A TRISTE HISTÓRIA DO ZERO POETA
A
si mesmo se dedica
Numa
certa conta havia
um zero dado à poesia
que tinha um sonho secreto:
fugir para o alfabeto.
Sonhava tornar-se um O
nem que fosse um dia só,
ou ainda menos: só
o tempo de dizer: «Oh!»
(Nos livros e nas seletas
o que mais o comovia
eram os «Ohs!» que os poetas
metiam nas poesias!)
Um «Oh!» lírico & profundo,
um só «Oh!» lhe bastaria
para ele dizer ao mundo
o que na alma lhe ia!
E o que na alma lhe ia!
Sonhos de glórias, esperanças,
ânsias, melancolia,
recordações de criança;
além de um grande vazio
de tipo existencial
e de uma caixa que o tio
lhe pedira para guardar;
e ainda as chaves do carro
e uma máscara de entrudo...
Não tinha bolsos, coitado,
guardava na alma tudo!
A alma! Como queria
gritá-la num «Oh!» sincero!
Mas não passava de um zero
que, oh!, não se pronuncia...
Daí que andasse doente
de grave doença poética
e em estado permanente
de ansiedade alfabética.
E se indignasse & etc.
contra o destino severo
que fizera dele um zero
com uma alma de letra!
Tanta ambição desmedida,
tanto sonho feito pó!
E aquele zero dava a vida
para poder dizer «Oh!»...
um zero dado à poesia
que tinha um sonho secreto:
fugir para o alfabeto.
Sonhava tornar-se um O
nem que fosse um dia só,
ou ainda menos: só
o tempo de dizer: «Oh!»
(Nos livros e nas seletas
o que mais o comovia
eram os «Ohs!» que os poetas
metiam nas poesias!)
Um «Oh!» lírico & profundo,
um só «Oh!» lhe bastaria
para ele dizer ao mundo
o que na alma lhe ia!
E o que na alma lhe ia!
Sonhos de glórias, esperanças,
ânsias, melancolia,
recordações de criança;
além de um grande vazio
de tipo existencial
e de uma caixa que o tio
lhe pedira para guardar;
e ainda as chaves do carro
e uma máscara de entrudo...
Não tinha bolsos, coitado,
guardava na alma tudo!
A alma! Como queria
gritá-la num «Oh!» sincero!
Mas não passava de um zero
que, oh!, não se pronuncia...
Daí que andasse doente
de grave doença poética
e em estado permanente
de ansiedade alfabética.
E se indignasse & etc.
contra o destino severo
que fizera dele um zero
com uma alma de letra!
Tanta ambição desmedida,
tanto sonho feito pó!
E aquele zero dava a vida
para poder dizer «Oh!»...
Manuel
António Pina, O Pequeno Livro da
Desmatemática
No poema «A triste história do zero
poeta» o protagonista é o algarismo Zero, que revela uma densidade psicológica
e afetiva muito distante da objetividade numérica, mas muito perto da vivência
humana.
A manifestação do forte desejo de
realização de «um sonho secreto» (Pina, 2001: 18), «fugir para o alfabeto» e
tornar-se um «O» (note-se, aqui, a aproximação expressiva entre a forma do
algarismo «0» e da letra maiúscula «O»), bem como a vontade de «dizer ao mundo»
quer os «sonhos de glória, esperanças, / ânsias, melancolia, / recordações de
criança», quer «um grande vazio de tipo existencial / e de uma caixa que um tio
/ lhe pedira para guardar; // e ainda as chaves do carro / e uma máscara de
entrudo…» – porque «Não tinha bolsos, coitado, / guardava na alma tudo!» – fazem
deste «zero dado à poesia» uma figura simultaneamente dramática e cómica.
Sara Reis Silva, “Coisas que não há que há: a escrita poética para a infância de
Manuel António Pina” in Actas do 6º
Encontro Nacional (4º Internacional) de Investigação em Leitura, Literatura
Infantil e Ilustração. Braga, Universidade do Minho, outubro 2006.
Poderá também gostar de:
- Entrevista de Manuel António Pina a “Ler Mais, Ler Melhor” (programa apoiado pelo Plano Nacional de Leitura).
- Apreciação literária de O Pequeno Livro da Desmatemática (ilustrações de Pedro Proença), publicado em 2001 pela Assírio e Alvim (nº 8 da coleção Assirinha). Por: Carlos Fiolhais, http://dererummundi.blogspot.pt/2007/09/mais-poesia-infantil.html, 2007-09-27.
- "Persistência da Poesia", Manuel António Pina, Visão , 2007-06-07
- "Manuel António Pina - Uma vida de palavras" (Dossiê), Luís Ricardo Duarte, Álvaro Magalhães e José Carlos de Vasconcelos in JL, 2021-09-22.
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