quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Como falar de Herberto Helder? – Crónica de Eduardo Prado Coelho



COMO FALAR DE HERBERTO HELDER?

1. Em parte, é claro, pela altíssima qualidade desta poesia, mas também pelo halo de silêncio com que o autor a rodeia, e que nem exclui o recurso ao arame farpado, a verdade é que leitores e críticos sentem uma espécie de pânico, ou terror, em falarem ou escreverem de Herbert Helder. Talvez o problema resida neste "sobre". A poesia de Herbert Helder desaloja qualquer posição de sobranceria ou arrogância em relação ao texto. O resultado desta humilhação consentida é uma espécie de afasia. Poderemos resolver a questão dizendo que se escreve "a partir de Herberto Helder", ou então, num ombro a ombro incerto, numa fraternidade de escrita forçosamente assimétrica, “com Herberto Helder''? Experimentemos.
2. Um texto recente de José F. Salgado, "Herberto Helder e a Arte d'os Selos: apontamentos para uma poética herbertiana", publicado no magnífico volume I dos "Santa Barbara Portuguesa Studies", coloca muito bem as coisas:"Na sua condição de híbrido irredutível - nem inocência, nem demoníaco, 'nem música nem cantaria'- a poesia escapa a qualquer tentativa de totalização, a qualquer esforço de interpretação. Como assinala Lindeza Diogo, 'o texto herbertiano é muito crítico do leitor, porque este, interessado na captação de energia através de representações significativas, leva para o meio dos enigmas um medo menor'. Trata-se de uma poesia resistente, reticente, à leitura. Porventura, mesmo à de Deus. 'Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?’”.
Donde, o leitor deve levar para o meio dos enigmas um medo maior. Mas como falar com a boca selada de pavor?
3. A inibição crítica começa por ser o reconhecimento da impossibilidade da totalização. Isso nos é dito desde o título: na sua talha clássica, "do mundo" dá-nos a indicação de uma linha de fuga. Não "o mundo", entidade composta e fixada, mas "do mundo", fala ostensivamente em hemorragia e disseminação. Talvez por isso mesmo o crítico, ou, mais modestamente, o leitor-comentador, deveria falar, quando fala de Herberto Helder, em falar "de Herberto Helder" - à semelhança "do mundo". Em pura perda de sentido e de si. Em desequilíbrio: um "do" a mais, um "de" a mais, e tudo se perde, ou de nós foge.
4. "Do Mundo" apresenta-se como o prolongamento de um conjunto anterior, "Os Selos", e como a (re)escrita de um outro livro, "Retrato em Movimento", aqui recuperado naquilo "que foi possível fragmentariamente salvar". Este implacável rigor em relação a si mesmo, esta capacidade de devastação generalizada a que apenas escapam provisoriamente alguns destroços luminosos, não pode deixar de contribuir para aumentar o terror nas letras, e imobilizar sadicamente o leitor. Necessidade de ler sobre um horizonte de morte e destruição, com palavras sobreviventes e gestos náufragos. Política de terra queimada - onde tentaremos dar alguns passos hesitantes. Em desequilíbrio, em queda.
5. Toda esta poesia nos ajuda a aprender a arte do desequilíbrio. E, sobretudo, de como fazer desse desequilíbrio uma forma de andar, um diálogo com o vento, uma prática do "surf” poético: aprendizagem do uso produtivo da vaga, ou da memória bíblica de caminhar sobre as águas. O desequilíbrio como "miraculação do mundo".
Ao começar no desequilíbrio que move as próprias palavras. Leia-se na página 29: "a uma devagarosa mulher com cinco dedos potentes". Um "de" enreda a palavra para dentro de si mesma, mas, no processo de fragmentação interior, emerge, na permanente vacilação entre o nome comum (será que existe?) e o nome próprio, a palavra "rosa". Na página 37, "rosas divagadas pelas roseiras" imprimem o vago no cerne do vagar. No mesmo poema, o importante é a rosa no seu esplendor de corpo e nome: "E esperar que a lepra cubra os dedos, escrever: Rosa - I encadeado na rotação do nome. / Ir colher ao último alfabeto a rosa extremamente escrita." Repare-se mais uma vez na importância dos advérbios de modo. Na sua reticência, no seu retardamento, no seu retesamento, eles servem para "devagarar" os versos, fazendo que a demora se deixe habitar por uma expectativa erótica, femininamente intensificada.
6. Compreender também que tudo é lugar. Numa formulação pedante e pedestre, diríamos que há um processo expansivo de topologização. Não são apenas as coisas que funcionam como lugares - são também as palavras. Veja-se um exemplo da página 31: "as crianças entram no sono que as aguardava como uma sala". Portanto, as crianças não "adormecem", mas "entram no sono", e o sono é como uma sala (a aliteração ajuda a convecer-nos). Note-se ainda que a sala não "aguarda", mas "aguardava”, isto é, espetava desde sempre, intemporalidade do sono, as crianças que aí entram. Sala vazia, forrada de inconsciente e memória do mundo.
Veja-se agora na página 45 o verso em que se diz: "glicínias em declive pelo perfume dentro". Primeiro, a reversibilidade: não é o perfume que está nas glicínias, são as glicínias que estão no perfume. Segundo, estão "em declive".
Este ponto é importante. Ele permite-nos notar os principais eixos de deslocação no espaço da poesia de Herberto Helder: na zona mais forte, a verticalidade ascensional e eufórica ("este que chegou ao seu poema pelo mais alto que os poemas têm"), e que tende sempre a funcionar como uma explosão, uma abertura para o exterior; em contrapartida, a queda, a vertigem de cair no interior de si mesmo: processo de concentração, área de implosão e acumulação noturna de energias; por fim, a declinação dos corpos, o declive, a inclinação amorosa: “Beleza ou ciência: uma nova maneira súbita/ - os frutos unidos à sua árvore, / precipícios,I as mãos embriagadas.I E os animais aprofundam-se, encurvam-se os dias,I as pêras brilham,I o teu vestido é grande se te olho devagar.I O teu corpo transmite-se ao vestido.I Penso na glória do teu corpo./ E inclina-se a luz até os dias caírem dentro dos dias invisíveis./ A terra move-se sobre os lados, ensinas-me/ o que não saberei nunca: a água ronda".
Notar que, neste feixe de correntes, o que se omite é a horizontalidade - homenagem ao desequilíbrio, evidentemente. A não ser sob a forma de círculo (os passos em volta, a água ronda, a forma redonda da iluminação) que aparece como emanação transparente do núcleo mais puro das coisas.
Porque coisas e pessoas (qual a diferença em termos de amor?) adensam-se e soltam-se em sístoles e diástoles que correspondem à pulsação do mundo. Privilégio das crianças e dos animais. Nesse ponto, os comentários de José F. Salgado são extremamente pertinentes: "A localização do animal é indeterminável, indecidível: entre a objetividade da coisa e a subjetividade do humano, o animal põe em causa a oposição humano/coisa, é o meio termo intangível entre a familiaridade da subjetividade absoluta e a absoluta distância da coisa irremediavelmente estranha. Nem Absoluto Outro nem Mesmo, o animal faz desmoronar-se a aparente polidez dos lugares do sujeito e do objeto."
Os animais, sem dúvida, mas também as crianças -todos os seres que sabem toccar no centro de si próprios. Tocar - como o pé toca a água, no milagre da poesia que caminha sobre o mundo, transportando o seu cardume de palavras sôfregas.
Mas não vamos ficar por aqui.


Crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 10 de junho de 1995.




QUESTÃO DE TACTO

1. Continuemos a ler “Do Mundo", de Herberto Helder (Assírio e Alvim).
No texto anterior, referia-me aos seres que se tornam opacos à força de se acumularem no centro de si mesmos. Falava de animais, falava de crianças. Na página 37, lê-se: "Porque a criança atravessa tudo e toca já no centro de si mesma." Tentemos compreender. Primeiro, a criança atravessa tudo. Gostaria de sublinhar que, em Herberto Helder, existe uma vacilação permanente entre o micro e o macro, o doméstico e o cósmico. Podemos caracterizá-la como uma incessante e brutal mudança de escala. Quando se diz que a criança "atravessa tudo", isso significa que a sua correria (no quarto, no pátio da escola) é ao mesmo tempo, e desde sempre, uma correria cósmica – algo que percorre o mundo, que o divide, o corta como um sabre, uma espécie de "laser" ruidoso e ladino. Porque "cada criança / arranca-se à criança lustral com as pratas eriçadas na cabeça, a química / floração trazida acesa". O mesmo se a gente falar no "quotidiano estelar das matérias". Ou ainda: “E quem tem tanta memória que a massa de átomos, / quando passe, / encrespe, acorde, alumie a última criança? / O mistério é só esse; primeiro são cor de pólen, transfundem-se depois em palavras siderais, botânicas." Ou por vezes encontramos o movimento inverso, do cósmico ao doméstico: "Uma volta atmosférica num astro uma / volta do astro no forno uma volta·do forno / em si mesmo."
A ideia de fechamento explica o uso inesperado de certos verbos: por exemplo, a imagem dos seres abotoados. Assim: "e o avesso e o direito, pulmões, estômago, sangue que o corpo todo abotoa". Mas não poderemos deixar de notar como estes botões, frequentes, têm também uma outra função. A imagem do corpo em Herberto Helder pertence à tradição esquizofrénica: por mais que se abotoe, é um corpo furado, e os furos são os próprios botões que o abotoam. Por outras palavras, o exterior e o interior, o direito e o avesso estão num processo de permanente reversibilidade. O corpo é apenas um lugar de passagem entre a sublevação dos órgãos e as grandes massas do mundo. Daí a proliferação de botões que são feridas, chagas, válvulas, buracos, queimaduras. Daí também que a poesia seja como uma ciência do corpo a corpo, do corpo contra o corpo, através de uma forma de ver que seja uma iluminação da matéria mais espessa, das trevas intestinais, das vísceras em brasa: na medida em que "o olhar é um pensamento", esta ciência, ciência última ou poesia mais alta, "é ver com o corpo o corpo iluminado". E então? "E então a luz une-se a toda a volta e cai no abismo dos espelhos."
Outro ponto importante, este, o do infinito das simetrias. Ou, se preferirem, o dos espelhos: o corpo a corpo é também um espelho diante de outro espelho, ilimitadamente outro. "Um espelho em frente de um espelho: imagem / que arranca da imagem, oh / maravilha do profundo de si, fonte fechada / na sua obra, luz que se faz / para se ver a luz."
2. Poderemos falar num "tema" deste livro? A expressão é arriscada. Alguém poderia supor que alguns dos tópicos que tenho vindo a inventariar (o desequilíbrio que precipita as palavras umas para dentro das outras, o devir-lugar de todas as coisas, a reversibilidade generalizada, a ascensionalidade eufórica, a queda implosiva, a circularidade emergente, a oscilação entre o cósmico e o doméstico, o corpo furado, o jogo itinerante dos espelhos, a simetria iluminada) seriam como que "processos". Não, se os entendermos como "técnicas do discurso poético". Sim, se tomarmos a palavra na aceção de Whitehead. Isto é, o único “tema" são os “processos".
Se lermos com alguma atenção, e um desmedido enleio, os poemas deste livro de Herberto Helder, verificamos que em todos eles existe um processo de transmissão de energia. Transmissão ou intensificação, mas a diferença é secundária. Transmite-se normalmente do mesmo ao outro. A intensificação é uma transmissão do mesmo ao mesmo, nada mais. Daí que cada poema agite uma interrogação: como passa a energia da mãe ao filho? como passa a energia do oleiro ao vaso? como passa a energia da dança ritual aos astros? como passa a energia do mestre ao discípulo? e do poeta ao poema? e da matéria ou ouro? e da palavra comum ao nome único e próprio? e do amante à amada? e da amada ao amante ("ensina-me o que não saberei nunca")?
A trama de leitura que nos favorece o acesso a cada poema tece-se em dois lances distintos: em primeiro lugar, precisamos de identificar o movimento dominante (por exemplo, no primeiro poema, a imagem do nascimento, a relação mãe-filho); em segundo lugar, verificarmos como este tema dominante está sobredeterminado por todos os outros. Mas existem ainda dois outros aspetos que merecem ser valorizados. Por um lado, todos os processos de transmissão de energia são dominados por dois paradigmas: o da criação poética (a mãe que dá à luz um filho é um modelo de arte poética), o da relação sexual (a distância que a energia percorre é sempre a da diferença entre os sexos: "o espaço entre os dois nomes: / eu e o mundo, mundo e poema, poema e nascimento. / Ou a morte, substantivo que raia"). Por outro lado, o ensinamento destes dois paradigmas mostra-nos que estamos perante polos com cargas diferentes: há sempre um polo positivo e um polo negativo, há sempre uma assimetria primordial.
Poderíamos dizer que o sexual visa a fusão (redução do outro ao mesmo: 1 + 1 = 1) e que o poético visa a disseminação (resistência do outro ao mesmo: 1+ 1 = infinito), mas seria uma simplificação abusiva. Nesta poesia, existe uma constante contaminação entre o poético e o sexual: a disseminação explode na fusão, a fusão implode na disseminação. "E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites / caem dentro dos dias – e eu estudo / astros desmoronados, mananciais, o segredo."
3. Como passa a energia? Repare-se que esta pergunta é apenas uma variação sobre a pergunta de que partimos: como falar de Herberto Helder?
Digamos que o que passa é muito pouco, ou nada: apenas a possibilidade de continuar a passar, e, por pouco que seja, passar cada vez mais: "a arte do ar queimado que passa pela boca". Podemos enumerar algumas modalidades da passagem. Por exemplo, a emanação: "como no corpo se forma o vestido". Por exemplo, a epidemia, os vírus, a expansão da lepra. Ou ainda: a devoração ("se se pudesse, se um inseto exímio pudesse, / com o seu nome de princípio, / entrar numa turquesa, monstruosa pela amplitude / da cor e do exemplo, / se até ao coração da pedra e dele mesmo / devorasse a matéria exaltada”).
Mas em todos estes processos há um que me apetece privilegiar. Nos cumes da altura em que o poema se arqueia existe um lugar que, muito banalmente (para quê sermos originais onde não há razão para isso?), é acima de tudo um lugar de harmonia: ouro, rosa. "É essa coisa que fazes / obscuramente – se um dia és lenha suada ardes / da tua própria resina se / torneias o vaso dás-lhe pela cinta quieta / uma pancada salgada um donaire / de onda, e tocas na curva da bilha: e ficas harmonioso –“.
O processo é – já o sentiram na pele – o de tocar. Aproximação com reserva, retraimento, um medo ainda maior, mas também acesso ao limiar do acesso, ao mais aceso do absoluto. O tocar declina-se em múltiplas formas de incitamento e recuo: no frémito, no arrepio, nos estremecimento, no corpo eriçado de prata e sal. Questão de tacto.

Questão de tacto”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 17 de junho de 1995, p. 12.




“Como falar de Herberto Helder? – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 25-09-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/como-falar-de-herberto-helder.html



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