domingo, 19 de setembro de 2021

Poesia e mel, crónica de Frederico Lourenço

"Fontana delle Api", por Giovanni Lorenzo Bernini, na Piazza Barberini


Se disséssemos hoje a um jovem poeta que achamos os seus versos «doces», o jovem poeta ficaria ofendido de morte. Mas se alguém tivesse feito esse elogio a um poeta grego ou romano, ele teria ficado desvanecido e encantado. Aliás, não precisamos de viajar tão longe no tempo: Camões teria ficado imensamente lisonjeado. Pois era essa a finalidade da poesia: ser doce. 

Por isso havia tantas lendas sobre poetas antigos cujo talento era explicado pelo facto de abelhas terem deixado mel nas suas bocas quando ainda eram bebés. Por isso se estabeleceu naturalmente a correlação mel/poesia; por isso se começou a pensar no poeta como uma abelha. O poeta grego Baquílides disse de si mesmo que era uma abelha. E no «Íon» de Platão, Sócrates afirma esta coisa extraordinária: «Os poetas dizem-nos que é em fontes de mel, em certos jardins e pequenos vales das Musas, que eles colhem os versos, para, tal como as abelhas, no-los trazerem, esvoaçando como elas. E falam verdade! Com efeito, o poeta é uma coisa leve, alada, sagrada» («Íon» 534a-b; tradução de Victor Jabouille). 

«Manda-me amor que cante docemente», escreve Camões no início da Canção 7. Na Canção 3, fala-nos em «doce melodia» e «doce pensamento»; na Canção 5 numa «doce voz»; um verde ramo na natureza faz um «doce ruído» (Canção 9). E «O sulmonense Ovídio, desterrado», lembrando-se com saudade dos «doces» filhos, só tem como companhia a «sua doce Musa» (Elegia 3). Não será doce a mais? 

O século XX (e talvez já o século XIX) virou as costas à doçura na poesia, certamente porque a banalização do açúcar na culinária estragou as conotações positivas da glicose que o mel tinha emprestado à literatura. Quando, no romance «Brideshead Revisited», o narrador se refere à quinzena romântica com Sebastian em Veneza com as palavras «I was drowning in honey», sabemos que algo mudou desde que Camões escreveu «Manda-me amor que cante docemente». 

Mas uma coisa não mudou: a glicose como combustível da criação. No fundo, terá sido por esse motivo (não consciencializado) que os poetas antigos associaram a poesia ao mel. Não era tanto que a poesia fosse mel; era mais o facto de a ingestão de mel (para povos que não tinham ainda açúcar) produzir mais facilmente poesia. Porque a imaginação também precisa de combustível: os escritores que recorreram ao vinho (Baco, esse grande inspirador!) estavam, no fundo, a recorrer ao açúcar que existe no vinho («Baco das uvas tira o doce mosto»: Lusíadas 4.27), do mesmo modo como os nerds que deram ao mundo os nossos computadores e telemóveis (com todos os seus aplicativos e software) se alimentaram de Coca-Cola, de donuts e daqueles hambúrgueres das cadeias americanas que contêm mais açúcar do que qualquer sobremesa num restaurante em Portugal. Eu diria, até, que se não fosse a dieta americana de açúcar a estimular as mentes dos cientistas, nunca o homem teria chegado à lua nem me seria possível consultar manuscritos da Bíblia ou de Vergílio online no meu computador. Sem combustível (açúcar), nada surge «por puro engenho e por ciência» (citando Lusíadas 5.17). 

Mas voltando à Grécia arcaica: diz o poeta Álcman que vozes belas a cantar poesia são «vozes de mel»; e Píndaro (de quem se dizia que abelhas tinham deixado mel na sua boca quando era bebé) afirma que um poema, para ser de qualidade superlativa, tem de voar de um tema para outro «como uma abelha». Na sua Bucólica 1, Vergílio fala em abelhas depois de ter referido «fontes sagradas». E Platão, como vimos, falou em «fontes de mel» Coube a Gian Lorenzo Bernini fazer, em Roma, a síntese perfeita de tudo isto, com a sua «Fontana delle Api».  

“Poesia e Mel”, Frederico Lourenço, 2021-09-19

https://www.facebook.com/frederico.maria.lourenco/posts/413506840138759



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