quinta-feira, 4 de junho de 2015

Eu, que sou feio, sólido, leal (Cesário Verde)



A DÉBIL           






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Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa d'um café devasso1,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando deste esmola a um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

“Ela aí vem!” disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado2 e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na fresquidão dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava – talvez que o não suspeites! –
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca3.
Triste, eu deixei o botequim4, à pressa;
Uma turba5 ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias6 d'um monarca.

Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava7, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens, os titulares8;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto
Que não te morrerá sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentação9,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma10 de padres de batina,
E d'altos funcionários da nação.

"Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!"
De repente paraste, embaraçada,
Ao pé d'um numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia11 estes fáceis esbocetos12,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu, homem varonil13,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.



Cesário Verde, "A débil". In O Livro de Cesário Verde.



____________________
Vocabulário:

1 devasso: libertino; moralmente vergonhoso
2 vexado: envergonhado
3 patriarca: chefe de família
4 botequim: estabelecimento comercial onde se servem cafés e outros; bar
5 turba: magote de gente; multidão
6 exéquias: cerimónias religiosas fúnebres
7 avultava: sobressaía
8 titulares: que tem título de nobreza; que é fidalgo com título
9 ostentação: exibição vaidosa; aparato; pompa
10 chusma: multidão
11 urdia: imaginava
12 esbocetos: pequeno desenho para estudo de obras em ponto grande; esboço
13 varonil: másculo; viril  


Educação Literária

1. Explique se a figura feminina que é descrita no poema se enquadra no espaço da cidade. Justifique a resposta através de citações textuais.

2. Identifique o evento que ocorre na cidade enquanto o sujeito poético descreve a figura feminina.

2.1 Explique se o eu dá importância a este acontecimento, ilustrando a resposta através de transcrições do texto.

2.2 Identifique a possível crítica subjacente à atitude do sujeito poético em relação a este evento.

3. Tendo em conta as conclusões a que chegou na questão 2, explicite o que pensa o eu do espaço citadino, justificando a resposta através de transcrições textuais.

4. Identifique os sentimentos que a figura feminina desperta no sujeito poético.


Chave de correção

1. A figura feminina que é descrita no poema não se enquadra no espaço da cidade, como se pode ver pelo facto de se mostrar «assustada» (v. 2), de ter um vestido simples, de não participar nas «exéquias d[o] monarca» (v. 24), seguindo antes a «pensar no [s]eu bordado» (v. 26) e de revelar inadaptação àquele espaço, ao parar «embaraçada / Ao pé dum numeroso ajuntamento.» (vv. 43-44). Este contraste é expressivamente ilustrado pelo facto de ela se destacar, na sua brancura, no meio de uma multidão negra — o que pode ser entendido como uma metáfora de pureza face à degradação da cidade.

2. O evento que ocorre na cidade enquanto o sujeito poético descreve a figura feminina é o funeral do rei.

2.1.  O sujeito poético não dá importância ao funeral do rei. Fala-se nas «exéquias dum monarca» (v. 24), e a utilização do artigo indefinido mostra que a identificação do rei em causa nem sequer é considerada necessária, o que revela uma profunda indiferença face ao sucedido. No mesmo sentido vai a referência posterior a «[u]ma estátua de rei num pedestal» (v. 28) (sublinhado nosso).

2.2. Sugestão de resposta: A indiferença face ao acontecimento pode ser interpretada como uma consequência do facto de o rei se enquadrar na estrutura decadente da cidade, tal como a «chusma de padres de batina, / E de altos funcionários da nação» (vv. 39-40), que, significativamente, é reduzida a um «bando ameaçador de corvos pretos» (v. 48).

3. O sujeito poético, muito embora esteja parcialmente integrado no espaço citadino, na medida em que se encontra à «mesa dum café devasso» (v. 5), a beber «cálices de absinto» (v. 10), tem perfeita noção da decadência que o mina. É por este motivo que designa a cidade como «Babel […] velha e corruptora» (v. 7), caracterizando depreciativamente os altos funcionários da nação e os elementos do clero como «[u]m bando ameaçador de corvos pretos» (v. 48). Com efeito, sente vontade de proteger a figura feminina deste ambiente degradado («Tive tenções de oferecer-te o braço», v. 8) e, ao vê-la a praticar uma boa ação, procura imediatamente libertar-se da decadência em que mergulhara («Mandei ir a garrafa, porque sinto / Que me tornas prestante, bom, saudável.», vv. 11-12).

4. Esta mulher poderá contribuir para que o sujeito lírico seja redimido, seja salvo da vida decadente em que se afunda, da vida inútil que se vai esgotando no interior dos cafés, de que ele se envergonha, tornando-o «prestante, bom, saudável», algo por que ele suspira. Contudo, no poema, o eu acaba por distanciar a figura feminina utilizando uma tripla adjetivação que encerra, em si, uma antítese («eu que sou feio», tu que «és bela», o que permite concluir que o poeta coloca a mulher numa relação de superioridade em relação a si. No final do poema, esta oposição é retomada (tu que «és ténue, dócil, recolhida», «eu, que sou hábil, prático, viril», embora aqui de maneira mais suave, em resultado da redenção do «eu» do poeta, devido à simples presença desta jovem, que lhe provoca o desejo de mudança.

Gramática

1. Tendo em conta os seus conhecimentos sobre as funções sintáticas, classifique as afirmações que se seguem como verdadeiras ou falsas, corrigindo as falsas.

 Ficha 2 

(A) O constituinte «feio, sólido, leal» (v. 1) desempenha a função sintática de modificador apositivo do nome.

(B) O constituinte «-te» (v. 8) desempenha a função sintática de complemento indireto.

(C) A oração «que bebia cálices de absinto» (v. 10) desempenha a função sintática de modificador restritivo do nome.

(D) O constituinte «Na fresquidão dos linhos matinais» (v. 16) desempenha a função sintática de modificador da frase.

Oralidade

Expressão oral

1. Considere a estrofe final do poema (vv. 49-52):

«E foi, então, que eu, homem varonil,

Quis dedicar-te a minha pobre vida,

A ti, que és ténue, dócil, recolhida,

Eu, que sou hábil, prático, viril.»

 

1.1 Na sua opinião, a imagem do homem e da mulher que é transmitida nesta estrofe ainda se adequa à sociedade contemporânea?

Reflita sobre esta questão e prepare um texto de opinião, de quatro a seis minutos, durante a qual apresente o seu ponto de vista em relação a esta questão. Deverá explicitar com clareza a sua opinião, apresentando, no mínimo, dois argumentos, bem como, pelo menos, um exemplo que ilustre cada um deles.

 Ficha 9

 Ficha 15 

Escrita

1. Considere a seguinte afirmação:

«A nível social, a cidade significa opressão, e o campo a recusa da opressão e a possibilidade do exercício da liberdade.»

Helder Macedo, Nós — Uma Leitura de Cesário Verde, Lisboa, Dom Quixote, 1986.

 

1.1 Partindo da afirmação anterior, redija uma exposição, com um mínimo de cento e trinta (130) e um máximo de cento e setenta (170) palavras, no qual se refira à oposição cidade/campo na poesia de Cesário. Deverá fazer alusões concretas aos poemas estudados. 

Proceda à planificação do texto e, posteriormente, à sua revisão.

 Ficha 9 

 Ficha 14 

Fonte: Entre nós e as palavras - Português 11.º ano. Disponível em: https://www.santillana.pt/files/DNLCNT/Priv/_11811_c.book/270/index.html#/pag/300



Ilustração a partir de «A Débil», de Cesário Verde, por Júlia Gonçalves

Educação Literária II

Responda ao questionário seguinte, justificando sempre as suas afirmações.

1. Identifique o episódio do quotidiano introduzido neste poema.

2. Localize, no espaço e no tempo, este episódio.

3. Releve os elementos que caracterizam o espaço como "corruptor".

4. Refira os elementos que denunciam a perspetiva do "poeta- narrador" perante o observado.

5. Estabeleça os "contrastes" que neste poema são feitos.

6. Destaque os recursos estilísticos que melhor acentuam esses contrastes.

7. Esclareça, tendo em conta a poesia de Cesário, o valor pictórico da oposição "pombinha" e do "bando de corvos".

 

Chave de correção

1. O poeta observa, sentado a uma mesa de café, "A Débil", bela, frágil, assustada, que passa indefesa na rua, enquanto uma multidão, composta por povo anónimo, padres e altos funcionários da nação, forma um "numeroso ajuntamento". Está-se perante uma cerimónia pública.

2. Este episódio desenrola-se numa cidade, numa "Babel tão velha e corruptora", sendo que o poeta se encontra "à mesa de um café devasso", enquanto a "Débil" passa na rua. É um "soberbo dia", de manhã, daí as referências quer à luz do sol- "claro sol"- quer à "frescura "dos linhos matinais" que constituem o vestido da moça.

3. À partida, o poeta define o café em que se encontra como "devasso" onde bebe "absinto" e, ao avistar a "Débil", manda retirar a garrafa; depois, refere-se à cidade como "Babel [...] velha e corruptora". Finalmente, sugere a "proteção da mãe da moça" que a "guardava [...]" e que "não [...] morrerá sem que [a Débil] se case”.

4. O poeta assume uma perspetiva subjetiva e sentimental: desde o início afirma que a rapariga lhe inspira "estima", desejo de proteção ("tenções" de [lhe] oferecer o braço", assim como a sua visão o torna "prestante, saudável" e lhe inspira, "[o seu] semblante grego", desejos castos - "uma família, um ninho de sossego". Todavia, preocupando-se Cesário com o mundo exterior, concreto, objetivo, não resiste à necessidade de pontuar o seu discurso com marcas de um certo realismo pictórico - "A Débil" é "fraca e loura; o vestido que traz, branco e fresco – “a frescura dos linhos matina”, mas também poetiza -"transforma" o que vê numa outra realidade - à mancha branca do vestido associa uma "pombinha", à mancha negra da multidão, "um bando de corvos".

5. O primeiro contraste que se estabelece é entre o próprio poeta e a moça - ele é “feio, sólido, leal", ela, "bela, frágil, assustada", tem "um corpo que pulsa alegre e brando", é "branca, esbelta e fina"; ele é um ''homem varonil [...]/ hábil, prático, viril", ela, ''ténue, dócil, recolhida". Enfim, ele é masculinidade e força, ela, feminilidade e fragilidade.

Depois, entre o espaço - "a Babel velha e corruptora" e a mesma moça se nota um contraste - a cidade corrompe, a moça inspira sentimentos de castidade, de doçura e de estima.

Finalmente, existe um contraste entre a multidão- "o povo turbulento” e a figura feminina que passa serena - "com elegância e sem ostentação", perturbada pela presença da multidão - "paraste embaraçada/ao pé de um numeroso ajuntamento".

6. Para acentuar o contraste entre o poeta e a moça, predomina a tripla-adjetivação - "feio, sólido, leal", "bela, frágil, assustada". Da mesma forma se estabelece o contraste entre a "Débil" e a cidade, ou entre a moça e a multidão. Simbolicamente, o poeta acentua este ú1timo contraste pela oposição "pombinha"/ "bando de corvos"- branco-negro; presa-predador.

7. "Pombinha" e "bando de corvos" são dois símbolos que a "visão transfiguradora" de Cesário - a sua "visão de poeta"- associa ao andar da moça por entre a multidão. Essa associação é feita quer pela cor do vestido da moça, quer pela cor das vestes da "chusma de padres de batina" ou desse "numeroso ajuntamento" por onde ela passa.

Por outro lado, "o povo turbulento" associado ao "corvo" enquanto predador, acentua a imagem de que esta moça é uma presa porque é frágil.

(Escola Secundária Domingos Rebelo, 2000)

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Educação Literária III 

1. O poeta encontra-se num "café devasso".

1.1. Aponta as influências que a vida citadina exerce sobre o sujeito poético, atendendo à autocaracterização e às características da cidade.

2. O eu lírico tem como destinatário uma figura feminina.

2.1. Identifica o tipo de mulher presente no poema. Justifica a tua resposta.

2.2. Demonstra que ela representa valores opostos aos da cidade.

2.3. Reconhece o Mito de Anteu em Cesário, exemplificando-o com uma citação.

2.4. Com base, sobretudo, na última estrofe, explica como a aproximação poeta/mulher se torna possível.

3. Na 6.ª estrofe, Cesário é o poeta do real e da transfiguração.

3.1. Destaca os elementos que lhes correspondem.

3.2. Identifica a figura de estilo que se encontra ao serviço da transfiguração. Justifica a resposta com citações.

3.2.1. Interpreta a sua expressividade.

(Escola Secundária Domingos Rebelo, 1996)



“Eu, que sou feio, sólido, leal (Cesário Verde)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2015-06-04. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2015/06/a-debil.html


 

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