Tertúlia em casa de Natália Correia. |
Na abordagem elementar da poesia de Natália Correia, como a
que me proponho apresentar, saliento dois pontos cardeais que me nortearam
nessa tarefa insensata: a COSMICIDADE e COMICIDADE [descomedimento — hybris].
Numa dialéctica (aparentemente antitética), a analogia entre
COSMICIDADE e COMICIDADE, se afirma como característica fundadora da sua
poética, com nuanças surrealistas, atenuações do Barroco, como dinâmica
discursiva, magia sempre presente na sua escrita plurissignificativa: na obra
poética, na obra teatral, romanesca e ensaística.
COSMICIDADE
Na INTRODUÇÃO à edição da POESIA COMPLETA de Natália Correia,[edição
póstuma preparada pela autora que a intitulou de O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS
DIAS, datada de 1999], Natália Correia alude à COSMICIDADE e a define como
sendo ‘o postulado de uma conexão cósmica da
poesia com uma linguagem englobante da música e das matemáticas em que está
estruturado o Universo’. (Deduzo que se refira à ‘harmonia das
esferas’ — crença
pitagórica que relacionava o Universo com a harmonia e a
divina proporção musical que o sustenta).
Nos seus poemas crísticos, o imaginário ascende ’ao
miradouro do Espírito‘para enxergar ‘sob forma mesmo estruturalmente dramática,
ode, sátira ou humor que, como poesia, surge onde não há solução’.
Natália Correia ‘debate-se com a má eternidade e com a má
infinitude’(diria Maurice Blanchot): a poesia surge ‘onde não há solução’. Onde
não há soluçãopermanecerá, assim interpreto, é a palavra indizível,
inacessível, palavra esotérica, sob a forma teosófica, como interrogação ao
insondável, religiosidade simbolista por empréstimo como
EQUÍVOCO CÓSMICO [INÉDITOS 1955/57]
Se meu germe, por
equívoco, Teu gesto
Neste planeta funesto semeou,
Criar foi inventar-me o resto.
Perdoo-te a mentira que aqui sou
Pela verdade que lhe empresto.
Neste planeta funesto semeou,
Criar foi inventar-me o resto.
Perdoo-te a mentira que aqui sou
Pela verdade que lhe empresto.
Perspectiva-se neste poema, tanto quanto creio, o fingimento (na
acepção pessoana) que se esclarece pelo que se lê no trecho inicial de EXÓRDIO
[O ARMISTÍCIO (1985)]:
‘Não jurarei que
qualquer deus exista. Só sei que é grosseiro viver sem deuses. Porque mais
importante que os deuses existirem é acreditarmos neles. E mesmo que,
existindo, nos ignorem, não sejamos nós a ignorar a sua autoridade primitiva
que, nutrindo de segredos divinos as florestas, os rios e os ventos, faz correr
o sangue em nossas veias. Usando este saber, menos dano nos farão os
salteadores do verdor da natureza. Supersticiosos como todos os malfeitores,
colhimento lhes será o terror sagrado de depredarem flores, árvores e fontes em
que os deuses são tão reais quanto elas são. Baste-vos esta ciência: onde vos
retiver a beleza de um lugar, há um deus que vos indica o caminho e Espírito.’
Em VOU DAS ANTÍTESES PARA O ABSOLUTO, [INÉDITOS 1947/55] busca o rumo
constante da interrogação que a reflexão permite:
Não expulsarei os
deuses e os demónios
Que discutem a posse da minha alma.
Que discutem a posse da minha alma.
Esse conflito, esse entrelaçamento do anticlericalismo e da
interrogação do Absoluto, de se lhe abeirar rejeitando-o, de o afastar
pretendendo alcançá-lo, numa contradição assumida (ora com fingimento, ora com
magia ‘dum ritmo exterior’), numa subversão que atravessa toda a obra da
escritora, que se sintetiza no neologismo unamuniano, como se lhe referem em
Espanha: MATRIA (conceito formulado anteriormente a Unamuno, mencionado pelo
padre António Vieira, e revisitado por autores contemporâneos, como o expressa
Luís Adriano Carlos no ensaio A MÁTRIA E O MAL EM NATÁLIA CORREIA).
O pendor metafórico da sua poesia permite irrupções de imagens que
configuram uma irracionalidade da busca da razão, uma constante escondida
adesão à dúvida e ao ímpeto para elaborar uma verdade que deuses e demónios
disputam ou discutem, uma afirmação da sexualidade numa ânsia que se proclama
noutro poema de EXÓRDIO:
‘Sejamos
tranquilamente amantes das coisa divinas, sem o que a vida é o heroísmo reles
de um aborrecimento.’, ou mais expressivamente, se lê num verso dos SONETOS
ROMÂNTICOS: ‘Creio na carne que enfeitiça o além’.
O Absoluto, ‘cosmicidade do idioma poético’,
manifesta-se como ‘a liberdade cósmica’, que é
sublinhada amplamente na tão imensa música, música como acesso revelador da
palavra em falta, a que Natália Correia alude, no contexto em que, como
escreve, ‘nada é isolável’.Define, em ‘O
POEMA’ a inventividade da poesia como ‘Pura intenção/ de cantar o que
não conhece.’.
Lê-se num soneto do ciclo: ROGANDO À MUSA QUE TORNE CLARO O CORAÇÃO
OBSCURO [SONETOS ROMÂNTICOS (1990)], algum tormento de interrogação do estético
por detrás da simbolização da infinidade divina:
De um emboscado deus
os sons que escreves
Vêm secretamente do infinito.
É para escrever que as tuas mãos são leves,
Submissas asas de um misterioso espírito.
Alheia te é a música que atreves;
Teu é o fado, o precipício, o rito
Da dor que faz passar entre horas breves
Té mister, poeta grácil de olhos tristes.
Desafias os astros? Não te gabes.
És sábio de saber que nada sabes.
Estás a mais no mundo e não existes.
Vêm secretamente do infinito.
É para escrever que as tuas mãos são leves,
Submissas asas de um misterioso espírito.
Alheia te é a música que atreves;
Teu é o fado, o precipício, o rito
Da dor que faz passar entre horas breves
Té mister, poeta grácil de olhos tristes.
Desafias os astros? Não te gabes.
És sábio de saber que nada sabes.
Estás a mais no mundo e não existes.
COMICIDADE
Revela-se, em Natália Correia, um misticismo secularizado que lhe advém
da independência com que ‘sem intento malévolo contra instituições
democráticas’, combate ‘o desvario de extremismo’,
‘o imediatismo revolucionário’, e não se ilude com
as soluções políticas adoptadas, revelando uma consciência céptica quanto ao
pós-25 de Abril, embora positivamente interventora no campo político, deputada
da Direita, empreendendo, na atitude, algo que ironicamente parece ser a
palavra da auto-convicção de uma autoridade moral pública superior. Hoje se justifica (ou
se lê) a EPÍSTOLA AOS IAMITAS (1976), pela realização poética alcançada. Poesia
sem constrangimentos limitadores do seu assombro, da metáfora transgressora e
exultante numa comicidade que é ‘um poema para ensinar risadas de camélias
aos animais do medo’. [COMUNICAÇÃO — 1959]. É
surpreendente a sua poesia pela articulação do imaginário
poético dos ‘versos parodísticos’ com a intervenção política datada, sem nada
perder nessa atitude extraverbal. Hoje justifica ler-se também as suas
crónicas, como contextualização das poesias políticas. No fundo, trata-se de
uma coerência entre a afirmação de uma poderosa presença do ‘Deus Riso’ e o seu
aperfeiçoado labor metafórico: simultaneamente ética (hesito em classificá-la
de ética idealizada) e incontestada ambição estética.
O riso de Natália Correia cumpre ‘a função útil do riso’, a
significação social como defende Bergson [, na sua obra O RISO: ENSAIO SOBRE A
SIGNIFICAÇÃO DA COMICIDADE] para quem o riso é ‘inteligência pura’.
Atenda-se que em A DEMIURGIA DO RISO, Natália Correia escreve como
epígrafe:
E cada vez que
celebrei o
Deus Riso floresceu em mim
Um novo invento.
Deus Riso floresceu em mim
Um novo invento.
O riso de Natália Correia ‘é o seu reino inesgotável’,
como fonte de invenção, dado que há uma prioridade de ordem histórica no humor ‘jocoso
de travessuras’ como no hilariantemente cómico, riso de zombaria
quando se refere a episódios parlamentares, que reune no poemário CANTIGAS DE
RISADILHA (entre 1979 e 1991.
Cito: ’O acto sexual é para fazer filhos’ — disse ele’
[Refere-se ao deputado João Morgado, e
à sua posição conservadora, no debate sobre a
legalização do aborto.]
‘Já que o coito — diz Morgado —
Tem como fim cristalino,
Preciso e imaculado
Fazer menina ou menino;
E cada vez que o varão
Sexual petisco manduca,
Temos na procriação
Prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
Lógica é a conclusão
De que o viril instrumento
Só usou — parca razão! —
Uma vez. E se a função
Faz o órgão — diz o ditado —
Consumada essa excepção
Ficou capado o Morgado.’
Tem como fim cristalino,
Preciso e imaculado
Fazer menina ou menino;
E cada vez que o varão
Sexual petisco manduca,
Temos na procriação
Prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
Lógica é a conclusão
De que o viril instrumento
Só usou — parca razão! —
Uma vez. E se a função
Faz o órgão — diz o ditado —
Consumada essa excepção
Ficou capado o Morgado.’
A poesia satírica da cidadã Natália Correia contempla corrosivamente,
com directas e facilmente decifráveis referências, com a comicidade
e o riso(Vladimir Propp), o contexto sócio-histórico.
Natália Correia imprimiu no jornal da campanha eleitoral autárquica por
Lisboa em que concorreu Marcelo Rebelo de Sousa o CANCIONEIRO JOGO-MARCELINO
[1989] [,de que cito, aleatoriamente, o soneto]:
MARCELO É BOM
BAILARINO
É entrar, venham ver
a maravilha
Das variedades na feira marcelina!
E entre atracções à escolha a que mais brilha
É de Marcelo a fúria bailarina.
Do tango ao rock do chá-chá-chá ao samba,
Dançando a valsa como quem flores pisa,
Baila Marcelo até na corda bamba
E os alunos de Apolo inferioriza.
Topa, enfim, de cavaco o maçarico
No dernier cri da dança uma golpada:
Rebolar-se no novo sassarico
Para no partido acabar tudo à lambada.
Das variedades na feira marcelina!
E entre atracções à escolha a que mais brilha
É de Marcelo a fúria bailarina.
Do tango ao rock do chá-chá-chá ao samba,
Dançando a valsa como quem flores pisa,
Baila Marcelo até na corda bamba
E os alunos de Apolo inferioriza.
Topa, enfim, de cavaco o maçarico
No dernier cri da dança uma golpada:
Rebolar-se no novo sassarico
Para no partido acabar tudo à lambada.
No conjunto da sua obra, o humor, uma outra forma de sátira, é a
homofonia ’Humor=Amor’ na
desconcertante sexualidade da poesia de Natália Correia, e nessa direcção, será
possível concluir, numa síntese que a própria autora escreveu:‘Disparei
contra a univisualidade do mostrengo das coacções fascio-puritano-pirosas’.
Em conclusão, que não conclui nada: a poesia vária de Natália Correia
mostra que a Cosmicidade, ‘o sopro da Alma Universal’
contém a inversão metafórica
(Gérard Genette) da Comicidade.
Mesmo na interrogação e afinidade ao Absoluto [velhos Tratados
Espirituais e Filosóficos, matemática e música] há um momento do tempo que decorre no
tempo (1), em sentido figurado, que é considerado, aquele que
revela como fundamento vinculado do processo criativo da COSMICIDADE que,
sublinho, não se separa da COMICIDADE.
Disso nos apercebemos ao ler a primeira estrofe de JESUS NUM BAR:
Já rio e raio foste
E o vício do vinagre
Te afeiçoou aos bares
Onde homem te fizeste
Com a ruga celeste
de chegares sempre tarde.
E o vício do vinagre
Te afeiçoou aos bares
Onde homem te fizeste
Com a ruga celeste
de chegares sempre tarde.
Na obra literária de Natália Correia, a Cosmicidade (o que se recentra
na intuição do Absoluto), entrecruza-se com a Comicidade das coisas deste
mundo.
José
Emílio-Nelson*, Revista Caliban, 16-03-2019
______________________
(1) Segundo Søren Kierkegaard, ‘ a música tem em si’ ‘um momento de tempo,
mas não decorre no tempo, a não ser em sentido figurado’
(*) José Emílio-Nelson, poeta,
crítico e editor, é o pseudónimo literário de José Emílio de Oliveira Marmelo e
Silva, nascido em Espinho, em 17 de Maio de 1948. Iniciou a sua obra em 1979,
com o livro Polifonia, e poesia
recolhida em 2004, no volume A Alegria do Mal, prefaciado por Luís Adriano Carlos. (https://www.wook.pt/autor/jose-emilio-nelson/15654)
Poderá também gostar de:
“Cosmicidade e comicidade em Natália Correia, por José Emílio-Nelson” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 16-03-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/03/cosmicidade-e-comicidade-em-natalia.html
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