a antonin artaud
I
Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.
De cada vez que alguém me chama Mário
de cada vez que alguém me chama Cesariny
de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos
sucede em mim uma contracção com os dentes
há contra mim uma imposição violenta
uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.
Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?
Porque é que querem fazer passar para o meu corpo
uma caricatura a todos os títulos porca?
Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios
para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas
tão inqualificáveis quanto inadequadas
ao acto em mim sozinho como a vida puro
eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito eu
não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes mais vulneráveis da matéria
Eu estou só neste avanço
de corpos
contra corpos
Inexpiáveis
O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar ‘tenebroso e cantante’ suficientemente glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito – e creio que digo bem – nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante
Por outro lado, se eu tivesse um nome
um nome que me fosse realmente o meu nome
isso provocaria
calamidades
terríveis
como um tremor de terra
dentro da pele das coisas
dos astros
das coisas
das fezes
das coisas
II
Haverá uma idade para nomes que não estes
haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos
dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas puras
Ah não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura dos sábios nem a razão de ninguém
Não será mesmo quem sabe ó único mestre vivo
o fim da pavorosa dança dos corpos
onde pontificaste de martelo na mão
Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas
Haverá
um acordar
I
Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.
De cada vez que alguém me chama Mário
de cada vez que alguém me chama Cesariny
de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos
sucede em mim uma contracção com os dentes
há contra mim uma imposição violenta
uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.
Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?
Porque é que querem fazer passar para o meu corpo
uma caricatura a todos os títulos porca?
Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios
para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas
tão inqualificáveis quanto inadequadas
ao acto em mim sozinho como a vida puro
eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito eu
não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes mais vulneráveis da matéria
Eu estou só neste avanço
de corpos
contra corpos
Inexpiáveis
O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar ‘tenebroso e cantante’ suficientemente glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito – e creio que digo bem – nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante
Por outro lado, se eu tivesse um nome
um nome que me fosse realmente o meu nome
isso provocaria
calamidades
terríveis
como um tremor de terra
dentro da pele das coisas
dos astros
das coisas
das fezes
das coisas
II
Haverá uma idade para nomes que não estes
haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos
dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas puras
Ah não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura dos sábios nem a razão de ninguém
Não será mesmo quem sabe ó único mestre vivo
o fim da pavorosa dança dos corpos
onde pontificaste de martelo na mão
Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas
Haverá
um acordar
Mário Cesariny de Vasconcelos. Pena capital.
Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p. 49-51.
(1.ª edição: 1957)
“a antonin artaud”, o poema como palco:
o sujeito poético em transformação
Dedicado ao fundador do Teatro da Crueldade,
“a antonin artaud” é o último de uma série de três poemas oferecidos a outros autores publicada em Pena capital (1957). Além de Artaud, Cesariny
contempla Edgar Allan
Poe e António Maria Lisboa
em poemas cujos títulos seguem a mesma lógica de dedicatória: “a edgar allan poe” e “a antonio maria lisboa”. Numa espécie de fundação
do cânone próprio
do surrealista, os três poemas parecem expor e propor um contrato
de leitura da poética cesarinyana, indicando poetas dos quais Cesariny
se apropriará na composição de sua obra – a começar por seus nomes,
aqui já marcados
pela preferência do autor por utilizar letras minúsculas nos títulos dos poemas, como é o caso de todos os títulos em Pena capital, a partir
da edição de 1982.
Apesar de ter rompido com André Breton
e o grupo francês em 192632, Antonin Artaud participou ativamente do Movimento Surrealista entre 1924 e esse ano, tendo
inclusive editado o número 3 da revista La Révolution Surréaliste e dirigido as atividades
de seu “Bureau de Recherches”33. Sua saída do Movimento costuma
ser relacionada à vinculação
do grupo, àquele momento, ao Partido Comunista
Francês. Porém, Cláudio Willer, na detalhada “Nota biográfica” de abertura a Os escritos
de Antonin Artaud (1986), ressalta que a ruptura foi causada por “certo tipo de niilismo” (WILLER,
1986, p. 11) da parte de Artaud frente a “uma tendência
organizadora, voltada para a positividade, presente no Surrealismo” (WILLER, 1986, p. 11). Afirma,
ainda, que
não deixa de ser
curioso e digno de nota que
o Surrealismo seja, de um lado, radical demais para muitos gostos e criticado como irracionalismo e “assalto à razão”
pelos intelectuais conservadores e burgueses, pelos católicos (tradicionalistas ou socializantes), pelos comunistas
(ortodoxos ou dissidentes) e pelos existencialistas; de outro, sob a ótica artausiana, é demasiado organizado e bem-comportado (WILLER, 1986, p. 11).
Cesariny, por sua vez, considerava Antonin Artaud um dos maiores representantes do Surrealismo. Para ele, “é num homem banido pelos surrealistas, Antonin
Artaud, [...] que o
surrealismo ponta a sua vanguarda: [...] a provada
possibilidade de vida mágica, a redescoberta nela” (CESARINY, 1985, p. 114).
Sua autodenominação como “poeta” aponta a dimensão ilimitada e o caráter plural de sua obra, uma vez que escreveu
e publicou pouquíssimos poemas, expressando-se de maneira mais frequente através
de cartas, além de ter dedicado sua trajetória artística ao teatro,
principalmente. A denominação
escolhida de “poeta” funciona, portanto, como uma marca da mistura dos diversos
níveis de experiência (artística ou não) dentro de um único
campo, ao qual Artaud
se refere como o “poético”. Segundo Willer, era impossível para o francês assumir uma postura impassível
perante suas produções,
algo que acarretava sua total identificação com os personagens que criava ou com os textos que porventura lia publicamente. O crítico relata que, “invariavelmente, Artaud abandonava o texto e passava a encarnar o assunto do qual tratava,
em vez de se limitar
a discorrer sobre
ele” (WILLER, 1986, p. 12) e que, durante
o período de escrita de Heliogábalo
ou O anarquista coroado (1934), livro, aliás, traduzido para o português
por Mário Cesariny,
Artaud se identificava com o personagem a ponto de achar que era o próprio Heliogábalo e o mundo ao seu redor, a Roma decadente. Aliás, esta é uma característica de Artaud:
ele só conseguia escrever ou produzir apaixonadamente, entregando-se totalmente ao tema, assumindo-o plenamente (WILLER,
1986, p. 32).
A forte aproximação entre as poéticas de Antonin Artaud e a fundamentada pela arte poética que Cesariny
dedica ao francês
revela um intenso
exercício de apropriação promovido pelo português. Os outros dois poemas que integram a tríade de dedicatórias, “a edgar allan poe” e “a antonio
maria lisboa”, apresentam estruturas quase fragmentárias, nas quais é possível identificar de maneira mais explícita os deslocamentos operados por Cesariny sobre as obras alheias.
As expressões retiradas dos dois escritores são grafadas entre
aspas, em itálico ou apresentam ambas as formas sobrepostas, explicitando, assim, os cortes e colagens empreendidos. Dessa maneira, podemos
destacar a seguinte
passagem de “a edgar allan poe”:
“Contei-lhes a minha história” – “não quiseram acreditar-me!” (CESARINY, 2004, p. 46).
Trata-se de uma citação direta das linhas finais do conto “A Descent into the Maelstrom”, “I told
them my story – they did not believe it” (POE, 1982, p. 142). Já no poema “a antonio
maria lisboa”, há versos retirados
dos poemas “Z” e “H”, de Ossóptico (2008 [1952]),
postos em uma mesma
estrofe por Cesariny:
E depois de longo tempo
eu te perdi de vista
lá longe, numa fonte cheia de fogos fátuos
(CESARINY, 2004, p. 47).
Em “a antonin artaud”,
no entanto, não é possível
notar claramente quais versos são e quais não
são de Cesariny, à exceção
de uma única expressão grafada
entre aspas:
O meu nome se existe
deve existir escrito
nalgum lugar “tenebroso e cantante” suficientemente glaciado
e horrível
(CESARINY, 2004, p. 50).
No entanto,
ao contrário do que se passava nos outros poemas, nos quais as citações provinham da obra dos autores nomeados
em seus títulos, esta não é uma citação de Antonin
Artaud, mas do poeta português
Mário Henrique Leiria, no poema “eu sei”34. Como veremos,
a apropriação da poética de Artaud no poema a ele dedicado
parece se dar de forma
mais radical se comparada
ao que se passa nos outros poemas da série,
emergindo numa relação
similar àquela que Breton nota a respeito do diálogo surrealista, isto é, como um “trampolim ao espírito” (BRETON, s/d, p. 199) de Cesariny, revelando-nos
mais a respeito de sua própria poética.
Portanto, a relação com a obra artausiana, declarada em forma de homenagem, pode ser pensada
em termos de um conceito
fundamental identificável nesta,
cujo traço percebemos em Cesariny: “a identidade
entre linguagem e vida, entre o signo e seu significado” (WILLER, 1986, p. 33). Como vimos em “you are welcome to elsinore”, o poeta reivindica às palavras a possibilidade fundação de uma nova realidade
através da destruição dos significados estanques a elas atribuídos pela linguagem cotidiana, pelo “mundo informativo da fala” (PAZ, 1982, p. 47), para que recobrem toda a sua potência significativa. Ana Kiffer, em Antonin Artaud: Uma poética do pensamento, afirma que “não se trata de uma aniquilação da linguagem, do texto, da palavras, mas como disse ainda o poeta [Artaud], trata-se de ‘quebrar o sentido usual da linguagem, de romper com sua armadura,
de explodir a carcaça’” (KIFFER, 2003, p. 34-35). Se, nos poemas do primeiro capítulo, destacamos
a “força genésica da linguagem” (CUADRADO, 2002, p. 183) no tocante à fundação do mundo e das
coisas, ou na relação de dependência entre a nomeação
das coisas e o seu aparecimento, em “a antonin artaud”, tal como em “autografia I”, a potência criadora
se volta para o próprio
sujeito que emerge como efeito do ato poético.
O poema “a antonin Artaud” aproxima-se daqueles
trabalhados no capítulo
anterior, uma vez que o questionamento a respeito da potência das palavras e da saturação
dos significados a elas
atribuídos pela tradição
persiste como tema da poesia
de Cesariny. Da mesma forma,
constitui uma arte poética na qual encontramos um sujeito que, em crise com a linguagem cotidiana, busca um tempo futuro de “nomes / puros”.
Se, em “you are welcome to elsinore”, a fundação
de uma nova linguagem permitiria um encontro libertador
com o outro, no poema “a antonin artaud”, a esperança de “nomes que não estes” está diretamente
ligada ao desejo de libertação do sujeito
frente à “imposição violenta” de estruturas estranhas a si. Na recusa
do nome próprio, primeira marca da imposição
do outro sobre seu corpo, que parece ocupar um lugar
análogo ao da tradição imposta,
o “eu” que lemos muitas vezes na primeira seção do poema escolhe homenagear uma poética, dedicar-lhe um poema, prova poética de aprendizagem e de identificação com um outro. Em “a antonin artaud”,
portanto, a recusa de “uma caricatura a todos os títulos porca”
parece equivaler à tentativa de construção da própria identidade, a qual, como vimos em “autografia I”, corresponde a um exercício
de liberdade.
Tal recusa ao nome
próprio lida na seção inicial do poema,
no entanto, parece assentar sobre certa oscilação
entre a negação e a afirmação, o apagamento e a inscrição
do nome. Assim, ao dizer que “de cada vez que alguém” o chama pelo nome próprio
lhe sucede “uma contracção com os dentes”,
que há contra si “uma imposição violenta”, o poeta não deixa de inscrever no papel seu nome completo,
ainda que apareça
esquartejado. O movimento
se repete ainda no primeiro
verso da segunda
estrofe, o qual encerra certo caráter humorístico fundamentado no aparente absurdo
do questionamento: “Como
assim Mário como assim Cesariny
como assim ó meu deus de Vasconcelos?”. O título do poema parece
sofrer da mesma oscilação, uma vez que nomeia explicitamente Antonin Artaud, mesmo que com as
iniciais minúsculas. Nesse movimento, o escritor, sujeito
empírico que precede
o poema, parece tentar
apagar um nome imposto – ou de impostor – sobre seu corpo, em busca da conquista de sua identidade – identificação e correspondência totais
entre corpo e nome.
Jacques Derrida, em seu belíssimo ensaio sobre Artaud, Enlouquecer o subjétil (1998), aponta
que, nesse poeta,
[a]través da paixão
ou da patologia a que seu sofrimento o submete, sua verdade exibe, em seu nome, a verdade da verdade, isto é, que todo “eu” em seu nome próprio é chamado
a essa expropriação familiar do recém-nascido, constituído, propriamente instruído
por essa expropriação, essa impostura, essa deserção, no momento em que, muito simplesmente, uma família declara um filho e lhe dá o seu nome, em outras palavras,
prende-o a si. Essa apropriação expropriante, essa legitimação só pode ser uma violência da ficção, nunca pode ser natural nem verdadeira por estrutura (DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, p. 65-66).
Cesariny parece expor o mesmo sentimento em seu poema quando pergunta
“que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios / para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe
de estruturas / tão inqualificáveis quanto inadequadas [?]”. Para ambos os poetas, portanto,
a imposição do nome próprio é um acontecimento sobre seus corpos. Como
afirma Derrida a respeito de Artaud, a nomeação de um filho por uma família é “singular,
ligada ao corpo do evento e ao evento do corpo” (DERRIDA,
1998, p. 66). Já no poema de Cesariny, podemos
ver como as reações causadas
no momento em que o chamam por seu
nome são descritas a partir de elementos
ligados ao corpo e à violência física sobre o sujeito,
o qual afirma que “sucede
[...] uma contracção com os dentes”,
que há contra ele “uma cutilada atroz”. Pergunta, em seguida, “porque
é que querem fazer passar para o meu corpo / uma caricatura a todos os títulos porca?”. A vontade dos “pais” em determinar as dimensões dos sujeitos, ao se inscrever
sobre os corpos destes, é análoga ao processo emparedamento do homem dentro de uma muralha
criada pela linguagem, conforme articulado em “you are welcome to elsinore” e no estudo de Breton, “Introduction au discours sur le peu de réalité” (1992 [1924]).
Isto é, nomear um corpo, aquilo que é “acto [...] sozinho
como a vida puro”,
é circunscrevê-lo dentro
de uma lógica de significados estanques e limitadores. Segundo Derrida, essa imposição
preside ao nascimento de tudo o que será legitimado na linguagem, isto é, na sociedade, sob os nomes de nome, ser, verdade,
eu, deus etc. Quem quer que se submete, vê-se submeter, sem pensá-las em seu corpo, a essas formas e a essas normas, acha-se assim
bem formado, isto é, normatizado: normal.
Trocou
uma força por uma forma (DERRIDA, 1998, p. 66, sublinhados meus).
A “deslealdade” cometida
pelo discurso dominante
expressa nas duas primeiras
estrofes de “a antonin artaud”
é contrastada com o “enveredar pela estrada / Da Coragem”, caminho obrigatório para quem pretende encontrar
o nome real daquele chamado “[...] Mário [...] Cesariny [...] de Vasconcelos”. A estrada “Da Coragem”
que leva ao encontro do lugar “‘tenebroso e cantante’”, grafada
com iniciais maiúsculas, assume o estatuto
de “Toda A Coragem”, comparável a “todo o sangue do mundo [e] todo o amplexo do ar”. A articulação com a “leitura grátis” que não se garante ao “viandante” indica que não é possível
passar por essa poesia sem deixar ou sem dar algo em troca, sem ser por ela afetado de alguma maneira.
Nesse sentido, para enveredar pela estrada e encontrar o verdadeiro nome de “Cesariny”, é preciso ser herói.
Na segunda parte do poema, os “nomes que não estes” deixam de significar apenas os “nomes próprios”, para abarcar todos
os substantivos que dão nome “às coisas”.
O dêitico “este” que lemos no primeiro verso aponta que os nomes sobre os quais se fala são aqueles
com os quais ele é escrito. São, também, as “palavras” de “tal como catedrais” e “you are welcome to elsinore”. Desse último, vemos a retomada
da anáfora em “há palavras”, transformada, agora,
em “haverá uma idade [para nomes]”. O desejo de fundação de uma nova linguagem expresso pelo poema, junto à esperança de um tempo futuro no qual “serão esquecidos por completo / os grandes
nomes opacos que hoje damos às coisas” manifestam uma forma de encontro com aquilo que Cuadrado
chamou de “força genésica da linguagem, a capacidade
das palavras para criar realidade” (2002, p. 283)”,
a qual emerge como
reivindicação de liberdade
desses corpos subjugados. Tanto Artaud quanto
Cesariny convocam o poder mágico de criação das palavras, de encontro absoluto entre “os nomes” e “as coisas”.
Para Octavio Paz, o movimento
da poesia surrealista deve ser o de um retorno ao estado
primitivo da língua,
àquele em que as palavras
ainda não foram destituídas de toda a sua potência
significativa pela sociedade. Esse retorno consiste
numa operação mágica sobre a linguagem, uma vez que as palavras
do poema – que são e não são as da língua,
como lembra Manuel Gusmão (2010, p. 400) – revelam múltiplos
significados, fazendo com que o poema
se construa como um feitiço
verbal. Dessa forma,
segundo Paz, “poeta
e leitor seservem
do poema como de um talismã mágico,
literalmente capaz de metamorfoseá-los” (PAZ, 1980, p. 48, grifo meu)35.
Para Artaud, corresponde ao “direito de romper o sentido usual da linguagem, de romper de vez a armadura, arrebentar a golilha, voltar
enfim às origens
etimológicas da língua que, através dos conceitos
abstratos, evocam sempre uma noção concreta” (ARTAUD,
s/d, p. 117). Em seu Teatro da Crueldade,
trata-se do franqueamento das fronteiras entre o teatro e a realidade, através
do qual arte e vida deixam de ser tomadas
como termos opostos.
Assim, Artaud toma o teatro como uma força que precede qualquer mudança na sociedade, negando ser um “dos que acreditam
que a civilização deva mudar para que o teatro mude; mas [crê]
que o teatro utilizado num sentido superior
e o mais difícil possível
tem a força de influir sobre o aspecto e a formação
das coisas” (ARTAUD,
s/d, p. 89). Willer nota que o projeto
central do Teatro da Crueldade
formulado por Artaud seria “a substituição do texto pela realidade, pela própria vida, e, ao mesmo tempo, a transformação da vida e da realidade
em obra, em algo que é criado
e transformado pelo autor” (WILLER,
1986, p. 33-34).
Da mesma forma, a cena escrita
por Cesariny do sujeito que ensaia um apagamento de seu nome do poema que escreve
parece apontar uma imbricação entre essas esferas.
Seu objetivo parece ser, também, a dissolução da oposição entre vida e arte, através do “poder de germinação
(plástico ou escrito)
do verbo” (CESARINY, 1985, p. 158) surrealista frente
à “‘pouca realidade’ do mundo exterior” (CESARINY, 1985, p. 158), mostrando que o
movimento que vai da arte à realidade
está vinculado a um compromisso ético assumido pela primeira. A recusa do nome próprio
e o desejo de fundação
do sujeito a partir de uma nova linguagem parecem,
também, encontrar a “autoridade” sobre a qual Cesariny discorre
em “Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa” (1985).
Sua busca pelos “nomes / puros” parece
ser ensaiada formalmente, uma vez que é possível
perceber como a construção dos versos do poema conduz
ao silêncio, num movimento similar
ao observado em “you are welcome to elsinore”, através
das
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos
só amor só solidão
desfeita
(CESARINY, 2004, p. 35).
O silenciamento também pôde ser percebido em “tal como catedrais”, no desejo de “dar
descanso” às palavras, comparadas a senhoras fatigadas. A busca pela pureza das palavras
resulta numa tentativa de purificação do próprio poema,
o qual, segundo Octavio Paz,
seria aquele em que as palavras abandonassem seus significados particulares e suas referências a isto ou aquilo, para significar apenas o ato de poetizar – exigência que acarretaria seu desaparecimento [...]. Um poema puro não poderia ser composto de palavras e seria literalmente indizível
(PAZ, 1982, p. 225).
O “desaparecimento” de que fala Paz parece ser o desejo do poema de Cesariny, algo que se verifica
desde a segunda estrofe de sua primeira
seção. Nela, alguns vocábulos são escritos
após um espaçamento na página que pretende
forçar um intervalo
entre as palavras
que são ditas, numa libertação dos nomes. Dessa forma, encontramos
[...]
ao acto em mim sozinho
como a vida puro
eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito
eu
não
quero
eu nunca aderi
às comunidades práticas
de pregar com pregos
as partes mais
vulneráveis da matéria
(CESARINY, 2004, p. 49).
Já na segunda seção
do poema, os versos formados
por apenas um vocábulo, bem como os espaços vazios que separam expressões no interior dos versos, enquanto
execução formal da pureza perseguida ao longo do poema, mostram,
na finda, a expressão máxima da purificação da linguagem:
Haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras [...]
Ah não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura
dos sábios nem a razão de ninguém Não será mesmo quem sabe ó
único mestre vivo
[...]
Haverá
um acordar
(CESARINY, 2004, p. 50-51).
Dessa purificação, portanto, resta uma linguagem rarefeita, que deseja uma nova possibilidade de linguagem, na qual os “nomes”
serão capazes de “magnetizar” “constelações
/ puras”. Nesse sentido, parece corresponder a uma esperança
na subversão da ordem estabelecida e aceita como natural, na qual “um acordar”, lançado
a um momento futuro,
opõe-se ao adormecimento e opacidade
do presente. Porém, se, na segunda parte do poema, a “idade para nomes / puros” é mera esperança de mudança e não encontra qualquer ator capaz de empreender uma subversão sobre os “grandes
nomes opacos” (“nem a loucura
dos sábios nem a razão de ninguém”), na primeira parte, essa subversão
é operada pelo próprio sujeito, na recusa de seu nome. Podemos
ver, portanto, que o compromisso ético assumido por Cesariny tem seu ponto de partida,
novamente, em seu próprio corpo,
transformado pela reivindicação de autoridade e liberdade no ato poético,
para que, só então, possa se inscrever na realidade, “num novo real poético”
(CESARINY, 1997, p. 89). Depende, fundamentalmente, do encontro com o outro. Como afirma
Cesariny,
[a] acção surrealista, tende constantemente, como
no acto amoroso, a fundir num só total delirante, “explosivo-fixo”, “solene-circunstancial”, todas as presenças, ligando estreitamente a coisa
a possuir e os meios de possuí-la numa viagem
que só se termina quando ardeu por completo
não apenas o carvão que movia a locomotiva, mas a locomotiva, a estação de chegada, os raills (sic) e os passageiros (CESARINY, 1997, p. 89).
_______________________
32
Em “Prolegómenos ao aparecimento de Dadá e do Surrealismo” (1997), Mário
Cesariny anota a ruptura de
Artaud no ano de 1927: “Manifestos À luz do dia, de Breton, Aragon, Éluard, Péret, P. Unik, e Em plena noite,
de Artaud, que consagram a ruptura deste último com a orientação do
movimento” (CESARINY, 1997, p. 32).
33
C.f. La
Révolution Surréaliste,
Paris, nº 3, 15 de abril 1925.
34 “eu sei / que há um lugar por descobrir / um lugar tenebroso e cantante / como uma ponte de velhos manequins // aí / o teu corpo / dois seios despedaçados / e o vento só o vento / soprado
através dos / teus cabelos”
(in: CUADRADO, Perfecto (org.). A única real tradição
viva: antologia da poesia surrealista portuguesa. Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p. 159).
35 “poeta y lector se sirven del poema como de un talismán
mágico, literalmente capaz de metamorfosearlos” (PAZ, 1980, p. 48).
Maria
Silva Prado Lessa, O poema como palco: algumas cenas da escrita de Mário Cesariny,
Rio de Janeiro, 2017.
Poderá gostar de ler algumas
cenas da escrita de Mário Cesariny:
- O depois da escrita de Cesariny: “tal como catedrais”.
- O antes da escrita de Cesariny: “you
are welcome to elsinore”.
- O sujeito poético em transformação: “autografia I”
- O poema como palco: “pena capital”.
CARREIRO, José. “a
antonin artaud, Cesariny”.
Portugal, Folha de Poesia, 04-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/a-antonin-artaud-cesariny.html
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