OS CATIVOS
Encostados às grades da prisão,
Olham o céu os pálidos cativos.
Já com raios oblíquos, fugitivos,
Despede o sol um último clarão.
Entre sombras, ao longe, vagamente,
Morrem as vozes na extensão saudosa.
Cai do espaço, pesada, silenciosa,
A tristeza das coisas, lentamente.
E os cativos suspiram. Bandos de aves
Passam velozes, passam apressados,
Como absortos em íntimos cuidados,
Como absortos em pensamentos graves.
E dizem os cativos: Na amplidão
Jamais se extingue a eterna claridade...
A ave tem o voo e a liberdade...
O homem tem os muros da prisão!
Aonde ides? Qual é a vossa jornada?
À luz? à aurora? à imensidade? aonde?
– Porém o bando passa e mal responde:
À noite, à escuridão, ao abismo, ao nada! –
E os cativos suspiram. Surge o vento,
Surge e perpassa esquivo e inquieto,
Como quem traz algum pesar secreto,
Como quem sofre e cala algum tormento...
E dizem os cativos: Que tristezas,
Que segredos antigos, que desditas,
Caminheiro de estradas infinitas,
Te levam a gemer pelas devesas?
Tu que procuras? Que visão sagrada
Te acena da soidão onde se esconde?
– Porém o vento passa e mal responde:
a noite, a escuridão, o abismo, o nada! –
E os cativos suspiram novamente.
Como antigos pesares mal extintos,
Como vagos desejos indistintos,
Surgem do escuro os astros, lentamente...
E fitam-se, em silêncio indecifrável,
Contemplam-se de longe, misteriosos,
Como quem tem segredos dolorosos,
Como quem ama e vive inconsolável...
E dizem os cativos: Que problemas
Eternos, primitivos, vos atraem?
Que luz fitais no centro donde saem
A flux, em jorro, as intuições supremas?
Por que esperais? Nessa amplidão sagrada
Que soluções esplêndidas se escondem?
– Porém os astros tristes só respondem:
A noite, a escuridão, o abismo, o nada! –
Assim a noite passa. Rumorosos
Sussurram os pinhais meditativos.
Encostados às grades, os cativos
Olham o céu e choram silenciosos.
Antero de Quental, Poesia
Completa. Org. Fernando Pinto do Amaral.
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001.
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001.
Intertextualidade
ÀS GRADES DA PRISÃO
Às grades da prisão, olhos extasiados
Veem descer o Sol sobre o mar de metal.
Na tarde de âmbar há murmúrios espalhados
Como preces da Terra à estrela vesperal...
No horizonte rutilante, a toda a vela
Passa um navio; é todo de oiro e de rubis…
Onde vais, onde vais, brilhante caravela
Do rei poeta dum quimérico país?
É triste o alcácer, com salões frios e anosos,
Como as igrejas cheios de ecos cavernosos,
Com grossas portas de mosteiro medieval.
Mas desse interior taciturno, afastado,
Duma estreita janela, olhos extasiados
Veem descer o sol sobre o mar de metal...
Roberto de Mesquita
(1876-1923), Almas Cativas
ANTERO LIDO POR MESQUITA*
Sinopse: É conhecida a
influência exercida por Antero nas gerações seguintes, a sua
presença em poetas particulares, como é o caso de Roberto de Mesquita.
Analisa-se aqui o modo como o seu poema «Às grades da prisão» reescreve «Os
Cativos», de Antero.
O poema «Os Cativos» constitui uma amostra muito sintomática
daquilo que, no início dos anos de 1880, Antero declarava ser a sua
«maneira definitiva» de poeta, aquilo que poderemos designar uma poesia
dramática, se levarmos em conta aquilo que ele mesmo afirma numa carta a
António Feijó: «Mas, fora desta esfera restrita [da poesia analítica], a
poesia, tornada mais complexa, parece-me que requer uma forma sintética, a
acção objectiva, o drama (dando à palavra a sua acepção mais geral), poderosa
pela sua mesma impessoalidade.» (Quental, 1989: 567). Repare-se nos termos de
Antero sobre o drama enquanto modo objectivo, isto é, representativo,
capaz de configurar um mundo exterior ao sujeito poético, dele distanciado,
e também dinâmico, com acção, implicando
por isso a existência de espaço, temporalidade e personagens que entre si
trocam falas – traduzindo-se tudo isso, no final, pela impessoalidade, a
tendencial ocultação (ainda que não total) do enunciador, do sujeito poético,
neste caso. Sabemos hoje como este desígnio de uma poética da
impessoalidade vai desaguar no modernismo português e, em especial, no projecto
poético pessoano
«Os
Cativos» constituem um poema relativamente longo: treze quadras em
decassílabos, com uma estrutura narrativo-dramática em que é possível
delimitar um Prólogo (2 quadras iniciais), seguido de três cenas (de
3+3+4 quadras, respectivamente, e tecnicamente delimitadas como no texto
dramático propriamente dito) e de um curto Epílogo ou conclusão (última
quadra).
As
primeiras duas quadras apresentam a personagem dos cativos, sobre um cenário de
fim de dia, descrito em termos de ambiente melancólico propício à contemplação,
ao cismar e, finalmente, à interrogação; estamos em presença de uma descrição
com certos traços simbolistas, que (juntamente com notórios aspectos rítmicos e
melódicos) poderá ajudar a compreender a projecção posterior do poema.
As três cenas têm uma estrutura interna idêntica e sequencial: a
presença dos cativos («os cativos suspiram»),
o aparecimento dos interlocutores (as aves,
primeiro, e depois o vento e os astros), a introdução da(s) pergunta(s) que
lhes é feita pelos cativos e a culminar uma reflexão por vezes formulada em
modo interrogativo; finalmente, a resposta, linear e
curta, que fecha cada cena.
Ora,
é este poema que surge recontextualizado no soneto «Às grades da
prisão», de Roberto de Mesquita: em versos alexandrinos, ele recolhe para
título e início do verso 1, um fragmento do verso inicial de «Os cativos».
A
sua estrutura narrativo-dramática retoma a do poema anteriano:
uma introdução (de idêntica natureza temporal), uma cena (apenas
uma) com interrogação e uma conclusão – numa condensação de
processos a que estava obrigada pela própria brevidade formal da
composição, o soneto: a nível do espaço descritivo, do traço
narrativo pontual («passa um navio») e do despojamento da pergunta,
privada do envolvimento reflexivo, filosófico que em Antero a antecede. Aliás,
em Mesquita, a pergunta não chega a suscitar qualquer sinal de reacção
por parte do seu (único) interlocutor, numa situação que acentua os sinais de
uma solidão irremediável.
A já assinalada modulação simbolista do poema de Antero poderá
explicar, em parte, a atracção que exerceu sobre o poeta florentino, num
contexto em verbal em que são notórios os traços dessa corrente estética
finissecular. Mas, para lá dessa afinidade (e de outras), um corte
fundamental exercido por Mesquita consiste na mudança do cenário selecionado: o
mar, com os seus signos correlativos, especialmente o navio,
cuja passagem fugaz quase o transforma num elemento irreal, talvez mesmo
uma ilusão ou miragem fruto de um êxtase do olhar que se
estende sobre o mar (de metal) que é o prolongamento metonímico das grades
(no soneto de Mesquita os «cativos» anterianos reduzem-se a uma parte do
todo: «olhos», o que introduz desde logo outra envolvência semântica).
Aquilo que em Antero se exprimia em termos de uma
interrogação cósmica sobre a liberdade e o destino, torna-se em Mesquita
uma questão mais circunstancial, mais individual, e sintomática de uma condição
particular que o conjunto da sua poesia ajuda a confirmar, em termos de uma
configuração do mundo pensado e sentido como cárcere atlântico,
metáfora reformulada noutros contextos. Deste modo, e numa
impressiva representação simbólica, estão todos os contornos semânticos da
palavra que o poeta não ousou escrever ao longo do seu livro de poemas: ilha.
Que isto tenha chegado através de Antero apenas acentua a dimensão da
literatura como uma conversação (uma tresleitura) infinita,
sucessivamente desdobrada no tempo. Uma conversação que, no campo
açoriano, se prolonga ainda na obra de poetas como Pedro da Silveira (anos 50)
e J. H. Santos Barros (anos 70) – numa literatura, já agora, em que
deliberadamente se inscreve a insularidade atlântica, açoriana, ou tão
simplesmente a açorianidade.
Urbano Bettencourt
(CIERL-UMa; CEHu-UAc)
*Versão (muito) sintética da comunicação que apresentei às Jornadas
Anterianas (Ponta Delgada, 7 e 8 de Novembro de 2017)
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MESQUITA,
Roberto de (2016), Almas Cativas e Poemas Dispersos,
Prólogo e Organização de Carlos Bessa. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas,
QUENTAL,
Antero de (1989), Cartas I, org. de Ana Maria
Almeida Martins. Ponta Delgada e Lisboa: Universidade dos Açores e
Editorial Comunicação.
QUENTAL,
Antero de (2001), Poesia Completa, org. de Fernando
Pinto do Amaral. Lisboa, Publicações Dom Quixote.
https://urbanobettencourt.wordpress.com/2018/06/05/antero-lido-por-mesquita/
Poderá também gostar de:
à Apresentação
crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero
de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da
língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>
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