quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Porque os outros não têm, no ritmo do meu tatear, a aspereza do teu rosto, Pedro Paulo Câmara


Porque os outros não têm, no ritmo do meu tatear, a aspereza do teu rosto.
Porque os outros não se encaixam em mim quando o frio bate à portada.
Porque os outros não se engasgam enquanto dormem e me colocam de sobreaviso.
Porque os outros não me fazem estremecer ao de leve quando a eles me recosto. 
Porque os outros não soletram palavras sérias em conversa demorada.
Porque os outros não sabem onde mora cada meu sentimento e cada sorriso.

Porque não é o teu cheiro que resiste na almofada quente quando outros se levantam.
Porque não é o teu rugido que se impõe para chamar à noite o meu nome.
Porque não é o teu toque que passeia por entre os meus pelos ouriçados.
Porque não é o teu suor que saboreio quando outros porta fora se ausentam.  
Porque não é o teu segredar que ouço pronunciar cada alcunha, mimo, e cada cognome.
Porque não é o teu andar que sinto ao meu lado quando contemplo sonhos passados. 

Saliências, Pedro Paulo Câmara
Lisboa, Pastelaria Studios Editora, 2013

***

A ilha, os outros, tu e eu

 

Quatro frações que de tão intimamente comungadas se confundem.

As ilhas em cada um de nós. Ou outros que povoam cada nosso soturno íntimo.

O pedaço oceânico reclama cada fôlego como espólio seu

E as vontades estendem-se voluntariosas até que praias desertas se inundem

De olhos que perscrutam o horizonte colossal, sorumbático, longínquo.

 

Hesitam em mim anelos de vindimar o teu nome.

Oscilam em mim anélitos de ceifar a voz dos outros.

Titubeiam em mim anseios de degolar o grito da ilha.

Porém, se a esperança vive e subsiste,

Todas as poeiras e tempestades, todas as areias e terramotos não vencem.

Moras em mim. Alimentas-te de mim. Rendi-me a ti.

 

Há notas que me emocionam, páginas que me chocam, palavras que me contagiam.

Há toques que me amedrontam.

E existes tu.

 

O teu toque intimida-me.

Os outros cobiçam-me.

A ilha aprova-me.

 

Sem vós não existo.

 

Saliências, Pedro Paulo Câmara

Lisboa, Pastelaria Studios Editora, 2013

 



PEDRO PAULO CÂMARA (1980)
Entrevista

Correio dos Açores: Quando foi que te apercebeste que a poesia entrara na tua vida? Como surgiu a motivação para seres escritor e se alguém te influenciou?
Pedro Câmara: Apercebi-me que a poesia tinha entrado na minha vida bastante cedo, pois quando ainda era pequeno li alguns textos manuscritos que a minha avó possuía, organizados nuns velhos livrinhos rectangulares amarrados com cordel e que ainda hoje preservo. A minha avó materna tinha uma compilação de escritos tradicionais, nomeadamente de poemas de cariz popular, cantigas tradicionais, entre outros, que me influenciaram sobejamente, podendo, assim, dizer, que a pessoa que mais me influenciou neste sentido foi ela.

Que achas da poesia em si?
O que mais aprecio na poesia é o facto de não ser estanque e de ser plurissignificativa. Cada leitor oferece a sua própria interpretação e roupagem às palavras que lê. Aquilo que leio e vejo num poema poderá não ser o mesmo que outro leitor leia ou veja, o que permite que a poesia possa apresentar mil cenários diferentes. Ou seja, para mim poesia é ser o que quero ser, sem que os outros saibam o que sou realmente… Tudo é poesia. Basta estar disponível.

O que pretendes transmitir pela poesia?
Sou um afortunado se conseguir fazer desabrochar uma centelha de emoção naqueles que lerem o que escrevo. Através da poesia desejo despertar emoções, sejam elas de que natureza forem. Não me importo de gerar controvérsia, não me importo que surjam sorrisos ou nasçam lágrimas, ou cresça uma saudade extrema ou um grito de raiva rubra. Quero é que nasçam, pois acredito que a poesia se alimenta disso mesmo, da capacidade de fazer brotar e insurgir sentimentos e emoções em seres alheios ao autor.

Onde vais buscar a inspiração? Escreves todos os dias?
É mais fácil iniciar a resposta pela segunda questão. Não escrevo todos os dias e quando o faço nem sempre escrevo poesia. Todavia, tudo aquilo que me envolve, desde o marulhar do mar ao grito do cagarro, é provocador e inspirador. Assim, não vou buscar inspiração, a inspiração é que vem até mim. Ela pode surgir a qualquer instante, de uma frase proferida por um amigo ou aluno, de um cruzar de rua vendo a azáfama da cidade, de um milhafre pousado numa árvore solitária e de tantas outras formas. É por isso que carrego sempre um pequeno caderno, companheiro de jornada, que me acompanha para todo o lado.

Para ti, quais os maiores nomes da poesia nos Açores?
Felizmente são muitos. Tal como acontece com as nossas planícies que são férteis e luxuriosas, também a literatura nos Açores é abundante e tem nomes que dão ou deram cartas na literatura nacional e internacional. Responder a esta questão sem referir os incontornáveis Antero de Quental, reflexo de um pensamento sublime, e Natália Correia, senhora de uma poesia mordaz e desinibida, seria um lapso tremendo. Contudo, creio que o arquipélago viu nascer ao longo dos anos diversos escritores de qualidade invejável, tanto na área da prosa como na poesia.

Qual foi o melhor poema que já escreveste?
O meu melhor poema ainda está por escrever. Porém,  para  não  escapar  totalmente  à  questão, embora seja difícil escolher um único poema, escolho um, não por considerá-lo o melhor, mas talvez pela reação que normalmente provoca quando os leitores se deparam com ele pela primeira vez, intitulado: “A Ilha abre as pernas ao mundo”, presente no Saliências.

Os poemas de que mais gostas são os preferidos dos teus leitores?
Não. Cada leitor encontra em cada poema algo diferente. E cada leitor busca algo diferente, também, em cada poema. O que acontece é que, regra geral, passo a amar mais os meus poemas quando os ouço na voz de alguém que não eu. Creio, até, que os redescubro, e neles encontro coisas que nem eu sabia lá estarem.

Preferes poemas líricos, sociais, românticos sensoriais ou os políticos?
Escrevo vários tipos de poemas, mas ultimamente os que mais me aprazem são os poemas de cariz social e político, pelas várias temáticas que proporcionam, por nos obrigarem a estar despertos para a realidade e por serem, por norma, densos, apimentados e cáusticos. Na verdade, tudo tem o seu tempo e há dias, momentos e gentes que provocam outro tipo de poesia.

Consideras que a nossa sociedade ainda valoriza a poesia?
Ah sim, claro que sim! Como não poderia valorizar se a põe em prática todos os dias? O dia-a-dia frenético de cada ser humano é ritmo e poesia. A poesia não é, exceptuando um grupo de leitores ávidos, a primeira opção de compra dos leitores, sei bem disso, mas sim, acredito que a poesia é valorizada e prezada. No entanto, é necessário promover mais o gosto pela escrita e pela leitura, bem como divulgar (ainda mais) os poetas, os que agora começam a afirmar-se e as velhas glórias inspiradoras.

Com que idade escreveste a tua primeira poesia?
Não consigo precisar, mas sei que, enquanto adolescente, escrevi e escrevi muito. Tenho consciência que, inicialmente, preocupei-me mais em ler e memorizar alguns poemas.

Qual o livro mais marcante que já leste até hoje?
As velas ardem até ao fim, de Sandór Marai, é verdadeiramente sublime e penetrante. Intimidador, até.

Qual é a sensação quando te deparas com alguém a ler um livro escrito por ti?
Fico imensamente feliz e estranhamente embaraçado. Já vi várias pessoas conhecidas com o meu livro, alunos e desconhecidos, alguns até estrangeiros que procuram produto açoriano. Consigo lembrar-me de uma situação, num consultório médico, onde na sala de espera, enquanto aguardávamos pela consulta, vi um senhor que estava a ler o meu romance “Cinzas de Sabrina”. Apesar de não conhecer o dito indivíduo, senti uma enorme alegria ao ver que o meu livro, neste caso o romance histórico publicado em 2014, circula e capta a atenção dos leitores. Tenho, inclusivamente, sido contactado várias vezes pelas redes sociais por pessoas que ouviram falar no meu livro, perguntado onde o podem adquirir e outras, que postam fotografias,  identificando-me,  dando,  também  assim, a conhecer os meus livros a outras pessoas. Todo este reconhecimento, para além de me deixar mui- to agradado, impele-me e motiva-me a continuar a escrever e a partilhar as minhas palavras com os leitores.

O que sentes quando encontras os teus livros à venda numa livraria?
É sempre uma emoção significativa quando encontro um dos meus livros numa livraria, principalmente quando os vejo, como já aconteceu, ao lado de Vitorino Nemésio ou Onésimo.

Quando estás a escrever um livro, partilhas com alguém o seu conteúdo para te aconselhar, por exemplo um amigo ou familiar?
Sim, partilho os meus escritos com alguns amigos chegados e com familiares. Tento auscultar as primeiras impressões e proceder a ajustes que possam aconselhar. Sou um afortunado por estar rodeado de pessoas com sensibilidade.

É difícil conseguir publicar um livro?
Existe um número cada vez maior de editoras, mas isso não é sinónimo de que exista uma maior facilidade para edição de um livro. O mercado, cada vez mais agressivo, faz com que a publicação de uma obra seja, em alguns casos, muito dispendiosa para o autor, o que provoca, muitas vezes, com que os criadores se retraiam e acabem por deixar os seus manuscritos guardados na gaveta. Na verdade, isso só acontece porque existem muitas gráficas disfarçadas de editoras. Logo, a haver disponibilidade financeira, é fácil publicar. Assim, quantidade nem sempre implica qualidade.

Escrever e publicar livros alterou o teu rumo de vida?
Sim, sem dúvida. Hoje sinto-me mais realiza- do porque cumpri este sonho e também porque me abriu novas portas, possibilitou-me novas experiências. Conheci outras realidades, outros autores e outros artistas, muito devido ao facto de já ter publicado. Posso, por exemplo, referir as três edições do Azores Fringe Festival nas quais tive o prazer de participar. Sem publicar, não seria esta pessoa que agora sou. Não enriqueci financeiramente, mas emocionalmente, psicologicamente, sou muito mais rico.

Publicarás algum livro este ano?
Confesso que tenho alguns manuscritos que já estão terminados e penso que talvez no final do ano, ou início do próximo publique algo, mas desta feita no campo da poesia. Existe também produção na aérea da prosa, mas essa demorará mais algum tempo até ver a luz do dia.  

“A literatura nos Açores é abundante e tem nomes que dão ou deram cartas no país e no estrangeiro”, Pedro Paulo Câmara entrevistado por António Pedro Costa, Correio dos Açores, 2015-10-18.
LUSOFONIA Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/

Sem comentários: