ALBA
Como se não houvera
bosque mais secreto,
como se as nascentes
fossem só ardor,
como se o teu corpo
fora a vida toda -
o desejo hesita
em ser espada ou flor.
Eugénio de Andrade, "Alba; Tema e variações em tom menor". In: Revista Colóquio/Letras. Poesia, n.º 1, março de 1971, p. 68-69.
Por cima
da pulsão lírica, o título programa a leitura do texto ao remeter para um
género da literatura popular que descreve "o aproximar do amanhecer depois do encontro de dois amantes".
O que no
texto é símbolo e metáfora, no título é chave de decifração.
As
palavras "corpo" (v. 5) e "desejo" (v. 7) colocam-nos no
âmago da poética eugeniana, isto é, na pulsão homoerótica perante o objeto de
desejo designado como "bosque mais secreto" (v. 2) - Que imagens do
corpo vos sugere esta expressão?
Depois de
enumerar o seu "ardor" (v. 4) libidinoso nas três primeiras estrofes,
o sujeito lírico revela o desejo versátil que "hesita / em ser espada ou
flor" (vv. 7 e 8). É evidente o homoerotismo dos símbolos em
antítese (espada como símbolo fálico e flor como recetáculo deste), pois que
remetem concretamente para a penetração ativa ou passiva.
José Carreiro, “Alba (Eugénio de Andrade)”,
Folha de Poesia 2021-02-13
<https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/alba-eugenio-de-andrade.html>
INTERTEXTUALIDADE | Novas Cartas Portuguesas
Alba
Como se não houvera
bosque mais secreto
(…)
Eugénio de Andrade
Maria atira para trás o lençol.
devagar:
o calor do quarto empasta-lhe os cabelos num brando suor, às
têmporas, ao pescoço, aos ombros, sobre a almofada; volta-se, consciente do
silêncio da casa, do jardim imenso. O terrível silêncio do bosque:
«O bosque com as suas ledas
sombras, as suas ternas saliências, o seu verde húmido de água; dunas As suas
dunas de pássaros adormecidos. A sua dormência uterina, a sua voragem quase
monstruosa onde mergulharia, se envolveria, despida de si por completo.»
— Mas que bosque, Maria, que
loucura, que invenção? — diz ele enquanto a acaricia, lhe beija os peitos soltos
sob o fato, não querendo ou podendo reparar-lhe no vazio dos olhos, no crispado
dos lábios, na indiferença dos braços. No medo crescente, todos os dias maior,
possessivo, envolvente, radical, por dentro das pupilas verdes, toldadas; um
verde cinzento já sem transparências.
Uma manhã em que Ana se lhe
demorou mais no colo, disse baixo, como se fosse um segredo entre as duas:
— «Anda minha filha, vamos para o
bosque.»
Depois riu-se, baixo, e correu as
mãos pelo rosto, indo encostara testa nos vidros momos da janela que dava para
o jardim imenso com as suas dálias, os seus crisântemos, os seus alucinantes
malmequeres amarelos, a perder de vista.
— Que bosque, Maria? Mas que
bosque... que caminho? Ali é o portão, depois as casas, as pessoas, Maria; mas
que bosque estás sempre a inventar, que domínio, que bosque, meu amor; que rio,
que desatino?
Maria atira para trás o lençol de
linho branco, devagar; o calor da tarde agarra-se-lhe à pele, ao sono mal
desfeito ainda, ao corpo que a camisa de noite, de tom rosado, dormente, exibe
mais do que se estivesse nu.
Maria sai da cama, escorrega para
o chão as pernas altas, levanta os braços e despe-se, entontecida, numa leve,
leve tontura ou náusea a tomar conta de si... De pé, espera um breve segundo
antes de contornar a cama, afastar os cortinados brancos, na renda larga,
trabalhada; os cortinados assim como os lençóis, de branda fragrância suspensa;
os cortinados assim como a casa, de macia transparência a delinear a nudez, a
delinear as ancas. As pernas longas, pálidas, tensas, vergam-se ao de leve, mas
logo se firmam a aguentar do corpo o peso; as ilhargas quentes, secas, lentas;
a cintura recurvada aos dedos. a toda a violência.
E brandos são os pés agora no
lajedo aceso do terraço sob o sol. Brandos no passo incerto, breve. Sereno o
movimento posto de vidro no gesto cauto, vigilante.
Largo o risco traçado pela sombra
que o corpo projecta, remove, doma, cresce e floresce na própria sombra.
Enquanto Maria agora desce novamente, transpõe o perigo dos outros e desce
ainda, no bosque que tão bem conhece, embora lá nunca tenha na realidade ido.
Que meigas folhas a roçar os lábios, os seios na terra onde pernoita o tempo, o
corpo recolhido, acolhido na erva, à mistura com o sabor ácido do rio. Maria
fecha os olhos e sabe que adormece, ali tão a resguardo, tão tranquila, tão
esquecida de tudo, tão desarmada, os joelhos erguidos, junto à boca, como nela
estivera já a filha.
Querida Mãe:
Mando-lhe a Ana que aqui não pode
continuar. Tome conta dela, distraindo-a do que por cá se passou e ela viu.
Maria parece ter enlouquecido
(poucas esperanças de curá-la nos dão os médicos) e o Francisco nega-se à
verdade, os dias metido no quarto dela, onde se fica em silêncio a olhá-la como
se a quisesse despertar para a vida.
Ralo-me por ele, no entanto não
te preocupes de mais, que eu me encarregarei de o convencer (conheço meu irmão)
a internar Maria numa clínica.
Não fales à Ana, da mãe, é
preferível que comece já a esquecê-la, pois melhor seria não lembrá-la nunca
como sempre foi, Bem sabes que jamais previ algo de bom deste casamento. Mas
agora que aqui estou, tudo se arranjará e há-de voltar a dantes.
De volta espero levar-te o
Francisco. Prometo-te. Entretanto vou dando notícias.
Beijo-te afectuosamente.
Tua filha
dedicada
Mariana
9/4/71
"Sor Juana y La Virreina", Félix Frédéric d'Eon, 2020 |
ALBA
As cool as the pale wet leaves of
lily-of-the-valley
She lay beside me in the dawn.
Ezra
Pound
ALBA
Como se não houvera
bosque mais secreto,
Como se as nascentes
fossem só ardor,
Como se o teu corpo
fora a vida toda,
O desejo hesita
em ser espada ou flor.
Eugénio
de Andrade
BEJA E VERONA AO MESMO MADRUGAR
— Volta à redoma farta onde redondos cantam os gerânios
vem à noite amarela que te faço no poço dos meus braços
— Vou que de nada dizes o que me consegues
vou porque me tomaste pelo lado manso
— Volta ao lado de dentro onde estão guardadas as palavras boas
volta ao rigor do riso
que eu te fiz silêncio
eu te guardei brava
eu te pintei solta
por um preço alto
— Vou pela vela acesa ao pinheiral novo
suspensão dos teres
ao lugar dos brados
que não demos antes
— Dança pelo teu segredo uma casa aberta
— Vem a contar-me as horas por dentro dos nomes
— Minha espada dada dorme à tua beira
— Rosa verde clara senhor do primeiro
— Casada de mim eu não sei quem sou
— És sobre o meu seio
— Dorme sossegada
minha água lisa
face onde me estou.
9/4/71
Novas
Cartas Portuguesas, Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e
Maria Teresa Horta. Lisboa: Estúdios Cor, 1972 (1.ª edição)
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- “A metáfora em Eugénio de Andrade” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Eugénio de Andrade, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 2018-04-23. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-metafora-em-eugenio-de-andrade.html
CARREIRO, José. “Alba,
Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 13-02-2021. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/alba-eugenio-de-andrade.html
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