AO PRINCÍPIO, ERA A MITOFAGIA
Conheci-o quando, dos quinze para os
dezasseis anos, começava a rabiscar uns versos, orvalhados de lamúria romântica
e humanitarismos à Kropotkine, que o almanaque da terra, precioso jazigo de
devaneios e moralidades sediças, generosamente acolhia. No pacato burgo
insulano, que os vapores ronceiros sugestionavam de Europa todos os quinze
dias, ele era, sem dúvida nem contesto, alguém — literato festejado, membro das
Forças Vivas. Publicara alguns trinta livros; era sócio de honra de várias
academias e institutos eruditos (sobretudo heráldicos e arqueológicos). Nas
capas desses livros, logo abaixo do nome do grande personagem, num discreto mas
bem legível corpo 8, desfilava toda a sua glória. E, apesar da ironia do Sr.
Luís da Rosa — «O Germano é sócio de todas as fanfaras deste mundo e
vizinhanças» —, não havia por ali quem não tomasse a coisa muito a sério. Eu talvez
mais do que qualquer outro dos basbaques locais. Pelo menos de maneira mais
angelical...
Bem cara me custou à alma a cegueira
idólatra!
Estou agora a lembrar-me do momento
em que ele, o malandro!, encontrando-me na redação de O
Distrito Autónomo, me elogiou o estro. Chamou-me
«ridente promessa»; que, se continuasse, não deixaria de chegar às paragens do
Parnaso. Receitou-me Junqueiro e Bilac. Mas nada de futuristas!
«Loucos, meu preclaro amigo, uns
loucos! Arte nova?... Aquilo não é Arte! Ora veja, por exemplo, os versos do
nosso Cabral: “O meu Charuto”. Aquilo sim! Sentimento. Brilho. Os futuristas...
Loucos e mais nada!»
Concordei. Que havia de fazer eu,
aprendiz de sentimental, senão concordar? E continuei a venerá-lo, a venerá-lo
cada vez mais. E a escrever sonetaços, agora em alexandrinos laboriosos, suando
no esforço de trepar as ladeiras do Parnaso.
Até que um dia...
O grande personagem anunciara-me,
displicente, a próxima publicação de um novo livro. O último, dizia. Qualquer
coisa de muito transcendente, sobre a covardia de Pôncio Pilatos, com
descrições da paisagem da Judeia («aguarelas sentimentais »...), rabis, camelos
e muitas outras coisas.
Faltava apenas polir umas passagens.
Dentro de um mês, os prelos botariam cá para fora a maravilha.
Pois bem. Aí vai. Embora ainda hoje
me custe confessar que caí neste logro; que fui levado à certa; que durante
dois anos aceitei como verdade incontroversa a grandeza daquele farsante de
província. (Sirva-me de consolação a certeza de que não fui o único parvo. Que
muitos, ainda hoje, a catorze anos da morte dele, aceitam a sua grandeza.)
Era costume juntarem-se, à tarde, no
escritório do grande homem, os literatos da cidade. Também eu, apesar de verde,
frequentava o conspícuo cenáculo. Naquele dia cheguei talvez mais cedo. Ele foi
lá dentro. Então, lobriguei, sobre a secretária, uns manuscritos. A letra,
conhecia-a, era a dele. O grande livro, pensei. E fervi de incontida
curiosidade. Aproximei-me mais e...
Raios! Fiquei passado. Eram artigos,
assinados com pseudónimos vários, a respeito do livro. Em cada um, ao alto da
primeira folha, o nome do jornal insulano a que se destinava. E depois a
procissão dos adjetivos — tudo de génio para cima!
A garganta apertou-se-me. A cabeça,
parecia-me que rodava, suspensa, no ar. Seria verdade o que os meus olhos
tinham visto? Ou não passava de trapaça do Eiramá? Tive pena de mim mesmo.
Abalei porta fora — e nunca mais lá pus os pés.
Levei dias a matutar na coisa.
Interrogava-me, angustiado. Depois, já mais calmo, reli os livros dele e não
lhes encontrei a magia de outrora. E foi com verdadeiro acinte vingativo que,
passada a crise, me atirei a ler uns tantos autores modernos, dos poucos que
adregavam arribar àquelas paragens insulanas. Gostei — e aderi. Mas por quanto
tempo aquilo me doeu. Surgia-me uma celebridade, e eu — na retranca. Ídolos,
nunca mais! Do muito que então li contra os bonzos de que o burlão era na ilha
o símbolo, guardei na memória algumas tiradas de respeito. Mas, mais do que
isso, me impressionaram dois versos de Edmundo de Bettencourt:
Quero pedir-vos adeus sem nenhumas
ternuras,
sem pena e repugnado, ó antropofagias obscuras!
Substituí antropofagias
por mitofagias
(o autor que me perdoe o abuso), e
quando me sinto ameaçado por novos ídolos, recito-os como conjuro. E, duvidando
sempre, até de mim mesmo se me acodem velocidades de subir ainda ao alto do Parnaso
que tente escalar com os meus insonsos alexandrinos, consigo supor que estou
vivo!...
Pedro
da Silveira, “Ao princípio, era a mitofagia”
in O Século Ilustrado,
Lisboa, 14-05-1955, p. 9
***
[…] Cheguei
a este texto de Pedro da Silveira por uma «breve» no Diário Insular, que
atribuo claramente a João Afonso, dando conta do «início da colaboração» do
florentino n’O Século Ilustrado. Tal colaboração consistiu, todavia,
apenas nesta página, que resulta do convite feito a escritores para «contar uma
história»; por exemplo, Mário Cesariny de Vasconcellos escreveria duas semanas
depois.
A curiosa
«história» de Silveira reporta-se ao ambiente literário da Angra do Heroísmo da
década de 1930, quando ele ali foi estudante de liceu e seminário já envolvido
em primícias literárias e visitando figuras em destaque. O literato designado como
Germano é, creio bem, Gervásio da Silva Lima (1878-1945), também referido por
Pedro no prefácio às Ilhas Desconhecidas como pomposa figura da cidade que
recusou a Vitorino Nemésio ir cumprimentar Raul Brandão, pois este lhe parecia
um emigrante que voltava à sua terra sem vintém. Mas esta é também deveras uma
história edificante, prevenindo-nos dos malefícios de idolatrias de qualquer espécie
e pinta, ou dos graves erros de avaliação pessoal que tantas vezes, e em tantos
tempos da vida, praticamos inadvertidamente. Para bom entendedor...
Vasco
Rosa, “Centenário de Pedro da Silveira, XXIII – Ídolos, nunca mais!,
disse ele” in Diário dos Açores, 22-04-2023
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