo malquisto. O porvir passou a estar em aberto, declinável em várias possibilidades de evolução e transformação. E as pessoas descobriram-se sujeitos do futuro, cidadãs e cidadãos responsáveis pelas escolhas que o determinariam.

A natureza revolucionária do processo político que se seguiu ao 25 de Abril implicou uma radical aceleração do tempo. Como Sérgio Godinho tão bem cantou, "a sede de uma espera só se estanca na torrente". Descongelada a história, vencido o medo, era como se cinquenta anos de retrocessos tivessem de ser resolvidos num instante e as circunstâncias nada pudessem contra a vontade de agir no imediato, em todos os aspetos da vida coletiva. Desmantelados os aparelhos repressivos, a conflitualidade política e social exprimiu-se abertamente, numa vertigem que sucessivas crises foram alimentando, mas que também foi contida e regulada por avanços decisivos rumo à institucionalização democrática, das eleições para a Assembleia Constituinte ao 25 de Novembro e ao II Pacto MFA-Partidos, e da aprovação da Constituição à conclusão do primeiro grande ciclo eleitoral, com os sufrágios para a Assembleia da República, o Presidente da República, as Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas e as Autarquias Locais.

Assim estabilizada a ordem democrática – que a revisão constitucional de 1982 e a adesão às Comunidades Europeias haveriam ainda de aperfeiçoar – o tempo, parâmetro central da transição, pôde representar-se como o que realmente é: um feixe de múltiplos eventos, ritmos, escalas e durações, que deixa em aberto o porvir e nos convida a pensar e fazer. Também por isso, por terdes sacudido o imobilismo e reposto em movimento a roda da história, vos agradecemos, Capitães de Abril!

O tempo tem sido um marcador essencial da vida coletiva democrática. Como tudo o resto, sujeito à pluralidade e diversidade das representações a seu propósito. Mas não será difícil entender-nos sobre alguns aspetos cruciais.

A transitoriedade é o elemento básico. Nada é eterno, nada escapa à usura, cada contexto tem o momento próprio. A lógica republicana impõe limites ao exercício continuado de funções públicas, obrigando à renovação. As escolhas não são, por definição, definitivas. A composição dos parlamentos varia com as circunstâncias: os que hoje são maioria amanhã serão minoria, as oposições de hoje serão amanhã governo. Programas, políticas, equipas, lideranças, tudo isso é breve.

Em democracia, o tempo é, portanto, uma passagem. É também de uma grande plasticidade. Umas vezes acelera, outras abranda. Aqui predomina a urgência, ali o que faz sentido é parar um pouco para refletir. Esta hora é de estudar e preparar, aquela de agir sem delongas; e o agir pode ser para continuar ou para mudar, para consolidar ou para romper um certo estado de coisas.

Outra característica estrutural do tempo democrático é a ciclicidade. A escolha política fundacional, que é o sufrágio, determinando quem representa e quem governa, com que programa, obedece a critérios de periodicidade e duração.

A eleição é periódica porque nenhum poder é eterno, devendo ser regularmente aferida a vontade das pessoas. Por exemplo: as eleições legislativas ocorrem em cada quatro anos, determinam a composição do Parlamento e é a partir dessa composição – e só dela - que se formam os Governos e as Oposições.

Mas este intervalo que a renovação pendular delimita é também uma duração. O tempo dura, e isso é essencial numa democracia. Para que os programas sejam executados, as políticas aplicadas e os resultados avaliados. Para que a fiscalização se exerça e diferentes propostas sejam apresentadas e discutidas. Para que novos programas, protagonistas e coligações se preparem e maturem. Para que, assim informadas, as pessoas possam, no momento próprio, comparar e escolher.

Os tempos políticos são diferenciados; e pautarem-se os vários órgãos de soberania e demais instituições por diversas temporalidades é um dos ingredientes da estrutura de poderes e equilíbrios em que repousa a democracia. Depois, o ritmo da política não pode confundir-se com a cadência própria de outros atores relevantes do espaço público, como os atores sociais, os média ou os interesses económicos, nem a eles pode ser subordinado. O tempo político não é indiferente ao pulsar complexo e contraditório da sociedade; mas é a institucionalidade democrática que pauta o seu andamento, e a sua base principal é a escolha periódica, livre e soberana dos cidadãos.  

Nada disto é novidade, mas talvez seja oportuno lembrá-lo. Aqui e agora. Aqui no Parlamento que, nos termos da Constituição saída de Abril, é o coração da representação pluralista e do debate livre, e o centro da dialética entre Governo e Oposições. Agora que uma certa sofreguidão ameaça propagar-se, como vírus, no espaço público, pondo em causa vantagens preciosas da sólida democracia que somos, como tal reconhecida internacionalmente. As vantagens da estabilidade política, da previsibilidade dos comportamentos institucionais, da resiliência face à volubilidade das opiniões, da maturação das medidas em resultados, do sentido de responsabilidade nas palavras proferidas.

Claro que, em democracia, tudo pode ser questionado. Como já assinalei e faço questão de repetir, o tempo democrático é, por natureza, passageiro, plástico, diferenciado; e o regime tem mecanismos para evitar a perpetuação de situações que se tornem insustentáveis. Mas o tempo democrático é também cíclico, tem um certo ritmo e duração. E, se a Assembleia funciona, debatendo, fiscalizando, inquirindo, legislando; se o Governo desenvolve e aplica as suas políticas, com variável acerto, e goza de confiança parlamentar; se as Oposições vão fazendo caminho de formação e afirmação de alternativas; se os órgãos de soberania cooperam, no respeito pelas competências uns dos outros; se inúmeros são os problemas das pessoas e do país, sendo responsabilidade primacial dos diferentes decisores enfrentá-los – então devemos respeitar o tempo de cada instituição, sem atropelos nem precipitações. Devemos preferir a respiração pausada própria de uma democracia madura à respiração ofegante típica das excitações populistas.

Para benefício de todos. Porque, se todos perderemos no dia em que aceitarmos que a dinâmica política deve ser insensível às necessidades e ao ambiente social e pautar-se exclusivamente por procedimentos administrativos e formais; também todos perderemos no dia em que renunciarmos a distinguir entre erros localizados,  ainda que graves, e crises prolongadas e sistémicas, e  no dia em que aceitarmos que a vida de um Parlamento ou de um Governo – sejam eles quais  forem - está dependente do nível de protesto deste ou daquele setor, do favor da opinião publicada, da perceção dos média, do ruído nas redes sociais ou da evolução das sondagens.

Como o conjunto do mundo terreno para o Eclesiastes, a democracia compreende vários tempos. Há um tempo para analisar e há um tempo para escolher. Há um tempo para decidir e outro para executar. Há um tempo para realizar e outro para avaliar. Não se sucedem uns aos outros; a sua copresença é que define a nossa circunstância. Permanentemente sujeita à contradição e ao debate, mas também com os graus de liberdade que permitem, aos atores políticos, referirem a sua ação ao interesse geral, sabendo-se protegidos pela duração, face à exigência demagógica do império do instante.

As palavras, as palavras que dizemos e as palavras que não dizemos, contam muito. Deixo, pois, aqui uma defesa convicta do tempo democrático, que é o ciclo da conjuntura e não a fugacidade dos eventos. Só assim podemos continuar – todos - o trabalho que temos feito como país: prosseguindo os interesses permanentes, consolidar, modernizar, mudar o que for preciso e  para evoluir e progredir. Construindo o futuro que o 25 de Abril nos abriu.   

 

Augusto Santos Silva, https://www.parlamento.pt/sites/PARXVL/Intervencoes/Paginas/Intervencoes/Sessao-Solene-Comemorativa-do-XLIX-Aniversario-25-Abril-1974.aspx, 25-04-2023

 

Lisboa, Avenida da Liberdade, Desfile comemorativo da Revolução dos Cravos



Discurso do Presidente da República na Sessão Solene Comemorativa do 48.º aniversário do 25 de Abril

Há um ano falei-vos do Portugal na sua caminhada do Império até ao 25 de Abril, à Descolonização e à Democracia.

E nunca é demais evocar e agradecer o gesto refundador dos Capitães de Abril.

Pense-se o que se pensar sobre o que foram antes e depois desse gesto, ele foi único, singular e decisivo. Sem ele não haveria hoje uma Assembleia República livre com vozes livres. Não há como esquecê-lo na escrita ou na reescrita da História.

Hoje, falo do que vem de muito antes de Abril. Vem do começo de Portugal. Mesmo se só tem 700 anos no mar, 400 anos dos quais como corpo permanente e organizado, muitos séculos em terra e um século no ar.

São as nossas Forças Armadas, garantes da independência, da soberania, da integridade e da unidade da nossa Pátria.

E, nestes tempos em que a guerra na Europa reentra nas nossas casas, toca as nossas vidas, muda o nosso dia a dia, falar em Forças Armadas é falar daquilo que, sendo passado, é muito presente e, mais ainda, futuro.

Esta guerra não é a única, neste instante, no mundo. Mas é talvez a mais global de todas.

Esta guerra não foi a única que conhecemos na Europa, já depois de Abril de 1974. Mas pode vir a ser a mais brutal em refugiados forçados a terem de cortar as suas raízes, e, também, a mais universal nos seus efeitos em quase meio século.

Mas não é da guerra que vos quero falar hoje.

Hoje, o que importa é falar das nossas Forças Armadas no Portugal que Abril permitiu que fosse Democrático. Das Forças Armadas em Democracia.

Há uma semana agradeci aos nossos militares – e eram duzentos – que partiam para a Roménia – o seu serviço à Pátria.

Iam em missão de Paz, não em missão de guerra. Para defender a Paz, não para fazer a guerra. Para prevenir contra mais guerra e contribuir para criar mais Paz.

Paz para a Europa, e, desde logo, para aquela Europa em conflito e as vítimas diretas imediatas, e mais trágicas da guerra.

Paz para a Pátria, a nossa Pátria, do mesmo modo.

Paz e Segurança.

Aquela Paz e Segurança que é a missão primeira das Forças Armadas.

Pela Pátria! E o que é a Pátria que elas existem para servir?

É um Estado, independente há quase novecentos anos? É, mas é mais do que isso.

É uma comunidade de vida, de cultura, de língua, de identidades forjadas na diversidade, a que muitos chamam Nação, mesmo se o nosso Estado é, há muito, plurinacional? É, mas é mais do que isso.

É uma História, feita de glórias e fracassos, e mais glórias do que fracassos, senão, porventura, aqui não estaríamos agora? É, mas é mais do que isso.

É uma ideia, um projeto, um desígnio que nos une para além daquilo que separa, como o sermos universais, espalhados pelos mundos e servindo como plataformas de encontro entre eles? É, mas é mais do que isso.

É tudo o que disse. Mas mais, muito mais.

Uma Pátria são pessoas de carne e osso, todas somadas, e, cada uma delas de per si, vivam cá dentro das fronteiras físicas, vivam fora delas, no território espiritual. Que é onde estiver cada um de nós.

Portugal são os portugueses, mais os que se acolheram ou por eles foram acolhidos. E, cada qual, diferente, diverso, irrepetível.

Servir a Pátria, como existem para servir as Forças Armadas, é servir esses portugueses – cá dentro e lá fora – mais aqueles que se integram nessa nossa família comum.

Servir a Pátria desde sempre.

Foi traçar o nosso território Continental. E partir para as Ilhas. E atravessar Oceanos e contactar Continentes. E quase perder, ou perder mesmo, a independência. E reconquistá-la, tempo após tempo, geração após geração. E perder batalhas. E guerras. Mas ganhar umas e outras. Nas armas, na diplomacia, na economia, no tecido social. Mas também na língua, na cultura, nas pessoas. Sim, porque as batalhas como as guerras se perdem e ganham nas pessoas, com elas e para elas.

Servir a Pátria, neste tempo, por exemplo, é ir para a Roménia. Como estar na Lituânia. Na Républica Centro Africana. No Mali. No Mediterrâneo. No Golfo da Guiné. Em Moçambique. É nessas, como noutras paragens, servir a Paz e a Segurança de todos nós.

Mas como? Como é que na Roménia, ou nos céus da Europa Báltica, ou noutras Europas, Áfricas, Américas, ou Ásias, se luta pela Paz e a Segurança?

Luta-se, porque as nossas fronteiras já não são as que foram. Porque no Báltico, como no Leste Europeu, as fronteiras da União Europeia são as nossas fronteiras. Tal como noutros Continentes, as fronteiras da CPLP são as nossas fronteiras. Tal como, nalguns deles, as fronteiras da NATO, ou do mundo ibero-americano, são as nossas fronteiras. Tal como, cada vez mais por esse mundo fora – que são as Nações Unidas – as fronteiras da Paz, da Segurança, da Liberdade, da Igualdade, da luta contra a miséria e a pobreza e pela ação climática, são as nossas fronteiras.

Se a Paz não existir, a insegurança atingirá também as nossas vidas, a começar na dos compatriotas espalhados pelo universo, a nossa economia, os preços da nossa energia, dos nossos alimentos, dos nossos bens básicos, e tantos dos nossos projetos de vida.

A Paz e a Segurança não são, pois, apenas – e já seria muitíssimo, mesmo o mais pungente – a vida e a morte de quem está a dois ou três dias de viagem das nossas casas.

Não. É o nosso viver de todos os dias.

São as Forças Armadas, não os únicos, mas dos principais garantes dessa Paz. Mais visivelmente ainda em tempo de guerra. Mesmo se não entram nessa guerra. Previnem, ajudam a construir e preservam, mesmo ali ao lado, a Paz possível e desejável.

Mas fazem mais. Muito mais. Cá dentro. Desinfetam lares e escolas, organizam vacinação nacional em pandemia. Apoiam em incêndios florestais, cheias, catástrofes naturais.

Não são os únicos. Mas são sempre dos fundamentais.

E ainda dão, e querem dar mais, formação profissional para reinserção no emprego e na sociedade.

Senhoras e Senhores Deputados, Portugueses,

Por que razão, neste 25 de Abril, falo das nossas Forças Armadas, na Democracia que temos de recriar jornada após jornada?

Porque sem as Forças Armadas, e Forças Armadas fortes, unidas e motivadas, a nossa Paz, a nossa Segurança, a nossa Liberdade, a nossa Democracia – sonhos do 25 de Abril –, ficarão mais fracas.

Porque reconhecer como são importantes as Forças Armadas, na nossa vida como Pátria, exige mais do que recordarmos, por palavras, essa sua importância.

Porque, se queremos Forças Armadas fortes, unidas, motivadas, temos de querer que tenham condições para serem ainda mais fortes, unidas, motivadas.

Porque, se não quisermos criar essas condições, não nos poderemos queixar de que, um dia, descubramos de que estamos a exigir às nossas Forças Armadas missões difíceis de cumprir por falta de recursos.

Porque se o não fizermos a tempo, outros o exigirão por nós, e, depois, não nos queixemos de frustrações, desilusões, contestações ou afastamentos.

Porque pode ser tão simples mobilizar com pequenos grandes gestos.

Estimular a que quem é indispensável para servir nessas missões fundamentais o possa fazer com horizontes de esperança.

Juntar ao reconhecimento pelas qualidades excecionais que, cá dentro e lá fora, é unânime quanto às nossas Forças Armadas, mais meios imprescindíveis para poderem sê-lo também mais e melhor.

E fazer isto não é ser-se de direita ou de esquerda, conservador ou progressista, moderado ou radical. É ser-se pura e simplesmente patriota. Em Liberdade e Democracia.

E fazer isto não é só tarefa de um Presidente, de um Parlamento, de um Governo. Requer um consenso nacional, continuado e efetivo, acerca das Forças Armadas como pilar crucial da nossa vida coletiva.

Não podemos aplaudir ou clamar mesmo por maior envolvimento em ações externas, ou querê-las ainda mais presentes nos apoios internos, nomeadamente em situações extremas, e pensarmos que longe vão as guerras, que há muito mais onde gastar dinheiro, que nós podemos dispensar de nelas investir em benefício de todos nós.

Nós sabemos que, mesmo quando lhes faltam esses meios, são das melhores das melhores.

Mas não nos habituemos ao simplismo de converter milagres em quotidiano modo de vida.

Ajudemos a esses milagres. Sobretudo quando eles respeitam à Paz e à Segurança de todos nós.

Neste tempo em que a guerra surge como mais real ainda.

Em que a pandemia impôs necessidades mais evidentes.

Neste dia em que celebramos Democracia e Liberdade.

E em que percebemos como a Paz e a Segurança tocam nas nossas vidas.

Não é demais pensar, como Pátria que somos, nas Forças Armadas que temos, nas que queremos ter e nas que precisamos de ter.

Como desafio de todos, dos poderes públicos, da sociedade, de cada Portuguesa, de cada Português. Porque se os Portugueses não perceberem e não aderirem e não apoiarem, não há poder público – mesmo o mais corajoso ou voluntarista – que vingue sem a vontade popular.

É urgente essa vontade popular constante e firme.

Para que a Liberdade e a Democracia, para as quais o 25 de Abril abriu pistas fundamentais que prosseguimos até hoje, vivam sempre.

Para que esse sonho do 25 de Abril viva sempre.

Mas, sobretudo, para que Portugal viva sempre.

Vivam a Liberdade e a Democracia!

Viva o 25 de Abril!

Viva, não menos do que isso, Portugal!

 

Marcelo Rebelo de Sousa, https://www.presidencia.pt/atualidade/toda-a-atualidade/2022/04/discurso-do-presidente-da-republica-na-sessao-solene-comemorativa-do-48-o-aniversario-do-25-de-abril/, 25-04-2023

 

 Desfile comemorativo da Revolução dos Cravos | Lisboa, Avenida da Liberdade